Cheguei a uma conclusão da qual não vou abrir mão de forma alguma: a melhor maneira de contribuir para que as relações no mercado imobiliário deixem a imundície ética de favoritismos deliberadamente mercantilistas e preservem tanto empreendedores sérios como proprietários indefesos é transformar em capítulos todo o desvendar do caso do Residencial Ventura.
Trata-se de um condomínio de classe média alta incrustado no Bairro Jardim, em Santo André. São 320 apartamentos construídos numa operação que envolveu gente graúda. Caso da Cyrella, maior empresa do ramo de construção imobiliária do País, e do Grupo De Nadai, comandado por Sérgio de Nadai, empresário que se fez à sombra do Estado com quentinhas para presidiários.
O Residencial Ventura é premonitoriamente uma verdadeira aventura para proprietários e moradores. Sei lá quem lhe conferiu a denominação, mas acertou na mosca. Talvez pretendesse zombar dos incautos. Talvez esteja de tal modo acostumado com impunidade que nem se deu conta de que o destino poderia lhe pregar uma peça.
Lamentavelmente, a ocupação dos apartamentos já estaria decidida. Há informação de que a administração Aidan Ravin resolveu conceder o habite-se. O prefeito petebista não teria resistido às pressões que partem de aliados graúdos dos empreendedores.
Os 320 apartamentos estão sobre terreno ocupado durante 70 anos pela Atlântis, indústria química altamente contaminadora de solo. O processo que culminou com as obras do Residencial Ventura contrariou regras básicas de responsabilidade social e de ética negocial. Nada mais acintoso. O simples histórico da empresa que manteve a produção de químicos durante sete décadas já exigiria cuidados especiais.
Mais que cuidados especiais: exigiria sobretudo transparência absoluta perante instituições sociais voltadas ao meio ambiente. Nada mais ingênuo, admito. As regras do jogo do mercado imobiliário são regras do mundo-cão dos negócios. Tanto que as entidades que representam a classe não estão nem aí com os usuários dos produtos que vendem. Trata-os como imbecis. Sempre com o suporte publicitário dissimulado de informação jornalística.
A maioria dos empreendedores competentes e compromissados com a sociedade não está pendurada na linha de frente de entidades que supostamente os representam. Supostamente porque, de fato, são manipuladas pelos comandantes, lobistas principalmente nas esferas públicas, interferindo diretamente na mudança de legislação de uso e ocupação do solo, serra pelada da garimpagem de estoque de terrenos.
Cada apartamento do Residencial Ventura está avaliado em R$ 600 mil. Há unidades que custam 50% mais, porque têm metragem superior. Ao todo, os 320 apartamentos teriam valor de mercado superior a R$ 200 milhões.
Quando o Grupo De Nadai negociou a venda da área de 14 mil metros quadrados com a Cyrella, o valor atribuído atingiu R$ 15,9 milhões, resgatáveis em parcelas. Informou-se mais tarde, extra-oficialmente, que o Grupo De Nadai receberia os valores contratuais em forma de unidades construídas. Teria ficado com 30 apartamentos, a maioria colocada à venda após se esgotar o estoque da Cyrella.
Esses adendos ao contrato de venda do terreno não constam dos documentos de que disponho sobre o Residencial Ventura. São informações de terceiros que, de alguma forma, estão próximos das partes do negócio.
Uma série de pontos vai nortear a abordagem do caso Residencial Ventura. Vou muito além do que já escrevi sobre o empreendimento. A argamassa básica das informações e interpretações que exporei aos leitores está fundamentada em documentos. Mas também vou recorrer a contatos que mantive com alguns dos personagens. Uma troca de e-mails, que tive o cuidado de providenciar para me resguardar, também faz parte do enredo.
Não tenho dúvidas em afirmar — e em me responsabilizar integralmente pelo que escreverei em qualquer instância judicial — que os padrões de responsabilidade civil e social foram estraçalhados pelo consórcio de empresas que se refestelaram com o empreendimento.
Minha expectativa, diante da situação concreta que tenho a expor, é que a administração Aidan Ravin, que não tem nada a ver com a delinquência procedimental que redundou na execução da obra, deveria revogar a liberação de ocupação dos apartamentos. Duvido que o faça. A medida teria de ser seguida de providências sérias. Principalmente no requerimento de rigorosa investigação ambiental daquele espaço, por mais que o concreto tenha ganhado formas. Revogar o habite-se seria uma prova de que a administração Aidan Ravin analisa com zelo a questão de segurança habitacional.
Asseguro aos leitores que não há segurança alguma de que o Residencial Ventura está livre de contaminação industrial. Isto, se segurança for entendida como a garantia de que nada de anormal poderá ocorrer naquele condomínio que de alguma forma lembre o Barão de Mauá, na vizinha Mauá, erguido em aterro de lixo industrial. Os documentos que detenho me movem à desconfiança.
Os procedimentos de agentes públicos e privados envolvidos nas gestões que culminaram com a liberação da obra pela Cetesb elevam o desconforto. Não vou descer aos escaninhos de acertos de conveniência, sobre os quais não reúno provas. Não pretendo dar aos protagonistas do caso pretexto à desclassificação da denúncia.
Por isso, o mínimo que a administração de Aidan Ravin deve promover é cancelar o habite-se do Residencial Ventura.
Sinceramente, não acredito na medida. Sei por fontes valiosas que a retomada dessa pauta neste site provocou alvoroço no Paço Municipal. Principalmente porque há informações de bastidores sobre supostas vantagens financeiras que o habite-se promoveria. A gulodice do Poder Público em arrecadar impostos — já imaginaram quanto de IPTU será amealhado aos cofres municipais? — e os objetivos eleitorais possivelmente impedirão qualquer iniciativa mais ajuizada. Joga-se com a perspectiva de que nada ocorrerá que possa ser contabilizado como desastre ambiental em pleno Bairro Jardim.
Não ficarei limitado nesta série de textos ao Residencial Ventura. Embora a gravidade da situação pudesse me induzir a focar exclusivamente aquele microterritório de 14 mil metros quadrados, há situações análogas no mercado imobiliário que mereceriam força-tarefa do Ministério Público do Meio Ambiente e do Urbanismo.
É preciso desmantelar o que não tenho dúvida de chamar de indústria de liberação de áreas contaminadas para fins comerciais. A bandalheira que emerge das informações que recolho de uma e outra fonte especializada segue enrustidamente em forma de legalidade processual e técnica. A Imprensa, sempre descuidada imprensa, limita-se a noticiários óbvios e repetitivos sobre a quantificação de áreas contaminadas. Não vai fundo. Vou fundo porque, repito, o Residencial Ventura tem todas as características de espécie de beirada de bolo de coco cujo sabor se conhece num simples beliscar, sem precisar, portanto, saboreá-lo integralmente. A diferença é que doce de coco pode, no máximo, provocar disenteria. O Residencial Ventura pode causar estragos bem maiores.
Mais que um título supostamente apelativo, mas rigorosamente indignado deste jornalista, “Eu não tenho coragem de morar no Residencial Ventura” é um brado contra a insolvência de qualquer quesito que lembre compromisso social na ocupação de áreas contaminadas. Como provaremos à exaustão nos capítulos que se seguirão nos próximos dias.
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22/11/2024 SÍNDROME DA CHINA AMEAÇA GRANDE ABC