Economia

Metamorfose econômica (2)

DANIEL LIMA - 03/03/2009

Apesar da marcha batida em direção ao cadafalso, é surpreendente que o Grande ABC tenha consumado em pouco mais de uma década, entre o final do século passado e mais que a metade do primeiro decênio do novo século, o que pareceria impensável: os valores monetários de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) perderam fôlego e pernas num comparativo com as Receitas Próprias dos municípios, em larga escala o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e o ISS (Imposto Sobre Serviços).

Em resumo, a virada da maré fragilizou substantivamente a então invejável economia regional. Perdemos mais de 1% do PIB por ano. Em qualquer lugar do mundo, a descarga de criação de riqueza provocaria reações iradas, medidas drásticas, cobranças duras das autoridades. Mas o Grande ABC permaneceu calmo e omisso durante a tempestade de areia que, muito mais que comprometer o tecido da mobilidade social, ergueu obstáculos ao multiplicar rachaduras na psique da sociedade.

Sem precisar de imediato lançar mão do detalhismo de números destrinchados Município por Município, as Receitas Próprias apresentaram durante o período de 13 anos, entre 1994 a 2007, avanço nominal de 771,97%. Em período semelhante, de 1995 a 2008, portanto igualmente de 13 anos, o ICMS registrou também nominalmente crescimento de 170,7%. Se em termos reais, deflacionados os valores pelo IGP-M (Índice Geral de Preços do Mercado) da Fundação Getúlio Vargas, as Receitas Próprias avançaram 150%, em contraposição, o repasse de ICMS sucumbiu em 18%. Essa assimetria, esse contraste, não conhece paralelo. Há explicações técnicas, sociais, geográficas, econômicas e conjunturais. E todas serão rigorosamente expostas nesta série.

Questão de tempo

Não é descabida a previsão de que ao serem divulgados os dados de Receitas Próprias do ano passado (lembrem-se que os últimos números são de 2007) teremos provável inversão de liderança. Os impostos municipais vão superar o repasse do imposto estadual. Estreitou-se de tal maneira o volume de recursos em pouco mais de uma década que a ultrapassagem é mesmo questão de tempo. O que parecia um Fórmula-1 imbatível, no caso os repasses do ICMS, ganhou a forma de um veículo de passeio, na categoria de usados. De fato, para a consumação da grande transformação econômica do Grande ABC, a simples semelhança de valores monetários é argumento irrebatível.

Por isso, quem afirmar que o avanço dos serviços é a prova cristalina de que o Grande ABC reforçou uma atividade que até então se perdia em meio ao cipoal industrial e que, portanto, arrebenta com qualquer tentativa de alertar sobre os riscos da desindustrialização, é descaradamente manipulador. A melhor explicação, embora outras não faltem, é que a carga tributária própria gerada nos municípios locais tem baixíssimo agregado de valor. Atividades de ponta como engenharia, hotelaria, entretenimento, turismo de negócios, Tecnologia da Informação, entre outras, ainda são exceção na região.

O enchimento as burras públicas de impostos próprios generalizou-se nas grandes e médias cidades brasileiras. Não é portanto, disfunção tributária dos prefeitos que passaram ou estão em gozo do cargo no Grande ABC. A mudança se deu a bordo do Plano Real, que acabou com a farra do overnight. Até então, surfando nas delícias do mercado financeiro, o Poder Público e também a classe média mais abastada ganhavam muito dinheiro aplicando recursos que aumentavam a dívida pública federal e retroalimentavam a inflação. As receitas eram ainda mais rentabilizadas com os efeitos inflacionários na coluna de compromissos, porque corroíam débitos com fornecedores e drenavam vencimentos do funcionalismo.

Quem era credor de impostos indexados à inflação e devedor de despesas sem que a recíproca fosse verdadeira, caso do Poder Público, só poderia mesmo nadar de braçadas orçamentárias. Ou seja: o Poder Público municipal dos tempos inflacionários compensava na jogatina inflacionária a pusilanimidade com os contribuintes proprietários de imóveis.

Flacidez arrecadatória

Além disso, poucos gerenciadores públicos se incomodavam com a flacidez arrecadatória. Quando o calo da estabilidade monetária apertou, encurtando ou praticamente anulando o efeito de créditos indexados e débitos desvalorizados, administradores públicos dobraram-se rapidamente aos avanços da Tecnologia da Informação. Passaram, então, a aplicar largas inversões em equipamentos, programas e processos.  Criou-se sobremodo no Grande ABC situação penalizadora lesiva aos bolsos privados.

Primeiro, porque à enxurrada de desemprego industrial se somava uma apuradíssima operação de compensação de parte de perdas tributárias estaduais e federais com a centrífuga de impostos municipalistas.

Segundo e paralelamente ao oportunismo generalizado de compensar as perdas financeiras com aumento de contribuintes do IPTU e também de apertar o cerco contra inadimplentes e sonegadores no setor de serviços, os municípios do Grande ABC se viram asfixiados com a desindustrialização.

Por mais que tenham arrecadado com impostos próprios, as perdas industriais se tornaram incontornáveis. A atividade industrial concentra muito mais massa de transformação, na forma de Valor Adicionado, base de cálculo de repasse do ICMS. Além disso, atividades produtivas também geram empregos mais qualificados e muito mais bem remunerados, além de imenso colchão de vantagens extremas em forma das chamadas conquistas sindicais históricas, como Previdência Privada.

Efeitos colaterais

Aqui cabe um adendo: esses apetrechos só se encontram ainda hoje nos empregados de primeira classe das montadoras de veículos — e mesmo assim sob o peso de contínua quebra dos valores reais dos salários dos trabalhadores. Também se pode incluir no grupo de privilegiados o pelotão nada numeroso que frequenta o degrau imediatamente abaixo do setor automobilístico, no caso os sistemistas fortemente de capital internacional. Nas pequenas e médias empresas desgarradas de pressões sindicais, o Instituto Nacional de Seguro Social virou porta de entrada e de saída dos trabalhadores.

Quando, num dos capítulos desta série, chegarmos aos efeitos dilacerantes do Índice de Potencial de Consumo, especialidade da Target Marketing e Pesquisas que acompanhamos durante todo esse período, ficará mais contundente ainda o grau de infiltração e de debilidade da estrutura social e econômica do Grande ABC. Como se já não fossem suficientes os dados históricos de perdas de empregos industriais com carteira assinada. Nem mesmo os cinco anos de crescimento contínuo do PIB na gestão Lula da Silva inverteu a derrama. E a tendência para os próximos tempos é de enfermidade recidiva, porque o mergulho industrial sob efeitos da concentração de peso relativo do setor automotivo é um convite à inquietação permanente.

Somos vítimas tupiniquins da doença holandesa. Dependemos demais dos humores e horrores nacionais e internacionais do complexo automotivo.



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