Costumo dizer que sou um jornalista fisicamente invisível. Minhas fontes valem ouro porque sabem que sou implacavelmente fiel, mesmo que a origem amiga da informação de hoje se transforme em oposição amanhã. Estar em todos os lugares fisicamente é uma roubada, descobri ao ficar atrás das cortinas da explicitude. Principalmente no meu caso, de jornalismo de práticas também investigativas.
Jornalista que aparece em todas as paradas sociais é jornalista sob desconfiança geral, porque pode passar a ideia de que cada interlocutor é um informante. Minhas fontes de informação são praticamente secretas também nas andanças físicas que não substituem contatos tecnológicos.
Por mais paradoxal que possa parecer, o maior distribuidor de premiação meritocrática que qualquer região já conheceu, no caso este jornalista, é visceralmente contrário à exposição social. Entreguei 1.718 troféus do Prêmio Desempenho em 15 anos à frente da revista LivreMercado. Duas vezes por ano, religiosamente, comandava o maior evento que não só a Província do Grande ABC, mas qualquer outra região do País, já conheceu. E sou o antípoda dos arrozes de festa que dia sim dia sim também ocupam colunas sociais impressas e digitais.
Por força de ter conquistado muito mais liberdade do que nos tempos de LivreMercado, não hesito em selecionar os eventos a que decido ir. Nos últimos cinco anos, desde que LivreMercado foi repassada a um mercador de tributos que jamais entendeu o significado da publicação, compareci a não mais de seis eventos. E não sinto falta alguma porque, também nos tempos de LivreMercado, raramente frequentava ambientes festivos. Entre as razões está o fato de ser tarado por leitura, por um bom filme e por tudo que agregue valor cultural. As festanças geralmente não uma perda de tempo, por mais que uma e outra companhias compensem os malas sem alça.
Lolita, muito melhor
Disse ontem a um secretário municipal de Santo André com quem almocei (Raimundo Salles, de Cultura) que prefiro minha Lolita a muitas companhias em eventos mais que manjados. A reação foi de surpresa, mas não há exagero algum e muito menos o sentimento é de repulsa à humanidade. Nada disso. Amo as pessoas que contribuem com transformações, mas infelizmente são minoria nesta sociedade de sanguessugas.
Por isso prefiro minha Lolita, shitzu que há seis meses alegra minha família e que me fez recuperar o tempo perdido, o tempo em que, menino bem comportado, tinha sempre um cãozinho como válvula de escape ao acanhamento natural de interiorano. Minha Lolita é emblemática dos tempos de mudanças que experimento há cinco anos, desde que me livrei do cotidiano enlouquecido de dirigir a melhor revista regional que este País já teve.
Sinto-me hoje mais jornalista do que durante os 20 anos de LivreMercado, os mais de 15 anos de Diário do Grande ABC e quase uma década de Agência Estado, alimentando os jornais Estadão, Jornal da Tarde e centenas de publicações do Brasil inteiro. Ao retirar o peso que sempre carreguei de editor, de repórter, de copidesque, de pauteiro, do somatório de tudo que compõe a cadeia de produção editorial, e ao me concentrar praticamente como fazedor de análises, os reflexos da produtividade são escancaradamente melhores.
Tenho fontes mais vastas e confiáveis agora do que antes. Vejo-as pessoalmente em lugares insuspeitos. Onde houver uma possibilidade de ser apanhado por olhares curiosos, onde puder existir o risco de terceiros me identificarem, onde quer que seja que possa ser visto, esse lugares ou esses lugares estarão fora de minha agenda. Fontes que valem a pena não podem correr o risco de serem vistas comigo. Se forem, podem correr sérios riscos de retaliações. Assumo sozinho e isoladamente todos os preços possíveis de contrariar principalmente os meliantes da praça. Minhas fontes exigem preservação sacerdotal de informações. Sempre lhes dei essa contrapartida à veracidade dos fatos.
Traições negociadas
Nem mesmo alguns casos de fontes que me traíram, ao me usarem para se aproximar de alvos criticados por mim, retiram o lacre de inviolabilidade do sigilo do qual não abro mão. Não é porque se negociaram vantagens para se afastarem deste jornalista, após aproximação aparentemente sincera e restauradora, que reagirei com a quebra de uma cláusula pétrea de relacionamento entre jornalista e fonte de informações. Dedico às fontes fugidias o mesmo tratamento das fontes fieis.
A invisibilidade a que me impus é uma prática indispensável na Província do Grande ABC. Exercitá-la só é possível se houver um sentimento de autovalorização de quem a coloca em campo. As rodinhas sociais jamais me comoveram. Sempre achei uma chatice integrar determinadas agremiações sociais. Há outras maneiras de juntar-se à sociedade sem necessariamente ter de passar horas e horas ouvindo o que já se sabe ou o que não acrescenta absolutamente nada. Se os encontros sociais valessem a pena, de verdade, a Província do Grande ABC não seria esse desfiladeiro de improdutividades.
Conto aos meus filhos como exemplo emblemático das falsidades sociais o mico que paguei há mais ou menos uma década quando, incauto, cai na besteira de acompanhar a cerimônia de posse de um reitor numa universidade da região. Foram quase três honras de um ritual típico da Idade Média. Um lambe-lambe tormentoso para quem jamais se deixou levar pelo convencionalismo de eventos presos ao passado hierarquizado em excesso. Seis meses depois eis que o reitor tão festivamente recebido naquela comunidade acadêmica foi trucidado pelos conservadores da cúpula. Tudo muito discretamente, é claro, porque as aparências valem mais que a transparência.
Temos ótimas cabeças na região, é bom que se diga, mas os titulares não se disponibilizam a parecerem assim nos encontros sociais, culturalmente um escape ao exercício da cordialidade inócua. O bom mesmo é quando essas boas cabeças se encontram em ambientes menos festivos do outro lado da mesa a exercitar o direito crítico do conhecimento que dominam.
Só não faço uma campanha contra as reuniões sociais convencionais porque não quero acabar com o emprego dos profissionais de imprensa que se dedicam a lustrar egos, mas não resisto a alertar as boas cabeças sobre os riscos de serem confundidas como supérfluos sociais toda vez que um fotógrafo aparece e surge a ameaça de serem catapultados às páginas impressas, virtuais ou ao programas televisivos.
Acho que cheguei ao que chamaria de “estágio de Lolita” a que muitos provavelmente ainda chegarão. Se tiverem tempo para isso e entenderem que a vida é muito mais do que o que parece -- é o que sentimos e somos no resguardo da discrição.
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