A bem da verdade e para que não se compre gato por lebre, o resumo da ópera é o seguinte: o projeto Cidade Pirelli, lançado há mais de uma década em Santo André, tornou-se retumbante fracasso. O PT é um dos responsáveis, mas o que se anuncia agora no governo petebista de Aidan Ravin não passa de especulação imobiliária. Teremos a substituição de um espaço planejado por um fatiamento catastrófico de planejamento urbano.
Entretanto, como tudo é possível, principalmente na atividade imobiliária, a mais criativa maneira de ganhar e de perder dinheiro, não deve ser descartada a possibilidade de que a emenda fique melhor do que o soneto quando se observar o resultado final apenas sob ângulo econômico-financeiro. Mesmo assim, a realidade dos fatos não pode ser subjugada por interesses individuais e corporativos, quando não políticos e partidários. A morte da Cidade Pirelli e o lançamento de um projeto imobiliário ao gosto dos especuladores retratam esse Grande ABC desprovido de capital social.
O desmonte da Cidade Pirelli, como o desmonte daquela que seria a Cidade Tognato, em São Bernardo, entre tantos outros projetos alardeados no Grande ABC nos anos 1990 para esconder ou dissimular a desindustrialização, mostra o quanto seguimos na periferia da Capital. Mais que isso: estamos submetidos às rebarbas das três regiões metropolitanas interioranas, no caso a Grande Campinas, a Grande São José dos Campos e a Grande Sorocaba.
Estamos tão desmobilizados, senão idiotizados, que até mesmo o eterno presidente da Acigabc (Associação dos Construtores, Imobiliárias e Administradoras do Grande ABC), Milton Bigucci, decidiu mudar de mala e cuia para a Capital tão fosforescente. Assumiu de vez o Complexo de Gata Borralheira.
Sei que é dolorido escrever tudo isso, mas é muito mais doloroso e pecaminoso tentar enganar o distinto público. Estou de olhos abertíssimos nos especuladores econômicos. Eles seguem a mesma toada de sempre: procuram vender ilusões aos incautos ou douram demais a pílula.
Infelizmente, aquilo que seria o mais arrojado e moderníssimo centro comercial, de prestação de serviços e residencial do Grande ABC, e que remetia a resultados no Primeiro Mundo, virou porção de áreas disponíveis à sanha de mercadores imobiliários.
O noticiário (sempre raso) de hoje dá conta de que a Pirelli colocou à venda cinco terrenos em Santo André, que totalizam 142 mil metros quadrados. Não se informa se essa área não sequencial pertencia à Cidade Pirelli, mas é de acreditar que sim. O projeto inicial da multinacional que ajudou a colocar Santo André como forte reduto de classe média contemplava 270 mil metros quadrados. Onde estariam os mais de 130 mil metros quadrados fora do pacote da Pirelli? São ocupados por uma empresa de call center e pela antiga Pirelli Cabos, sob a identificação de Prysmian.
O projeto Cidade Pirelli foi o cruzamento de interesses do PT de Celso Daniel e da multinacional italiana que pretendia compensar o esvaziamento de produção industrial em Santo André com avançado conglomerado de prestação de serviços. Publicações especializadas deram amplo espaço ao projeto. A revista Exame São Paulo reservou reportagem de três páginas sob o título “Charme italiano”. Retirar Santo André da penumbra do terciário de baixo valor agregado era uma das obsessões de Celso Daniel. A Cidade Pirelli comportaria um campus para 15 mil universitários, torres corporativas, prédios de pequenos escritórios, empresas de tecnologia, complexo hoteleiro, lojas, serviços, restaurantes e cinemas cercados por árvores e amplos gramados.
A Pirelli idealizadora da Cidade Pirelli queria uma réplica do projeto Bicocca, em Milão. Lá, a multinacional fez do histórico parque industrial da matriz, na periferia de Milão, moderno bairro planejado de 750 mil metros quadrados. Ali estão a sede administrativa da Siemens, do Deutsche Bank e da própria Pirelli. Também fazem parte do ambiente milanês edifícios de apartamentos e o campus da Universidade de Milão, além de parques, serviços de lazer, equipamentos esportivos e o Teatro degli Arcimboldi.
Celso Daniel sonhava com algo assim para Santo André, mas, morto em janeiro de 2002, deixou a realização para gerações futuras de administradores públicos. Duvido, entretanto, que, vivo, conseguisse comandar institucionalmente a empreitada, da mesma forma que o projeto Eixo Tamanduatehy naufragou após sua morte. A explicação é simples: o Grande ABC tem enormes dificuldades para competir com outras porções do Estado que, entre outras vantagens, contam com a possibilidade de incrementar a guerra fiscal sem torná-la bumerangue.
O que li hoje sobre o futuro de áreas reservadas inicialmente para a Cidade Pirelli é inquietante. Está ali impresso que teremos espécie de feira livre para a ocupação daqueles terrenos, que, pelo noticiário, serão retalhados conforme o interesse dos clientes. Tudo sob o pó de pirlimpimpim do trecho sul do Rodoanel.
A salvação da lavoura da economia do Grande ABC em forma de Rodoanel é uma balela. Essa serpentina que interligará a região ao lado oposto da Grande São Paulo, de cara para o gol das principais rodovias estaduais, é, com o perdão do clichê, uma faca de dois gumes — como escrevi pioneiramente há muitos anos. Diria que, pelos desajustes, descasos e ignorância, a face de evasão de empresas é mais cortante que a face de atração de investimentos. Ainda mais que oportunistas de plantão trataram de reservar nacos enormes de vastas áreas para especulação imobiliária, tornando o acesso ao pequeno e médio negócio façanha impossível.
Quem conhece minimamente a história do Grande ABC e viveu intensamente os projetos propagandeados nos últimos 20 anos só tem mesmo de sentar e chorar com a implosão da Cidade Pirelli. E sentar e chorar de novo com a perspectiva de especulação imobiliária do plano de negociação das áreas remanescentes.
O PT de Santo André tem muita culpa no cartório porque não reuniu capacidade de articulação para efetivar ou adaptar o projeto Cidade Pirelli sob novas perspectivas, ou no mínimo por não ter reunido a mídia ainda enquanto governo para explicar juntamente com a direção da Pirelli as razões que determinavam o congelamento dos planos. A sociedade embalada pela perspectiva da Cidade Pirelli não poderia ser subestimada numa prestação de contas.
O PTB de Aidan Ravin não pode escapar de forma alguma do enforcamento moral pelo fracasso do projeto Cidade Pirelli porque, 15 meses depois de assumir o Paço Municipal, vem a público para avalizar a decisão daquela multinacional sem contrapor novo plano, adaptado às circunstâncias locais e macroeconômicas.
Um bom governo, um governo de fato preocupado com o futuro do Grande ABC, já teria iniciado o mandato com uma proposta de retomada dos debates sobre a Cidade Pirelli. O que se apresenta, num casamento que pode ser espúrio com a proposta de aprovação de uma legislação voltada para a guerra fiscal, é um tremendo chute dos fundilhos de todos que caíram no conto de uma Santo André menos provinciana.
Vamos de mal a pior, infelizmente.
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