Nem todo o Grande ABC escorregou na ladeira do Plano Real e expôs ao voyeurismo sádico a intimidade do esgarçamento do tecido automotivo. Entre 1994 e 2007, pelo menos São Caetano e Diadema escaparam do streep tease do Valor Adicionado. Esse medidor de produção de riqueza que não deixa a taradice de ufanista cantar de galo foi terrivelmente penalizador com Ribeirão Pires, que perdeu em termos reais 39,54% do PIB produtivo, mas deu uma maneirada com São Caetano, que avançou 4,76% e, principalmente, com Diadema, com subida de 15,53% no período. Santo André não escapou da degola ao atingir perda de 12,80%, São Bernardo sofreu um pouco mais com 15,53% e a minúscula Rio Grande da Serra caiu 22,96%. Mauá foi bastante discreta na queda de 2,77%. No cômputo geral, o Grande ABC perdeu 12,37%. Ou aquela soma de três municípios (Ribeirão Pires, Mauá e Rio Grande da Serra) e um tantinho mais. Ou seja: se após os oito anos de FHC ficamos de tanga, com Lula da Silva ao menos cobrimos o tronco com uma camiseta.
É muito provável que quando os dados do ano passado ganharem versão oficial da Secretaria da Fazenda do Estado, o Grande ABC terá diminuído um pouco mais a derrapada no período pesquisado e poderá, com isso, recompor-se com certa pudicidade.
Mesmo com a intempestiva chegada da crise internacional no território brasileiro, em setembro do ano passado, nada sugere que o último trimestre decepe a cabeça de crescimento dos nove meses anteriores. É provável sim que haverá sangramento de um supercílio automotivo esmurrado pelos efeitos colaterais dos abusos do sistema financeiro internacional. Não menos duvidoso que o nariz petroquímico apresente escoriações, que as orelhas da construção civil estejam ardendo, que os cabelos de outros setores industriais estejam ressecados. Mas cabeça decepada, isso não.
Dados oscilantes
O que não se pode desprezar nesses 13 anos de metamorfose econômica parametrizados pelo Valor Adicionado é a forte oscilação dos dados. Quando Fernando Henrique Cardoso deixou a presidência, em 2002, o Grande ABC contabilizava perda do PIB produtivo de 33%. Com Lula da Silva, nos seis primeiros anos, já contando os números de 2008 como modestamente favoráveis, teriam sido recuperados 23 pontos percentuais ou 69,7% da degringolada regional. A imagem da camiseta é perfeita, podem acreditar.
É muito importante que se preste atenção à diferença entre percentagem e pontos percentuais. Muita gente confunde. Dizer que com Lula o Grande ABC teria recuperado em seis anos 23% das riquezas produtivas evaporadas durante o governo FHC é incorreto. Seriam 69,7%. Basta uma conta simples: pegue 33, diminua 10 e divida o quociente resultante da operação por 33. Sei que pode parecer cabotinismo matemático, mas é assim que chegamos ao resultado final. Ou resultado parcial da disputa particular entre FHC e Lula da Silva. Uma disputa nada política, neste caso. O que está em exame são medidas tomadas pelos dois presidentes com relação ao setor automotivo. A conversa mole de que o ambiente nacional e internacional justificaria o contraste não passa de conversa mole. O setor automotivo do Grande ABC foi duramente atingido pela política econômica de um governo que escancarou as portas a importações.
Por isso, ainda outro dia, ao ler um texto que indagava o que teria feito Lula da Silva para o Grande ABC, quase cai da cadeira. Não tenho compromisso com o PT nem com o presidente, mas escamotear a verdade é sacrilégio jornalístico.
Um alerta necessário porque indispensável é evitar que se contrate banda de rock e se reserve um ginásio esportivo para comemorar os números do Grande ABC nos últimos anos. Ainda chegaremos a outros pontos cruciais da metamorfose econômica, mas uma intervenção pontual precisa ser feita: a recuperação prevista de 69% do Valor Adicionado desperdiçado nos primeiros oito anos pós-Plano Real não significa que o Grande ABC deu a volta por cima. É claro que recuperamos parte da riqueza perdida, mas a contabilidade não pode ser linear nem mesmo fixar-se nesse quesito que não necessariamente invade as entranhas sociais dos municípios-sede dos empreendimentos. Além disso, fatores como investimentos em máquinas, equipamentos e processos, transbordantes durante o período para retirar as grandes e médias-grandes empresas do obsoletismo dos tempos de mercado fechado, ajudaram imensamente na numerologia alcançada.
Regime de engorda
Mas há outras fontes de injetamento de valores monetários na contabilidade do Valor Adicionado que vão além de fatores tradicionais de aplicação de capital na atualização de plantas e no treinamento de profissionais. Também isso ficará para mais adiante. A carga tributária é uma dessas vertentes. Tanto quanto o aumento real de custos com insumos públicos ou sob concessão pública, casos de água, esgoto, energia elétrica, comunicações. Tudo isso ajuda a engordar o Valor Adicionado. Daí, como acompanharão os leitores mais à frente, a condicionalidade do Valor Adicionado como suprassumo da ossatura econômica.
O que poderia surpreender dentro da lógica de que os números finais por Município aparentariam uma contradição, levando-se em conta que o Grande ABC se move para frente ou para trás de acordo com a indústria automobilística, é o desempenho de São Bernardo. O refluxo acumulado de 15,53% no período de 13 anos contrasta com o crescimento de São Caetano de 4,76% e de Diadema de 13,01%, outras localidades da região fortemente influenciadas pelo termômetro das montadoras e das autopeças. Não existe mágica nesse quadro.
Mesmo ao recuperar no governo Lula da Silva boa parte do que se foi com FHC, São Bernardo não estancou o buraco histórico que se abriu porque o peso relativo da indústria automotiva é muito maior na estrutura de Valor Adicionado do que o registrado em São Caetano e em Diadema. Ora, como o tranco automotivo foi forte, a recuperação não conseguiu atingir a mesma velocidade e possivelmente não alcançará ao final da gestão do ex-torneiro mecânico, agora por conta da crise internacional. A descentralização automotiva, portanto, pegou São Bernardo de frente porque as principais montadoras de veículos e os grandes fornecedores de autopeças do Estado, exceto a General Motors, estão naquele território. Diadema não tem a morfologia industrial excessivamente dependente do setor automotivo como São Bernardo. E a General Motors de peso produtivo fortíssimo não abandonou São Caetano.
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