A emancipação político-administrativa dos municípios que formam o Grande ABC, desastre econômico e institucional em nome de municipalismo supostamente redentor, é o elo perdido da regionalidade que jamais será recuperado. Perdemos o municipalismo de cara única e ganhamos o municipalismo de cara múltipla. A essência do municipalismo sem adjetivos e uníssono virou um municipalismo Frankenstein, forjado na rivalidade autofágica.
Essa é também uma funda separação entre o Grande ABC e Belo Horizonte como espaços competidores por produção de riqueza e acumulação de riqueza, sínteses do PIB (Produto Interno Bruto) e do Índice de Potencial de Consumo. Por isso perdemos para os mineiros o terceiro lugar no Ranking de Potencial de Consumo preparado pela Target Markenting e provavelmente, como já afirmamos, cairemos ainda mais.
Deixar de lado essa avaliação em qualquer estudo que pretenda compreender a história do Grande ABC seria algo como tentar trocar um pneu de Fórmula-1 sem parada no box.
Quando optou pelo separativismo em meados do século passado, fragmentando-se em sete pedaços, o Grande ABC caiu na cilada da perda de escala de planejamento, de monitoramento e de resolutividade.
Perversamente, pouco antes da chegada da indústria automotiva em São Bernardo e da consolidação de um conceito capitalista que se perpetuou e se personalizou nas décadas seguintes com a segmentação de classes de consumo, o Grande ABC trocou a linha de produção pela divisão em sete compartimentos distintos. Passou a fabricar o veículo da administração pública em locais diferentes, sem conexão entre si.
Com isso, vendo agora as consequências sob o ponto de vista jornalístico, complicou a vida dos pauteiros e dos repórteres em geral, que precisam correr atrás de sete secretários de determinada pasta para saber, por exemplo, a situação da saúde nos municípios locais. Ou ouvir os sete prefeitos para compreender ou tentar compreender com alguma exatidão os reflexos da chegada do trecho sul do Rodoanel a nossas fronteiras.
Alta relevância
Isso parece irrelevante, mas não é. O impacto do Rodoanel por aqui será tão múltiplo quanto contraditório. Entretanto, a maioria uniformiza o resultado, embrulha-o e o distribui igualmente para os sete endereços. Uma loucura tão grande que se rivaliza com a estupidez. Mas isso é assunto para outro capítulo. Ou vários outros capítulos desta série.
Aliás, a grita foi geral quando escrevemos pela primeira vez, sob a maré de endeusamento do Rodoanel, que a obra poderia significar tanto ganhos quanto perdas econômicas, porque da mesma forma que trará investimentos poderá provocar novas evasões por conta de complicações infraestruturais internas. Hoje já não se tem mais dúvida sobre essa faca de dois gumes.
Voltar ao passado e recompor a unidade regional que a partir dos anos 1990, Celso Daniel à frente, se tentou reconstruir pelo menos institucionalmente é acreditar em duendes. Pelo menos até que uma grande desgraça provoque catarse coletiva, ninguém vai mesmo levar a sério esse tal de regionalismo. Exceto os apóstolos cada vez mais raros e sinceros, chamados também de otários pelos céticos e oportunistas que continuam dando as cartas em meio ao infortúnio.
A disputa entre Grande ABC e Belo Horizonte por investimentos envolve o mesmo sentido de alguém interessar-se por um apartamento muito bem localizado que tenha sete herdeiros como interlocutores e um outro apartamento, semelhantemente interessante, que tenha apenas um proprietário. O Grande ABC é uma grande casa da sogra de interesses difusos, contraditórios, antagônicos e muitas vezes destrutivos. Essa herança dos anos 1940 e 1950 raramente é apontada como empecilho incontornável à consolidação regional. Magnificou-se de tal forma o processo de emancipação político-administrativa dos municípios que é politicamente incorreto ao menos lembrar que foi um fracasso para o conjunto da sociedade do Grande ABC.
Com todo o respeito que me merecem os emancipacionistas, eles não sabem o que fizeram para as gerações futuras que estão aqui e agora sofrendo com o empastelamento institucional do Grande ABC.
Competição desigual
Imaginem os leitores um empreendedor interessadíssimo em investir no Grande ABC que tenha também Belo Horizonte na alça de mira. Para tomar o pulso da região, é preciso somar e multiplicar números, varrer as divisões políticas e administrativas para baixo do tapete, desconsiderar a proximidade nociva da Capital, esquecer que tucanos e petistas protagonizam disputa desalmada para ver quem conseguirá mais votos para o governo do Estado e a presidência da República no ano que vem. Já em Belo Horizonte o diálogo será mais claro e direto com quem de fato manda em todo o território, por mais que a oposição seja aguerrida. Quem está no poder está de fato no poder, não há mitigação, não há paralelismo, não há subjetividades.
Quem comanda de fato o Grande ABC? Os quatro prefeitos relacionados ao governo estadual, no caso Santo André, São Caetano, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, ou os três prefeitos mais próximos do petista presidente da República, no caso São Bernardo, Diadema e Mauá? Ou teremos piratas no comando, ou na tentativa de comando?
Embora o PIB dos petistas alcance 70% do Grande ABC, na contabilidade do Clube dos Prefeitos e da Agência de Desenvolvimento Econômico a maioria é azul, tucana, de quatro a três. Ou seja: economicamente os petistas podem afirmar que estão à frente da grande massa de produção de riqueza e também de acumulação de riqueza no Grande ABC, mas politicamente estão atados pela matemática institucional.
Belo Horizonte não tem esse tipo de drama. A interloculação com o governo estadual e com o governo federal é muito mais simples, direta e produtiva. Como se já não bastasse o fato de ser capital do Estado, enquanto somos periferia.
Quando lá atrás, meados dos anos 1990, se falou em regionalizar as alíquotas do ISS (Imposto Sobre Serviços) de diversas atividades econômicas, mais que correndo o prefeito Luiz Tortorello deu um golpe nos parceiros do Clube dos Prefeitos ao tomar medidas de ampliação da guerra fiscal de serviços que, de fato, começara seletivamente com o antecessor José Dallanesse.
Mais que imediatamente o então prefeito de São Bernardo, Maurício Soares, correu para proteger-se, sobretudo na atração de financeiras das montadoras ali sediadas. Quando Celso Daniel acordou, estava fora do jogo. Os mal-informados e que não acompanham a economia do Grande ABC atribuíram mais tarde ao prefeito Clóvis Volpi, de Ribeirão Pires, a quebra do pacto de regionalidade tributária. Bobagem. Ele apenas a reincentivou porque estava atrasado na corrida. Além disso, esse pacto jamais se consumou de fato. Foi apenas uma promessa de início de mandato de novos ou reeleitos prefeitos em janeiro de 1997. Celso Daniel foi espécie de bobo da corte por acreditar nos demais prefeitos.
Faltam informações
Duvido que alguma consultoria ou mesmo secretaria de Administração de qualquer uma das prefeituras do Grande ABC tenha dados comparativos da planilha de ISS dos municípios locais. Qual é a alíquota do imposto municipal que incide sobre a atividade taxista, por exemplo? E de contratação de mão-de-obra do setor de construção civil? Há quase uma centena de atividades econômicas na grade do ISS. Duvido que um empreendedor que tenha o Grande ABC como alvo encontrará alguma facilidade para, entre outras análises de definição do investimento, o quanto a atividade lhe custará de imposto municipal.
Em Belo Horizonte, unificada territorialmente, unificada administrativamente, bastará uma consulta no terminal de computador depois de acessar o endereço eletrônico correspondente.
Se no âmbito da microeconomia a rapidez de informações é fator que ajuda a decidir investimentos, imaginem então quando entra em campo a institucionalidade, entendida como capacidade de um Município dialogar com os empreendedores. É mais que provável, é certo, que Belo Horizonte tenha muito mais facilidades para exibir a interessados as reservas de espaços destinados à ocupação industrial do que qualquer um dos municípios do Grande ABC.
Suponhamos que estejam todos em igualdade de condições informativas — tanto os mineiros quando os representantes dos sete municípios locais. Mesmo assim, estaremos em desvantagem. Sempre haverá o confronto da agilidade de um espaço contra sete desgarrados entre si. Até porque, informações estratégicas de cada Município do Grande ABC não são compartilhadas com os vizinhos. No fundo, no fundo, disputam-se investimentos a ferro e fogo, embora as autoridades apareçam nas páginas de jornais exibindo sorrisos de integração regional. Nem mesmo o parentesco ideológico e partidário é levado em conta nessas situações. Na hora de amealhar recursos orçamentários, não há irmandade que resista. Em casa que falta pão, todos gritam e ninguém tem razão.
Possivelmente os leitores que em princípio tiveram dificuldades para entender o paralelismo entre o Grande ABC e Belo Horizonte no mapa do Potencial de Consumo agora não tenham mais dúvida sobre a relevância do assunto. Há raízes político-administrativas antigas que estão na origem da ultrapassagem da capital mineira. Bafejado pela industrialização dos anos 50, 60 e 70, o Grande ABC ainda não se deu conta de que o mundo gira e a disputa por investimentos passou a ser questão de vida e morte para os administradores públicos em geral.
Acreditar na atratividade compulsória do Grande ABC é confundir as bolas com o que ocorreu praticamente durante toda a última década do século passado quando os grandes conglomerados nacionais e internacionais de comércio e serviços descobriram a força do consumismo regional construído ao longo de décadas.
Quando os indicadores de Potencial de Consumo se apresentam em forma de sinal vermelho, está mais que evidenciado que a força motriz da geração de riqueza não corre mais na mesma velocidade da acumulação de riqueza.
O municipalismo autoritário e isolacionista é um incentivo tempestuoso a novas derrotas.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES