O Grande ABC acentua sintomas do que chamo de doença holandesa da economia, com fundas repercussões sociais. Os novos investimentos anunciados pelas montadoras de veículos com unidades na região — General Motors, Ford e Volkswagen — são um prato cheio para a torcida organizada de editoriais que não enxergam além da próxima esquina de interesses marquetológicos. Paradoxalmente, quanto mais se consolidar a indústria automotiva do Grande ABC, mais a doença holandesa se manifestará. Há meio século a atividade se tornou vaca premiada de arrecadação de impostos.
É claro que é muito melhor ter as unidades automotivas do Grande ABC renovadas em produtos, em tecnologia e em qualificação da mão-de-obra, mas isso é muito pouco. Os executivos das montadoras não têm nada a ver com isso. A responsabilidade maior é das autoridades públicas e lideranças econômicas locais.
Está certo que as mais fundas resoluções não estão ao alcance dos orçamentos municipais, que é preciso a participação do governo do Estado e do governo federal num plano de guerra para reestruturar o mosaico industrial do Grande ABC, mas quem pode sensibilizá-los de fato são os agentes políticos e econômicos locais. Entretanto, isso dá trabalho, exige disciplina, dedicação, visão de longo prazo e, como se sabe, a maioria está mesmo de olho na próxima eleição, ano que vem.
Há pelo menos meio século os administradores públicos do Grande ABC não têm vocação para o desenvolvimento econômico entre outros motivos porque a indústria automotiva dá suporte tributário, embora há muito já foi para o brejo a importância relativa na sustentação de empregos.
O caso do Grande ABC de doença holandesa é a dependência exagerada da produção e da comercialização de veículos. Além de estabelecerem patamar de rendimentos salariais que o tempo provou inabsorvíveis pelos demais setores, montadoras e autopeças empinam sempre em ciclos a arrecadação de impostos, como nestes tempos de incentivos fiscais providenciais do governo federal. Quando a maré baixa chega, é uma loucura.
Com as facilidades arrecadatórias do setor automotivo, advém o desprezo público por novas fontes de produção e de emprego. Até porque, por ser uma doença holandesa capilarizada em forma de autopeças, o custo relativo de produção e de emprego no Grande ABC sobrerrodas sufoca as demais atividades. Esse contraponto é fatal no confronto com outros municípios de industrialização tardia mas moderna, sem sequelas sociais clamorosas.
Ao transplantar para o Grande ABC uma expressão da literatura econômica internacional o fiz de propósito e provocativamente. Acho que a primeira vez que utilizei a expressão “doença holandesa” foi no texto que preparei como um dos articulistas da segunda versão de “Nosso Século XXI”, lançado no ano passado pela Editora Livre Mercado.
O fato é que a doença holandesa do Grande ABC é grave, porque, entre outras consequências, disfarça uma evidente desindustrialização provocada por outros setores industriais. Quem acredita que a debandada industrial se encerrou está redondamente enganado. Tenho fontes que lidam com a realidade dos fatos, nos campos de batalha de competitividade prática, que asseguram sequência do movimento de retirada.
Essa debandada não aparece na mídia porque pequenas e médias empresas não aparecem na mídia principalmente porque não há espaço para más notícias quando o jornalismo é transformado em agência de desenvolvimento econômico. E também porque nas estatísticas de Valor Adicionado os investimentos das grandes companhias em tecnologias, processos e recursos humanos elevam a produção e a produtividade que mascaram as deserções.
Num texto que preparei já há algum tempo (exatamente em 27 de março de 2002 e que foi publicado na revista Livre Mercado, não a “Deus me livre” do recuperador de impostos Walter Sebastião dos Santos) procurei traduzir de forma didática e inédita o que chamei de várias faces da desindustrialização. Aproveito este novo artigo para republicar aquele trabalho. Infelizmente, o Grande ABC provinciano não consegue associar uma boa notícia, que são os investimentos das montadoras locais, com um quadro de debilidade estrutural do setor industrial.
Muito pelo contrário: atira-se ao lixo o passado recente e remoto que afetou a base produtiva do Grande ABC e se lambuza na pontualidade de investimentos das fabricantes de veículos.
Polianas de plantão hão de dizer que está este jornalista jogando areia na engrenagem da auto-estima regional. Esse é um velho truque para desclassificar a crítica embasada que, diferentemente do elogia fácil e da omissão renitente, tem de fato compromisso com o amanhã.
Provavelmente os professores da Fundação Getúlio Vargas, Luiz Carlos Bresser-Pereira e Nelson Marconi, sofreram o mesmo tipo de crítica depois de publicarem na edição de quarta-feira do jornal Valor Econômico um artigo (”Doença holandesa de desindustrialização”) que se antepõe ao oba-oba do crescimento econômico brasileiro. A análise é profunda, explicativa e tecnicamente imbatível. Eles concluem sem firulas:
A desindustrialização do Brasil é, portanto, clara. A mudança desse cenário exige uma nova política de administração da taxa de câmbio. Os economistas convencionais, entretanto, ignorando a experiência mundial e brasileira, dizem ser impossível administrar a taxa de câmbio no longo prazo. Enquanto a sociedade brasileira não perceber o equívoco dessa posição antinacional, o governo não se sentirá com forças suficientes para adotar uma política mais decisiva de administração da taxa de câmbio e de neutralização da doença holandesa. Em consequência, as taxas de crescimento per capita do Brasil continuarão a ser aproximadamente a metade da observada nos países asiáticos dinâmicos. Teremos algumas euforias, como o que está voltando a ocorrer hoje, mas esses períodos de prosperidade aparente e efêmera não serão suficientes para levar o Brasil a crescer de forma sustentada no longo prazo — escreveu Bresser-Pereira, também ex-ministro de Estado.
No fundo, no fundo, adaptadas as condições sobre as quais os dois professores prepararam a bateria de argumentos, a situação da indústria do Grande ABC é semelhante à do Brasil. As montadoras de veículos não têm culpa no cartório, mas são sequestradas já há meio século por gente que detesta assumir responsabilidades no campo econômico.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES