Imprensa

“Ditadura militar” não existiu no
Diário. Até prova em contrário

DANIEL LIMA - 22/04/2014

Mesmo correndo o risco de ser mal interpretado, inclusive por um amigo do peito com o lastro moral e técnico do jornalista Ademir Medici, não resisti à tentação de conferir uma afirmativa do Diário do Grande ABC em matéria publicada na edição de domingo de Páscoa. Manchetou o jornal em páginas duplas internas: “Prestes a completar 56 anos, Diário desafiou o regime militar”.


 


A matéria é assinada pelo memorialista Ademir Medici e por Evaldo Novelini.  Uma das retrancas (matérias auxiliares) é mais contundente: “Jornal chamava ditadura o golpe que a concorrência dizia ser revolução”. Outra retranca: “Polesi definiu foco e manteve a defesa da pluralidade em época de restrições”.


 


Para começo de conversa, a matéria do Diário do Grande ABC comete o erro de ser pouco profunda, quando não rasa. Ademir Medici é um inesgotável estudioso da cultura regional, cultura no sentido mais amplo do verbete. Por isso, quero crer que o texto em parceria tenha sido produzido apenas como aperitivo para eventual material mais denso, que estaria sendo preparado para comemorar mais um aniversário da publicação mais tradicional da região, em 11 de maio próximo.


 


Sendo essa suposição correta, Ademir Medici terá tempo de sobra para fazer o que mais gosta e pratica com superioridade profissional inquestionável: pesquisar, pesquisar e pesquisar.


 


Falta substância


 


O texto do Diário do Grande ABC de domingo não me convence porque além de escasso em informações, pinça frases que pretendem justificar uma ação editorial de confronto do jornal contra a implantação do regime militar e seus desdobramentos durante os 21 anos de arbítrios. Duvido do material exposto porque a Imprensa nacional de grande porte estava manietada pela censura e pela autocensura. O News Seller longe estava de constar da lista dos grandes jornais do período, mas certamente reproduzia o estado de inquietação nos meios de comunicação, causado pelo regime militar.


 


Ouso dizer, com base em provas irrefutáveis, que o Diário do Grande ABC jamais se opôs tão declaradamente, e mesmo dissimuladamente, ao regime militar. “Ditadura militar” certamente foi uma expressão que saltitou aqui ou ali nas páginas noticiosas do jornal, provavelmente emitida por algum entrevistado, algum sindicalista, mas não se traduziu numa linha editorial crítica, declaradamente assumida pela direção editorial. O léxico analítico do Diário do Grande ABC não registrou essa empreitada desafiadora. Muito pelo contrário.  “Golpe militar”, “ditadura militar” e outras expressões comuns não permearam os editoriais do Diário do Grande ABC. “Governos revolucionários”, “Revolução”, estas sim caracterizaram aquele período.


 


Brigador dos bons


 


Vou fazer jus à dedicatória de Fausto Polesi quando do lançamento do livro “Editorais”, em 23 de setembro de 1982, para prosseguir com este texto. Escreveu aquele que foi um dos fundadores e por mais de 40 anos comandante da redação do Diário do Grande ABC, responsável pelo posicionamento da publicação à página quatro: “Ao amigo Daniel de Lima, que é brigador dos bons, na defesa de ideais, o meu abraço”.


 


Se a memória não me falha, o evento foi na Livraria Alpharrabio, um dos raros pontos de encontro de intelectuais da Província do Grande ABC. Isso não significa que seja um ponto revolucionário. O capital social destas terras está aniquilado pela associação de covardia, comodismo, ladroagem explícita e vagabundagem institucional.


 


O contexto profissional daquela dedicatória é importante: estava este jornalista com 31 anos de idade e, escolhido por Fausto Polesi, deixei a Editoria de Esportes, na qual atuava já havia mais de uma década. Passei a atuar como Coordenador de Produção. “Coordenador de Produção” foi um quadradinho informal que Fausto Polesi criou no organograma do Diário do Grande ABC para a direção compartilhada do dia a dia da Redação. Dividia as operações com Ademir Médici (Coordenador de Matérias Especiais) e Valdir Santos (Coordenadora Editorial).


 


Não sei se as nomenclaturas atribuídas a Ademir Medici e a Valdir Santos estão corretas, mas exprimem as tarefas definidas por Fausto Polesi. Éramos os três os comandantes do jornalismo do Diário do Grande ABC. Com a supervisão de Fausto Polesi, claro, um chefe que raramente nos incomodava, preso a uma jornada de estivador no andar superior do prédio da Rua Catequese.


 


Honrando a dedicatória


 


Honrando pois a memória daquele que foi um dos principais profissionais da Imprensa da região ao longo do século passado, eis-me aqui a avocá-lo, pós-morte, para contestar a matéria publicada na edição de domingo do Diário do Grande ABC.


 


“Editorais”, o livro no qual Fausto Polesi reproduziu aqueles que considerou os textos mais importantes até aquela data à frente do Diário do Grande ABC, inclusive do período News Seller, reúne vários artigos de âmbito regional e nacional, principalmente sobre a política, e em nenhum utiliza a expressão “regime militar” “ditadura militar” ou assemelhados. Nenhum, absolutamente nenhum.


 


Mais que isso: trata o regime militar com expressões esconjuradas pelos esquerdistas de ontem e de hoje: “Revolução”, “Governo revolucionário” pipocam nos artigos de Fausto Polesi. Tive o cuidado de ler todos os textos neste final de semana e anotar cuidadosamente, como sempre o faço, os trechos mais importantes sob a ótica em questão.


 


Sabem os leitores o que encontrei? Que Fausto Polesi não selecionou um único artigo que abordasse de forma contundentemente crítica o regime militar. Fausto Polesi era um jornalista cáustico, muito mais cáustico do que este que lhes escreve. Ler “Editoriais” é um exercício de comprometimento com a cidadania. Fausto Polesi distribui catiripapos à direita e à esquerda, sem contemplação. Legislativos e Executivos, então eleitos democraticamente, apanhavam o tempo todo porque aquele Brasil e aquele então Grande ABC, hoje Província, encavalavam escândalos.  Mal imaginavam os críticos que a classe política nacional treinava exaustivamente para repassar às gerações seguintes uma base sólida de como corromper com sofisticação e em permanente desafio às tecnologias de comunicação que alguns malucos inventariam para tornar tudo mais transparente.


 


Síntese do período


 


Convenhamos que, fosse o Diário do Grande ABC uma das poucas exceções entre os jornais brasileiros, impondo-se com coragem ao regime militar, o diretor de Redação que durante décadas o liderou não cometeria o desatino de desprezar, numa coletânea de textos, suposto posicionamento de rebeldia ao autoritarismo fardado. Principalmente ao editar aquela obra durante uma temporada – 1982 – em que o regime militar já dava claros sinais de fadiga de material. Provavelmente faltavam insumos. Ou os insumos não eram apropriados à perpetuação da espécie crítica.


 


Mesmo com a possibilidade de ser mal interpretado, mas fiel aos termos da dedicatória de Fausto Polesi numa obra que guardo com todo cuidado, ouso reproduzir alguns parágrafos de um dos “Editoriais” daquele jornalista para que, diferentemente da matéria do Diário do Grande ABC de domingo, não se estabeleça juízo de valor equivocado sobre o que se imprimiu naquele período de exceção.


 


Lembro aos leitores que tomei cautela para selecionar os parágrafos que se seguem sem correr o menor risco de descontextualizar os enunciados de Fausto Polesi. Ou seja: não produzi um filtro técnico para sustentar a tese de que o Diário do Grande ABC não se opôs ao regime militar, nem tampouco se referiu ao período com a expressão condenatória de “ditadura militar”. 


 


À página 93 de “Editoriais”, sob o título “Anistiar não é jogar na Bolsa”, Fausto Polesi parece expressar sem retoque o pensamento editorial do Diário do Grande ABC ao longo daquele período de treva democrática:


 


 Para certos assuntos – cassações de mandatos, recesso do Congresso, leis especiais – o governo revolucionário é expedito, rápido, fulminante. Entretanto, para outros – punições de corruptos, contenção dos atos de violência com o consequente enquadramento de seus autores nos rigores da lei, revisão de medidas discricionárias, anistia – a lentidão, o protelamento, a indiferença quase é o comportamento corriqueiro e costumeiro. Deveria ser diferente, mas não é.


 


 Ultimamente o tema que vem ocupando as atenções é o da anistia aos presos políticos, aos exilados e banidos pela Revolução. O Ministério da Justiça, em nota ultra-rápida, contestou o número de brasileiros nas condições citadas – o qual, segundo o professor Dalmo Dalari, atinge 10 mil – comprovando que para certas questões a máquina revolucionária funciona com precisão absoluta. Adiantou ainda a nota ministerial que nada havia de errado no comportamento dos órgãos oficiais, relativamente aos brasileiros que, no estrangeiro, estavam tendo problemas de renovação de seus documentos, o que lhes dificulta a própria subsistência.


 


 Além da manifestação do Ministério da Justiça, nada aconteceu até agora no sentido da revisão dos excessos cometidos pela Revolução, na sanha de punir os “subversivos”. Em torno da anistia, o que se vem ouvindo é de lamentar, embora as diversas opiniões contra a concessão do benefício reflitam o estado de coisas do regime, ou seja, a falta de parâmetros de ação. Há muita gente dizendo, por exemplo, que o momento não é propício para o governo fazer as aberturas pleiteadas pelos que condenam as injustiças; com argumentos simplistas – naturalmente porque as punições não lhes dizem respeito e nem a familiares – colocam o problema da reparação dos erros praticados na categoria dos assuntos que sofrem as oscilações momentâneas, algo assim como jogar ou não jogar na Bolsa, aguardar o tempo certo para investir neste ou naquele papel.


 


 Ora, corrigir uma injustiça, cometida contra alguém, é obrigação permanente de quem a praticou. Não há por que esperar momento mais condizente, condições psicológicas favoráveis; a vítima da injustiça é um ser independente de fatores externos à sua pessoa. Por outro lado, moralmente falando, o que puniu injustamente carrega em si o estigma da perversão de poderes que usou, enquanto não se redimir do pecado. Se a Revolução cometeu excessos, puniu inocentes ou aplicou penas rigorosas demais para faltas de pequeno grau, o seu permanente dever é refazer o ato impróprio.


 


 Portanto, dizer que o momento não é o mais oportuno para falar-se em anistia é o mesmo que defender o arbítrio, como arma indispensável aos governantes. Está comprovado que a Revolução cometeu erros e com isso há muitos brasileiros sofrendo penas injustas. Não importa se se trata apenas de um cidadão ou de 10 mil; o que deve imperar no ânimo do governo é o desejo de reparar as suas falhas, tão logo estas são denunciadas e provadas.


 


 Claro que o governo revolucionário não pode ser injusto consigo próprio, ipso facto, com a sociedade brasileira, anistiando criminosos confessos, marginais contumazes. Mas um único brasileiro encerrado numa cela por punição injusta, consequência da obscuridade e violência de algum mentecapto dotado de poder, será o bastante para incriminar o governo. Pois se errar é reflexo da falibilidade humana, persistir no erro, mantendo injusta situação a inocentes, é usar do poder, arbitrariamente.


 


Leiam também:


 


Morre Fausto Polesi, um paradoxo de municipalismo no regionalismo


 


Por que decidiram velar o corpo de Fausto Polesi no Legislativo?


 


Leia íntegra do texto que Diário suprimiu sobre morte de Polesi*


 


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