Meus caminhos profissionais se cruzaram com os caminhos profissionais de Luciano do Valle em cinco momentos, todos no começo dos anos 1980: no Sul-Americano de Voleibol Feminino disputado em Santo André, numa entrevista de página inteira para o Diário do Grande ABC, num convite para acompanhar o inédito e desafiador jogo entre Brasil e Rússia num Maracanã sempre reservado ao futebol, numa espécie de mesa redonda em Porto Alegre e num confronto entre a Seleção Brasileira de Masters que ele dirigia e a Seleção de Masters do Grande ABC, que selecionei e preparei para um confronto num lotadíssimo Estádio Baetão, em São Bernardo. Depois, mais nada. Uma pena porque Luciano do Valle foi uma associação de locutor espetacular e empreendedor esportivo ousado.
Estava em casa sábado à tarde quando ao mudar de canal de TV fechada ouvi a notícia transmitida durante um jogo de não sei quem contra quem não imagino que tenha sido, porque estava, como dizia, de passagem, fuçando em busca de algo decente para assistir. Imediatamente fui à Band, onde o filho do José Luiz Datena, Joel, acabara de confirmar a notícia. Por umas três horas acompanhei a repercussão da morte de Luciano do Valle. Os jornais do dia seguinte, os jornais em crise de conteúdo e muito mais em crise nos feriados prolongados, expuseram apenas alguns fragmentos do que assistira na TV.
A participação de Galvão Bueno no programa então comandado em regime de urgência por José Luiz Datena, mais experiente que o filho de talento, foi o ponto nuclear das entrevistas. Esperava ansiosamente o depoimento do narrador mais popular do País. Galvão Bueno deveria espelhar-se em cada frase que pronunciou sobre a importância de Luciano do Valle. Assim, com aquela sequência breve mas inteligente, seria menos contestado tanto nas transmissões esportivas como no programa “Bem, amigos”. Mas como sê-lo se TV é audiência e audiência é flertar o tempo todo com o grotesco, mesmo que o grotesco ganhe forma de nacionalismo esportivo estúpido?
Nascedouro do voleibol
Sobre Luciano do Valle, nossos caminhos se cruzaram rapidamente no nascedouro do voleibol brasileiro, daquela geração de medalha de prata olímpica. Vivíamos o começo dos anos 1980, mas antes disso, com grandes clássicos entre Pirelli e Atlântica Boavista. Antes, a decisão do Sul-Americano de Voleibol Feminino no lotadíssimo Ginásio Pedro DellAntonia, em Santo André, foi algo memorável.
Era editor de Esportes do Diário do Grande ABC e repórter do Estadão e do Jornal da Tarde na sucursal de Santo André. Demos, com uma equipe da qual me orgulho, um show de cobertura. Naquela época, reservar uma página inteira durante uma semana a competição que não fosse futebol era loucura editorial. Naquele tempo o Diário do Grande ABC tinha capacidade imensa de mobilização. Lotamos o DellAntonia também porque, na TV Globo, ainda, Luciano do Valle e sua equipe ofereceram cobertura intensa ao evento.
A Seleção Brasileira de Isabel, Jaqueline, Vera Mossa e tantas outras musas, ganhou das peruanas muito mais qualificadas, mas que sucumbiram à pressão e às moedas lançadas pelos torcedores. O ambiente de hostilidade foi criado por este jornalista. Levei às páginas do Diário, e também do Estadão, a notícia de que o técnico coreano Man-Bok Park, das peruanas, se recusou a me conceder entrevista, exceto se lhe pagasse em dólar, já que desprezava a deflacionadíssima moeda nacional.
Entrevista inesquecível
A entrevista de página inteira com Luciano do Valle se deu logo em seguida. Desloquei-me a seu escritório, na Capital. Pena que não a tenha em meus arquivos, mas, quem sabe, um dia desses vou até o Diário do Grande ABC e consigo uma cópia. Luciano mostrara-se exuberante. Voltei impressionadíssimo com aquele jovem que deixara a TV Globo e começou a apostar todas as fichas como misto de narrador e organizador de eventos. Um desbravador que sofreu os efeitos colaterais da dupla ação, já que jornalismo e publicidade são estradas excludentes sob a ótica da maioria dos profissionais de escrita. Luciano do Valle fez o possível para sustentar-se na corda bamba ética. Não poucos o condenaram o tempo todo porque trafegar incólume por esses dois mundo é milagre.
A mesa redonda com Luciano do Valle e o então presidente da Confederação Brasileira de Voleibol, Carlos Nuzman, hoje presidente do COB (Comitê Olímpico Brasileiro) foi rápida e logo após um jogo da Seleção Brasileira de Voleibol Masculino em Porto Alegre. Fui surpreendido com o convite para participar da transmissão ao vivo.
A viagem de avião que tanto detesto para ver o jogo de voleibol no Maracanã do futebol foi um desperdício, porque choveu e o jogo foi adiado.
Já o jogo entre as seleções de futebol de veteranos do Brasil e da região foi um acordo para oferecer atrativo diferenciado, em transmissão ao vivo da TV Bandeirantes. Perdemos de 1 a 0 num Baetão que parecia de plástico, tantos torcedores a se espremerem e a desafiarem a física nas arquibancadas. Perder para um time que entre outros tinha Rivelino não foi derrota coisa alguma. Mesmo que o gol tenha sido feito por Cafuringa, ex-ponteiro do Botafogo e do Fluminense, já morto, espécie de Pelé ao avesso, porque se esmerava em desperdiçar gols, em fazer dos gols mais que desafio, um tormento.
Luciano do Valle já não mantinha o vigor narrativo aos 66 anos de idade, após passar por sérios problemas de saúde. Acompanhava muito pouco suas transmissões nos últimos tempos. Tenho optado pela TV fechada, sobretudo a SportV, mais confortável aos ouvidos e mais apreciável nas análises.
Meus encontros com Luciano do Valle foram marcantes. Ele era muito especial naturalmente. Nada mais lógico que se tornasse extraordinário na TV, fábrica que mitifica até os medíocres.
Luciano do Valle dispensaria a TV como suporte da imensidão de competências que multiplicou em 50 anos de carreira. Agora a TV vai ter de se virar para encontrar um novo Luciano do Valle. Não parece que exista algum exemplar na praça. Conjugar a arte da narração e a sensibilidade de promotor de eventos, mesmo depois do terreno aplainado por Luciano do Valle, parece impraticável ao mundo dos normais.
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11/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (32)