O jornalista Milton Saldanha, entrevistado aqui nesta semana, deixou uma porta democraticamente aberta à convicção plena de que o Diário do Grande ABC não atuou durante o regime militar da forma com que foi anunciada outro dia nas páginas da publicação pelos jornalistas Ademir Medici e Evaldo Novelini. Respondeu Milton Saldanha que lhe faltava apenas, para confirmar o diagnóstico de alguém, como ele, que sentiu na própria pele e na alma as dores do regime de exceção, um passeio pelo passado físico e indiscutível do jornal.
Foi o que fez, ao acompanhar o professor Antônio Andrade e um aluno da Universidade Metodista de São Bernardo em leituras de edições do News Seller e do Diário do Grande ABC. A conclusão de Milton Saldanha é especialmente respeitável não só pelos conhecimentos técnico-profissionais, mas porque aceitou um convite formulado por quem defende, acessoriamente, as premissas dos jornalistas do Diário do Grande ABC. Mais que inflexibilidade, Milton Saldanha deu uma demonstração de aguçado senso de responsabilidade social. Não é a todo momento que encontramos gente disposta a contrariar supostas verdades estabelecidas apressadamente.
A coleção do jornal que neste domingo completa 56 anos de circulação, 10 dos quais com a marca de News Seller, não alterou o posicionamento do experiente profissional de Imprensa. E, convenhamos, não alterará o pensamento e a convicção de um caminhão de jornalistas sérios como ele que decidirem repetir a experiência de vasculhar as entranhas da publicação. O que os autores da matéria que elevaram o Diário do Grande ABC ao pedestal de defensor dos pobres e oprimidos pelo regime militar precisam providenciar para salvar a reputação é formalizarem pedido de desculpas aos leitores da melhor forma que o exercício da profissão recomenda: uma nova matéria, desta feita sem onirismos. O Diário do Grande ABC não pode festejar mais um aniversário de fundação sem prestar contas aos leitores sobre um caso maltratado como esse.
Ziguezagues históricos
O que Milton Saldanha constatou de mais grave no passado do Diário do Grande ABC está consolidado em meu acervo físico pessoal, com mais de três mil pastas, às quais recorro de vez em quando: o comportamento editorial da publicação registrado durante o regime militar, pendularmente à direita (muito mais) e à esquerda (muito menos) repete-se em tantos outros temários que dizem respeito aos interesses da sociedade regional.
Exceto em algumas editorias que ao longo dos tempos pautaram atividades pela coerência, estabelecendo por conta própria modus operandi disciplinadamente coerente com o contexto social, político e econômico, o que mais se verifica no jornal é que a alta rotatividade de profissionais o torna refém de contradições que muitas vezes ganham a cara marquetológica de pluralidade, quando de fato são frutos de desorganização e improvisação.
Apenas a titulo de exemplo, quando ali naquela publicação estive pela última vez, como diretor de Redação entre julho de 2004 e abril de 2005, recebi um quadro de recursos humanos debilitadíssimo. Nada menos que mais de 100 anos de experiência naquela redação foram desperdiçados com demissões voluntárias ou impostas. Uma publicação regional que comete tamanho desatino não reúne um grupo diretivo com sensibilidade à importância do produto. Foi por isso que, numa reunião de diretoria, disse sem meias palavras que os leitores do Diário e de qualquer bom jornal que se preza não estão preocupados com a identidade dos diretores acionistas, mas com o conjunto de nomes que integram a alma das páginas impressas – o quadro de jornalistas.
Agora, com a devida autorização de Milton Saldanha, reproduzo o e-mail que recebi nesta manhã:
Caro Daniel Lima
Na agradável companhia do professor Antônio Andrade e do estudante Henrique, fiz um passeio no tempo, nesta quarta, sete de maio, mergulhando no passado através das páginas do News Seller e do seu sucessor Diário do Grande ABC.
Quero compartilhar com vocês minhas impressões, da forma mais isenta o possível, sem me investir de dono da verdade. Respeito opiniões e visões diferentes. E espero o mesmo tratamento para as minhas.
Óbvio que só numa tarde não daria para examinar a coleção do jornal em sua totalidade. Mas considero o que vi uma amostragem significativa e suficiente para conclusões muito claras.
Estes comentários não são em off. Podem ser utilizados, apoiados, contestados, etc, no melhor espírito democrático. Com eles, acredito que se esgote minha participação neste assunto. Mas fico ao dispor caso seja solicitado novamente a contribuir de alguma forma.
1) Reitero meus elogios à abordagem da matéria do dia 20 de abril pela forma como tratou o tema, chamando a “Revolução Redentora” de quartelada e golpe. Nota 10 aos autores pela coragem e visão crítica.
2) Não concordo, contudo, no plano factual, que o Diário tenha desafiado o regime militar. Bem que eu gostaria que tivesse sido assim. Mas infelizmente não foi. A História está repleta de versões e polêmicas, sobre os mais variados episódios. No caso do jornal não há margens para interpretações, porque está tudo lá, escrito, impresso, encadernado e arquivado. E os textos são claros, principalmente porque nos seus primeiros anos, tanto o News Seller, como o Diário, ainda não conheciam a velha regra do jornalismo impessoal: os textos eram opinativos e adjetivados. E não estou falando de artigos, refiro-me às notícias.
3) O News Seller foi repleto de incoerências. Fiquei pasmo de encontrar na edição de sete de julho de 1963 um editorial em defesa da UNE. Tremenda ousadia, sem dúvida. A entidade, presidida por Serra, era reduto da esquerda radical, atuante e rebelde, tinha causa. E era, lógico, inimiga declarada de Carlos Lacerda, governador do extinto Estado da Guanabara. Pois bem, na manchete de 23 de fevereiro de 1964 esse mesmo jornal elogia Lacerda, exibindo sua foto, e classificando-o como “político de indiscutíveis qualidades”.
4) Lacerda, o elogiado, era inimigo número um de Jango, que saiu na capa, com a esposa Maria Tereza, na edição de 15 de março de 1964. A matéria era sobre o famoso comício do dia 13 daquele mês, e dizia nosso News Seller: “O comício das reformas alcançou plenamente seus objetivos”. Durma-se, pois, com um barulho desses...
5) Um editorial, em 22 de março de 1964, portanto às vésperas do golpe, intitulado “O problema das reformas”, foi um blá-blá-blá confuso. Li, e reli, e não cheguei a nenhuma conclusão, se era a favor ou contra, ou antes pelo contrário. Deu a impressão que o autor não dominava o assunto, não tinha convicção sobre nada, e ficou enchendo linguiça.
6) Em 19 de abril de 1964, portanto com o golpe fresquinho, saiu um editorial sobre vereadores cassados da região. Citava o general golpista Amaury Kruel, e vejam como se referia a ele e ao golpe: “Pediu o grande militar ponderação e comedimento, a fim de não empanar o brilho da conquista democrática”.
7) No editorial de 7 de setembro de 1969, com um título que mais parecia de livro de moral e cívica – “As formas de amar a pátria” – o jornal expressava, vamos chamar assim, simpatia pelo regime.
8) A grande surpresa, sem dúvida, confirmando esse festival de contradições, foi a manchete de 31 de julho de 1968, entre aspas, coisa rara numa manchete: “Brasil vive ditadura”. No texto explicava que a frase era do general Amaury Kruel, pronunciada num evento, ou algo parecido.
9) Haveria mais, mas vamos ficar por aqui para não ser cansativo. Quem pinçar isoladamente cada uma destas edições poderá dizer que tem ali uma prova da oposição do jornal. Ou, ao contrário, do quanto era golpista. Basta escolher.
Que cada um tire suas próprias conclusões. Se é que dá para tirar alguma conclusão.
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