Economia

Mobilidade manipulada

DANIEL LIMA - 09/11/2009

O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), vinculado ao Ministério do Planejamento, massificou durante a semana passada em toda a mídia nacional uma barbaridade informativa que passou em branco pelo mataburros da reflexão. Trata-se da notícia de que entre 2005 e 2008, 11,7 milhões de brasileiros abandonaram a condição de menor renda, enquanto sete milhões ingressaram no segundo estrato de renda e 11,5 milhões de pessoas transitaram para o estrato superior de renda. Ou seja, 18,5 milhões ascenderam socialmente no Brasil em apenas três anos.

Por mais que o governo Lula da Silva venha provocando mudanças sociais no País, o Ipea exagerou na dose. Vou explicar as razões.

Para retirar o texto do gueto econômico, procurarei ser didático. Imagine uma família de 10 membros economicamente ativos, de rendimento individual em valores de 2008 que flutuam entre R$ 188 mensais (chamado pelo Ipea de primeiro terço da base da pirâmide social), passando por outros com rendimentos entre R$ 188 a R$ 465 (o chamado segundo terço, de segmento intermediário) e, por fim, o último terço, que representa o estrato superior de renda, de vencimentos individuais acima de R$ 465 mensais.

O Ipea comparou os valores individuais de renda de 2008 com os de 2005 para chegar à conclusão que 10% da população brasileira ascenderam socialmente.

Ora, ora, o enunciado pode até refletir uma verdade restrita, mas não passaria disso, de verdade restrita. E verdade restrita não é a verdade ampla.

A população brasileira, que sintetizo numa família de 10 pessoas, tem mais faixas de rendimento do que estipula ou manipula o Ipea. Entre os que ganham mais de R$ 465 mensais, terceiro terço dos estudos do Ipea, há muitas grades de rendimento individual.

Se os 10 membros da família sugerida recebiam mensalmente em 2008 o total de R$ 20,5 mil enquanto, três anos antes, valores corrigidos, o total atingia R$ 25 mil, é claro que houve perda. Mas na contabilidade do Ipea o recuo não aparece, porque as faixas de rendimentos acima dos R$ 465 mensais, que representam o estrato superior de renda, foram desconsideradas.

O documento do Ipea impressiona pela pomposidade, o que vale muito num País culturalmente sempre disposto a se encantar com badulaques. O título “Trajetória recente da mudança na identidade e na estrutura social brasileira” ancora a apresentação: “A retomada da dinâmica expansionista da produção e, por consequência, da ocupação da força de trabalho, combinada com a reorientação das políticas públicas, impôs mudanças recentes na estrutura social brasileira. A ascensão social aponta para alterações na identidade social mais inclusiva”.

A metodologia aplicada pelo Ipea não resiste à realidade factual. Querem um exemplo prático? Mantém o status social de classe média de quem perdeu o emprego de gerente de vendas, com rendimentos mensais de R$ 5 mil, mesmo após se transformar em ajudante de cozinha, com rendimento mensal de R$ 800.

Exagero? Qual nada: embora tenha descido a ladeira no mercado de trabalho real, com todas as influências decorrentes dessa situação no ambiente familiar e no conjunto da sociedade, quem ganhava o equivalente a R$ 5 mil por mês em 2005 e em 2008 não recebia mais que R$ 800 seguiu olimpicamente entre os frequentadores do “estrato social superior da população brasileira”, nos dizeres do Ipea, porque, como seus alquimistas definiram, está no terço mais avançado de rendimentos, acima de R$ 485 mensais.

Devorador de sites de organizações públicas de pesquisas, porque não consigo me satisfazer com a mesmice de jornais e revistas que aceitam bovinamente as informações oficiais, corri para o endereço eletrônico do Ipea. Imprimi o estudo em questão, consumi cada parágrafo, fiz anotações, ponderações e reflexões para, enfim, sentar ao computador e dedilhar estas linhas. Chamar de “população de alta renda” quem recebe mensalmente mais que R$ 465 é um escárnio.

A meticulosidade com que me lanço aos números é conhecida dos leitores mais assíduos. Não foram poucos os arranca-rabos com cenaristas de plantão contratados durante os anos mais sombrios do Grande ABC — os anos de Fernando Henrique Cardoso à frente do governo federal. Tive vários envolvimentos mais ásperos com acadêmicos e pesquisadores loucos por traquinagens numéricas e interpretativas.

Ao contrário do presidente do Supremo Tribunal Federal, que, ao cassar o diploma em jornalismo, comparou a profissão à de cozinheiro, uma sociedade não pode ficar desprotegida de qualificação na atividade, e muito menos ao sabor dos piratas. Um desastrado cozinheiro pode comprometer a saúde orgânica de um determinado grupo de comensais. Um jornalista sem a fome da curiosidade destrói reputações ou alimenta a fome pantagruélica de fantasias gestadas para ludibriar o distinto público.

O documento que o Ipea expõe em seu site e que foi amplamente divulgado pela Imprensa sem que uma voz opositora sequer se levantasse é a prova da falência do senso crítico em questões que fogem da estridência fácil de bate-bocas esportivos, políticos e comportamentais.

A declaração do presidente do Ipea, Marcio Pochmann, um pesquisador de credibilidade, revela até que ponto insistimos na reafirmação de um antigo modelo de informação — a informação estruturalmente viciada, transposta para o público sem a menor vocação ao contraditório fértil:

“Voltamos a ter uma sociedade com mobilidade. Isso está relacionado a menor desemprego” — disse o dirigente do Ipea.

Os três últimos anos pesquisados pelo Ipea e compartimentados em espaços de rendimentos mensais que fogem completamente da realidade ocupacional da economia brasileira provavelmente sintetizem uma parcela do quadro de mobilidade social no Brasil. Os menos afortunados, de fato, ganharam fôlego nos últimos anos. Esse é um ponto a ser analisado. O que o instituto poderia ter examinado com mais cuidado seriam outros pontos, a partir de maior gradualismo de rendimentos, que detectarão assimetrias desconfortáveis.

Provavelmente saltaria aos olhos a redução do que chamaria de desmobilidade social em relação ao período FHC, porque ainda não terminou o ciclo de emagrecimento de rendimentos mais substanciosos nos organogramas dos negócios privados. Um dos indicadores são os números sempre elevadíssimos de rotatividade no mercado formal de trabalho sob intenso tiroteio da farta disponibilidade de mão-de-obra desempregada. As centrais de trabalho e renda estão aí para confirmar a regra geral.

As dificuldades para o preenchimento de vagas de profissionais qualificados em atividades que estão bombando e que impulsionam o País à recuperação econômica após a crise financeira internacional são a exceção da regra.

Na série “Metamorfose econômica”, que está no 36◦ capítulo, escrevo sobre mobilidade e desmobilidade social no Grande ABC durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O tamanho do rombo foi estrondoso, mas não o seria e provavelmente nem existiria se fossem seguidos os restritos mandamentos do Ipea.

Infelizmente, a mídia nacional entende muito mais de comportamento, como evidencia a ordem unida que condena a Uniban no caso que envolve a estudante do minivestido, do que de economia. A mobilidade social divulgada pelo Ipea é uma estupidez semelhante à decisão da Uniban de expulsar aqueles pedaços de panos rosa shocking e sua dona da escadaria de acesso à sala de aula, mas não dá audiência.


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