Um intervalo histórico de três anos se passou há quase meio século entre dois fatos que marcaram a história do esporte mundial e da economia no Brasil, mas, como se fossem apenas circunstâncias que somem nas brumas do tempo sem ligação com o futuro, o Grande ABC não fez nada para usufruir da privilegiada condição de ter sido palco tanto de um quanto de outro.
Onde estão as traves, o gramado, o alambrado, os vestiários e as arquibancadas de madeira do Estádio Américo Guazzelli, do Corinthinha de Santo André, onde Pelé marcou há exatamente 50 anos, em 7 de setembro de 1956, o primeiro dos 1.281 gols de insuperável carreira?
Onde estão os registros e a herança material da construção e da inauguração da linha de montagem do Fusca, na fábrica da Volkswagen da Via Anchieta, quando Juscelino Kubitschek ocupava o banco traseiro e acenava para autoridades e trabalhadores da empresa de capital alemão e lançava o Brasil na Era da Modernidade automotiva?
Pois é isso mesmo: o Grande ABC estigmatizado pela mídia nacional entre outras razões pela estupidez policial na Favela Naval, pela criminalidade quase incontrolável da periferia de excluídos sociais, pela polêmica perda do prefeito Celso Daniel, pelas recorrentes enchentes, pelos persistentes recordes de roubos e furtos de veículos, não sabe lidar com temáticas de coloração positiva. Prefere, como se sabe, a artificialização de cenários cor-de-rosa. Principalmente para tentar enganar o distinto público de que as riquezas produtivas que se foram não mudaram nada na vida de quem ficou.
O campo do Corinthinha de Santo André poderia ter sido preservado como santuário do Rei do Futebol, mas virou parque de piscinas aquáticas de um clube que se recolheu suburbanamente à condição de eventos sociais para apenas algumas centenas de associados. Jogou-se fora a possibilidade de colocar Santo André no espetacular roteiro de um craque de futebol cujo nome está entre os mais pronunciados e reconhecidos em todos os cantos do planeta, qualquer que seja a língua, o dialeto, a condição econômica e a situação social.
Ainda dá tempo
Se o estádio do Corinthinha jamais recuperará a história jogada ao lixo por conta do descaso de dirigentes esportivos, de dirigentes públicos e da própria comunidade incapaz de enxergar a importância do futebol como elemento de identidade e, também nestes tempos de marketing, de frondosas receitas turísticas, ainda é tempo de reunir meia dúzia de interessados para erguer uma obra que -- Juscelino Kubitschek como símbolo -- reconstruiria a história da indústria automobilística do Brasil que, como se sabe, está ligadíssima ao Grande ABC.
A dúvida que persiste à justa lamentação da perda do Estádio Américo Guazzelli e ao desinteresse de regionalizar Juscelino Kubitschek crava em duas vertentes. A primeira diz conta de que por falta de institucionalidade, subproduto de cidadania, corre-se o risco de um elitismo obsoleto e discriminador considerar desimportante a arena sagrada do primeiro gol de Pelé. A segunda é a possibilidade de, por razões ideológicas, de hostilidade ao capital internacional, ao empreendedorismo privado, torcer-se o nariz para algo que lustraria o brilho da livre-iniciativa.
As duas situações soam anacrônicas e desclassificatórias. No caso do Estádio Américo Guazzelli, a lembrança da imprevidência da destruição do campo de futebol e de tudo o que o cercava como ferramental de palco memorável remete automaticamente à desconsideração ignorante de que Pelé há muito entrou para o panteão das divindades e, portanto, símbolo mágico de interesse coletivo sobre o qual praticamente nada de desabonador é capaz de colar. Já o esquecimento da obra de Juscelino Kubitschek significa desdém às transformações econômicas no Grande ABC por conta da mobilidade social que o conjunto das montadoras e das autopeças possibilitou em poucas décadas. Se o Grande ABC não é melhor do que se apresenta, não se debite a situação à chegada de multinacionais automotivas mas, sobretudo, à evasão das autopeças que giravam em torno de seus territórios. Por mais que as montadoras se fechassem corporativamente e transformassem a própria atividade razão de existir, a pecha de complicações sociais cabe a administradores públicos imprevidentes que desprezaram a regra básica do bom gerenciamento -- planejamento de olho no futuro, não nas próximas eleições.
A omissão de agentes públicos e sociais de Santo André à destruição das raízes da artilharia do maior jogador de futebol de todos os tempos é mais que uma pedra no sapato de imprudência. Trata-se, de fato, sem atenuante, de assassinato cultural que, ao ser lembrado agora, pode parecer apontamento tardio e desnecessário, quem sabe até supérfluo, diante do acúmulo de problemas que o Grande ABC registra.
O simplismo desse raciocínio justificaria o atentado contra a história apenas para os incautos. Ao demolir o Estádio Américo Guazzelli onde o ainda menino Pelé entrou em campo num segundo tempo e consagrou o andreense goleiro Zaluar, perpetrou-se indecorosa profanação esportiva de valor econômico imensurável para estes tempos em que localidades de todos os cantos do planeta buscam ícones para atrair visitantes e transformar cultura em dividendos financeiros.
50 anos
Ainda é possível, entretanto, recuperar o equilíbrio do escorregão provocado pelo descaso à implantação também há exatos 50 anos da indústria automobilística nacional pelo então presidente Juscelino Kubitschek. Especialmente em São Bernardo, capital automobilística do País. Aqui, onde a Volkswagen acionou a chave de ignição da linha de montagem do Fusca, um memorial de JK é mais que providencial. Principalmente nestes tempos em que tanto se espicaça, com razão, os exagerados custos dos veículos que saem das linhas de produção do Grande ABC, sempre em desvantagem em relação às outras unidades, espalhadas pelo País por conta de privilégios da guerra fiscal.
Tivessem os preservacionistas de Santo André demonstrado tanto empenho em defesa do palco do primeiro gol de Pelé como na manifestação pela arquitetura de um velho casarão da Avenida Dom Pedro II, transformado mais tarde em nova unidade do McDonalds, provavelmente os resultados seriam outros. A barulheira circunstancial para evitar que viesse abaixo a antiga sede do Colégio Pentágono acabou sufocada pela própria desproporcionalidade do movimento. Não havia sequer um motivo minimamente defensável para que uma nova franquia de fast-food deixasse de aportar em Santo André. O imóvel construído no final dos anos 1940 reunia tantos apetrechos históricos quanto dezenas de similares derrubados pelo mesmo motivo: não resistiram à especulação imobiliária.
Não é esse o caso do Estádio Américo Guazzelli. Primeiro porque ali o Rei do Futebol inaugurou sequência inalcançável de gols. Que motivos precisam ser relacionados além desse? Um exercício do potencial de marketing que aquele espaço proporcionaria ao clube que teve a ventura de ver Pelé iniciar arrancada à imortalidade de Atleta do Século daria a dimensão da diferença ao que se tem hoje. Preservados materialmente, gramado, alambrado, traves, arquibancadas, vestiários, tudo o que se referir àquele acervo impunemente destruído, o Corinthinha de Santo André poderia acrescentar espaços que contemplassem espécie de museu acoplado ao estádio, onde tudo que remetesse a Pelé serviria de objeto de exposição.
Já que o exercício da imaginação é livre, embora revoltante porque bem que poderia ser constituído de realidade, o Estádio Américo Guazzelli seria transformado num centro de estudos do fenômeno Pelé, tanto na prática do gramado reservado para clínicas das quais participaria o próprio personagem central, como na teoria de congressos, palestras, seminários e tudo o mais que debatesse tanto o gênio maior do futebol quanto outros vetores do esporte mais apaixonante do planeta. Em resumo: Santo André se transformaria em centro de referência de estudos do futebol, tendo como eixo catalisador simplesmente Ele -- grafia que os mais tradicionalistas, respeitosos e adoradores usam para instalar o Rei em patamar diferenciado dos demais imortais do futebol.
Qualquer pedaço
A diferença da frustração latente do sonho de reconstruir algo impossível como o Estádio Américo Guazzelli e a proposta de recuperar o legado regional de Juscelino Kubitschek é que o protagonista central da história da indústria automobilística no Brasil cabe em qualquer pedaço de São Bernardo. Nem precisa integrar-se a macroplano de construção de um tardio e pelo visto improvável museu do automóvel, no qual o histórico do presidente Bossa Nova seria espécie de departamento. Seria suficiente um memorial de JK, cuidadosamente preparado por quem conhece a indústria automotiva e sabe onde amealhar documentos e materiais que registrem a importância daquele homem público para o desenvolvimento econômico do País a partir de São Bernardo.
Também um exercício de possíveis vantagens de contar com o Memorial JK não invade o terreno da obsessão descabida. Um espaço amplo, harmoniosamente distribuído, poderia exibir exemplares de veículos que saltaram para o mercado nacional e internacional a partir do ponto de partida do Fusca. É dispensável estender-se demais sobre outros aspectos que tornariam o local ponto de interesse de quem não só pretende conhecer nuances do nascedouro da indústria automobilística tupiniquim como também, em bem engendrados pacotes turísticos, descobrir outros pontos de atratividade da região, entre os quais a Vila de Paranapiacaba, construída pelos ingleses no final do Século XIX e, graças à intervenção do prefeito Celso Daniel, salva da destruição lenta, gradual e inexorável. Melhor que, ultimamente, Paranapiacaba ganha vitalidade para se perpetuar como espetáculo de engenharia ferroviária a rasgar a Serra do Mar.
Espera-se que o descaso específico da comunidade de Santo André com a memória de Pelé no Estádio Américo Guazzelli não se estenda à São Bernardo de Juscelino Kubitschek. Ou chegamos a tal ponto de sonolência institucional que haverá quem considere tudo isso absolutamente dispensável, porque o mundo é feito de pragmatismo no sentido mais objetivo possível?
Fosse assim, os clubes não estariam cada vez mais interessados em recuperar o passado em memoriais cujos ingressos ajudam a engordar as receitas. As antigas salas de troféus estão sendo repaginadas, ao melhor estilo dos clubes europeus, por clubes brasileiros. O São Paulo e o Corinthians, mais recentemente, são provas de que é cretinice acreditar na máxima de que o jogo termina com o apito do árbitro ou que só é reiniciado nos programas noturnos de debates entremeados por mensagens publicitárias geralmente alquebradas. A história dos clubes é construída em capítulos explicitamente vivos a cada 90 minutos. Uma visita ao memorial do Real Madri e do Barcelona, disputadíssimos pontos turísticos espanhóis, é prova viva de que passado só é passado para quem não se preocupa com o futuro.
Na Alemanha
Enquanto a desatenta Santo André jogou fora a possibilidade de explorar permanentemente a marca Pelé, os alemães souberam extrair a presença do Rei do Futebol na Copa do Mundo. Quem esteve em Berlim e foi até a U3 Station, a estação de metrô em Potsdamer Platz, no subsolo do moderno e arrojado Sony Center, viu Pelé em ação, com as jogadas que arrebataram povos em paz e até interromperam conflitos. Tratado como orgulho sensorial e informativo, o Pelé Station se converteu num centro de exposição de alta tecnologia e linguagem global. Projeções e painéis de trechos de filmes dos jogos retiraram virtualmente Pelé da aposentadoria nos gramados. O evento vai viajar o mundo, a começar pela China.
A marca Pelé sempre foi mal conduzida como sinônimo de negócios. Por isso dois empresários, Marco Parizotto, diretor da Construtora Impar, e José Alves Araújo, ex-dono das lojas LUommo, adquiriram por 20 anos os direitos da marca Pelé. Eles são diretores da Prime Licenciamentos, empresa que levou a mostra do Pelé Station à Alemanha num investimento de 2,5 milhões de euros. Pelé tem em contrato um percentual sobre as vendas dos produtos e eventos com a marca que valeria perto de US$ 1 bilhão, segundo estudo dos ingleses Des Dearlove e Stuart Crainer, autores de várias publicações sobre o poder das grifes.
Numa entrevista à revista IstoÉ Dinheiro de maio deste ano, Pelé resumiu os passos de perna-de-pau fora dos gramados: "Até hoje não entendo por que nunca assinei uma linha de meias ou sapatos sociais. Tenho os pés mais famosos do mundo e ninguém nunca explorou esse fato". Os grandes atletas norte-americanos multiplicam negócios. Michael Jordan tem mais de 20 produtos vinculados a seu nome. Tiger Woods outra centena de artigos.
Nesse ponto, Pelé e Santo André fazem uma tabelinha perfeita: deixaram escapar a oportunidade de transformar o Estádio Américo Guazzelli numa romaria de turistas internacionais.
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