Parabéns ao Diário do Grande ABC. De verdade. Já passara da hora. O jornal mais tradicional da região está a dever mais qualidade, mais regionalidade, mais tanta coisa, embora por mais vácuos que deixe, por mais imprecisões que cometa, por mais vínculos viciados que registre, por mais pressões nem sempre republicanas que publica, por mais e por mais o Diário do Grande ABC não pode faltar à nossa porta todas as manhãs. Até mesmo como insumo a ser criticado. A ideia da edição de “Lá no meu bairro...”, que li nesta manhã de terça-feira, não é uma ideia nova, muito pelo contrário, mas é muito bem-vinda. Regionalidade tem múltiplas faces. Uma das quais é conhecer a comunidade em que vivemos. Ademir Medici resgata o passado. Falta quem identifique o presente e também quem perscrute o futuro.
“Lá no meu bairro...” dedica uma página inteira à Vila Humaitá, em Santo André. Mais propriamente a alguns dos personagens que fazem o cotidiano desse bairro tradicional. O projeto poderia ser ampliado e reservar duas páginas semanais a cada comunidade, enxertando-se dados sociais e econômicos. Um trabalho de mais fôlego ainda, além do presencial indispensável, em forma de reportagem.
Sei lá se os jornalistas do Diário do Grande ABC receberam mesmo que com atraso de 10 anos cópias do Planejamento Estratégico Editorial que ali deixei e que consta desta revista digital. Era então diretor de Redação do Diário.
Permaneci no cargo apenas nove meses. Os nove meses que fazem parte de meu currículo de coerência juntamente com o passado de então e o futuro que chegou. Produzi um documento histórico que nenhum outro profissional de comunicação que ali chegou teve a oportunidade de apresentar. Regionalidade era meu mantra daquele presente. Nada diferente do passado e do futuro.
Pinço apenas um trecho do documento, espécie de legado aos jornalistas do Diário do Grande ABC, para que os leitores não digam que seja eu pretensioso quando vinculo a possibilidade de “lá no meu bairro...” ser um desdobramento daquela proposta que executei apenas em parte naquele período. Leiam:
Não podemos mais ver nossos patrimônios pessoais morrerem — como têm morrido porque ainda não inventaram a fórmula da eternidade física — e simplesmente os ignorarmos por falta de conhecimento regional. Em contrapartida, ativos pessoais nacionais e internacionais acabam por ocupar o derramamento de nossos espaços editoriais. Entregamo-nos a uma globalização de mão única — onde o que vale é a globalização excludente do regionalismo contemporâneo. Os personagens que ajudam a construir de fato a história econômica, social, cultural e política do Grande ABC precisam ser valorizados em suas variadas dimensões. Reconhecer-lhes os méritos tem o significado de erguer espelhos que poderão se multiplicar em defesa da regionalidade.
Resultado histórico
Poderia reproduzir outros parágrafos do Planejamento Estratégico Editorial, mas acho desnecessário. Aquele calhamaço na verdade foi resultado de um histórico já longo naquela oportunidade de envolvimento com a Província do Grande ABC. Nos tempos de Editor de Esportes do Diário, nos anos 1970, quando contávamos com uma equipe de primeira linha, criamos e colocamos em prática a série “Nossos Clubes Amadores”. Semanalmente um jornalista da equipe, sobretudo Luiz Silva, hoje, segundo me contam, nadando em dinheiro nos Estados Unidos, agendava uma reunião-reportagem com dirigentes de determinado clube de várzea. Foram dezenas de reportagens amplas. Tenho dúvidas se o amigo Ademir Medici chegou antes ou depois com projeto semelhante, mais próximo do “lá no meu bairro...” de agora, também com dezenas de reportagens, uma a cada semana. Também na revista LivreMercado introduzi série de matérias sobre bairros, mas, diferentemente das de Ademir Medici, voltadas para a área econômica.
Compreendo o dilema do Diário do Grande ABC em dividir-se entre cobertura regional e cobertura nacional e internacional. Também passei por tamanha complicação naquela empresa durante os 15 anos anteriores em que ali trabalhei. Mas conclui no Planejamento Estratégico Editorial gestado em 2004 que regionalidade era nosso campo de batalha. Brigar por outros espaços territoriais sem as mesmas armas da concorrência da grande mídia é perder tempo e leitores.
Encontrar um eixo de equilíbrio que privilegie a Província do Grande ABC sem cometer o suicídio editorial de enclausurar-se num provincianismo rastaquera seria o encaixe perfeito. Durante os nove meses de diretor de Redação do Diário do Grande ABC, entre julho de 2004 e abril do ano seguinte, só não publicamos uma única vez a manchete de primeira página com vínculo regional. Manchete trabalhada da pauta até o texto final de forma a valorizar subjetiva e objetivamente o produto. Manchete de primeira página que se limite a registrar o fato do dia é manchete mambembe. Perdemos aquela única manchete regional porque o Papa de então resolveu bater as botas.
Abordagem nuclear
A discussão sobre o grau de regionalidade do Diário do Grande ABC num ambiente de globalização deveria merecer atenção especialíssima, com pesquisas qualitativas e quantitativas preparadas para entrevistar tanto assinantes quanto ex-assinantes e também leitores eventuais do jornal. Uma consulta que seria direcionada claramente à busca de elementos que fortalecessem a cláusula pétrea da prioridade aos fatos locais, não a submissão a eventuais fragmentações territoriais.
O Diário do Grande ABC ou qualquer outro veículo de comunicação regional jamais vai disputar com alguma possibilidade de sucesso o campo informativo extra-Província. Serão batalhas perdidas. A vocação regional não é apenas questão editorial, é a própria sustentação do negócio da informação para que o jornal não seja submetido à informação negociada.
“Lá no meu bairro...” é um ponto a se destacar no Diário do Grande ABC. Quem sabe sirva de plataforma a novas empreitadas que coloquem a Província mais distante da Província em que se transformou?
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