Economia

Locomotiva e vagões

DANIEL LIMA - 21/10/2009

Há alguma coisa equivocada em toda essa questão que envolve o Pólo Tecnológico do Grande ABC, reprogramado pelo Clube dos Prefeito e pela Agência de Desenvolvimento Econômico. Estão pretendendo levar o paciente à cirurgia sem passar por exames de especialistas. Do jeito que estão apressados, desconfio que possam até dispensar anestesia. Quem sofreria as consequências, mais uma vez, seriam os mais de 2,6 milhões de habitantes dos sete municípios locais.

Aceitaria o leitor, enfermo fosse, entregar-se a uma junta médica que, sem referências sobre os males que o atacam, o encaminharia diretamente à mesa cirúrgica?

Pois é o que um grupo de autoridades públicas anuncia para a implantação do Pólo Tecnológico do Grande ABC. Há boa vontade, boa vontade até demais, diria, mas falta engenharia com o suporte de um banco de dados econômicos e financeiros. Querem mover um veículo sem rodas, sem sistema de embreagem, sem combustível. Assim não dá.

Não corro o menor risco de descrédito ao analisar o noticiário porque não há conflito de informações entre o que publicaram os jornais Repórter Diário, ABCD Maior e Diário do Grande ABC, nas versões eletrônica e impressa.

Embora com enfoques distintos em alguns pontos, todos deságuam no mesmo ritual de municipalismo desbragado em plena Era Global. Até parece que os pouco mais de 800 quilômetros quadrados de um Grande ABC que de fato é um megamunicípio são espaço onde não cabem complementaridades. Aliás, complementaridades que o mercado tratou de produzir no ritmo da chuva da praticidade de algo que só quem já empreendeu sabe o quanto é importante, ou seja, o ganho sistêmico, inercial, de escala. A comunicabilidade econômica, cultural e social explícita do Grande ABC é a maior prova de que o municipalismo é aberração ao sobrepor-se ao regionalismo.

A importância da regionalidade do Grande ABC está para um comboio ferroviário assim como o municipalismo do Grande ABC está para um veículo de passeio dirigido por alguém que exagerou na dose.

O problema mais grave do institucionalmente enfermo Grande ABC, do qual os articuladores do Pólo Tecnológico não se deram conta, ou se deram conta não o fizeram com o senso de praticidade desejada, é o que diz respeito à descentralização dos endereços de modernidade, respeitando-se as especificidades de cada Município.

Ora bola: quais são as especificidades de cada Município do Grande ABC no âmbito econômico que valem mais que o todo também de especialidade?

Há algum estudo que dê sustentação aos discursos?

Mais que a chutometria que determinaria a escolha individual dos representantes dos municípios, o que atingiria a resistência da exequibilidade do sucesso do empreendimento seria a quebra do espírito de regionalidade que, acima de qualquer outro ponto, deveria nortear as ações.

Se deixar a critério de cada representante municipal a definição do que seja atividade específica que deveria ser contemplada por uma unidade de Pólo Tecnológico, a barafunda de resultados chegaria aos limites do intolerável.

A dificuldade que os representantes municipais têm para entender o sentido restaurador de regionalidade chega a me provocar calafrios de indignação. Por mais que um ou outro dirigente público consiga apresentar um projeto de Pólo Tecnológico revolucionário, jamais será suficientemente importante se provocar mais rompimento, mais isolamento, mais embaraços à integração regional.

Cabe ao secretariado de desenvolvimento econômico do Grande ABC, com o suporte dos respectivos chefes de Executivo, mobilizar instrumentais para compreender a realidade regional.

Sei por informações de terceiros que a Prefeitura de Santo André já conta com dados interessantíssimos do que chamaria de DNA da Economia. Seriam informações preciosíssimas que responderiam a vários questionamentos aparentemente indecifráveis ao longo dos anos.

Tem-se, em resumo, um caudal de números que despem as mais diversas atividades econômicas num autêntico streep-tease estatístico. Nada melhor para levantar a autoestima de executivos públicos que trabalham praticamente no anonimato.

A metodologia aplicada não deixaria margem a dúvidas. A reprodução da sistemática seria completamente viável às demais prefeituras do Grande ABC, segundo informações de quem está mergulhado no projeto. O compartilhamento dos dados, então, permitiria ajuste estratégico que, submetido a experts locais e também a contratados em instâncias reconhecidamente respeitáveis, abreviaria em muito o tempo que seria elástico demais para a criação do Pólo Tecnológico.

A regionalização estrutural e funcional do Pólo Tecnológico, que deveria ser o coração do empreendimento, não excluiria, necessariamente, projetos específicos de municípios que tenham de fato determinadas vocações já encaminhadas ou mesmo sensíveis à iniciativa. Utilizando a imagem do comboio ferroviário, os municípios seriam os vagões que seguiriam a locomotiva da regionalidade.

Não cometeria a estultice de sufocar o florescimento de atividades afinadas com o perfil socioeconômico e mesmo sociológico de cada Município do Grande ABC. Entretanto, há uma escandalosa vocação regional à massificação industrial de matérias primas derivadas do Pólo Petroquímico de Capuava que não pode ser jogada às traças. “O futuro é de plástico” foi uma das reportagens mais importantes que produzi, na edição de maio de 2003 da revista LivreMercado (aquela que virou “Deus me livre”). Ali está o mapa da mina da macrovocação regional. Complementaridades saltariam.

Sem que os demais secretários municipais ouvidos pelos três veículos citados se sintam escanteados, porque essa não é minha intenção, é saudável a ponderação de Fausto Cestari, vice-presidente da Agência de Desenvolvimento. Vejam o que ele disse ao Diário do Grande ABC, referindo-se à municipalização tecnológica:

“É preciso decidir se vão contratar empresas ou profissionalizar alguma entidade para realizar o papel de inventariar a contribuição de cada uma das cidades, ou ainda, se isso será feito por cada secretaria. Aqui não temos universidades empreendedoras que tomem as rédeas do projeto, nós ainda estamos aliciando-as para ver como elas podem ajudar. Portanto, temos de nós mesmos centralizar a gestão do pólo e conduzir o processo” — afirmou.

Pode não ser a melhor das alternativas, mas é um bálsamo de idealização que alimentaria incursões mais interessantes.

Os vagões não podem se desgrudar da locomotiva, porque, do contrário, o descarrilamento será o desfecho óbvio.


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