Li duas barbaridades neste final de semana. Quase caí da cadeira do escritório domiciliar. Como ficar insensível a duas propostas que só não beiram o ridículo porque preenchem todos os espaços do patético? Um sindicalista quer trocar trabalhadores que recebem seguro-desemprego pela proteção dos empregados ameaçados de perder o emprego. Uma jornalista que provavelmente nem sabe que a bola é redonda propôs que jogos que terminarem em zero a zero deveriam punir os oponentes, que perderiam pontos.
A ideia de que os times que empatarem de zero a zero não só deixem de somar um ponto como deveriam ser punidos com perda de pontos não quantificada é da jornalista Ana Estela, editora de Mercado do jornal Folha de S. Paulo. Ela assinou um artigo no caderno da Copa do Mundo no último sábado, sob o título “Mais calor, por favor”. Nota-se que Ana Estela troca as mãos do esporte pelos pés da economia. Procura trafegar pelos dois mundos que, a bem da verdade, são mundos semelhantes apenas para quem entende dos dois riscados. Seleciono alguns trechos sem retirar um tiquinho sequer da autenticidade dos enunciados:
Zero a zero premiado corrói a competitividade. É o mesmo que pagar comissão a equipe que não vende nada. Até no judô, mais paradão, há armas antitédio: lutador que não mostra agressividade é punido. Para começar, é preciso acertar a meta: vencer ou mostrar um jogo interessante? A lógica corrente é que a vitória interessa (vale três pontos), empate é vantajoso (vale um) e perder não é problema (o derrotado nada sofre). Mas assim como nas empresas não adianta só empurrar mais quantidade sem vender um mix lucrativo, o melhor produto do futebol não é a simples vitória e, sim, a emoção que ele entrega. Se a premissa faz sentido, a “bonificação” por desempenho” precisa mudar. Se, por exemplo, os times perdessem pontos nos empates sem gols veríamos jogos mais disputados. Claro que a pressão sobre o esporte é menor, porque o mercado é protegido. Nem times mais aguerridos podem vir disputar o público, nem os torcedores vão sair correndo para ver algo mais animado, como hóquei no gelo ou mesmo vôlei.
Meritocracia escancarada
A jornalista Ana Estela conhece futebol como conheço astronomia. O que para ela e para muita gente pode ser diversão (e é mesmo, embora para tantos seja também um drama ou a glória) é uma profissão dos diabos para treinadores, jogadores, comissões técnicas e tantos outros profissionais envolvidos. A competitividade é intensa e, diferente de muitos ambientes empresariais, a meritocracia não é critério subjetivo. As apresentações são públicas, em tempo real, quando se mensuram qualidade, comprometimento, preparo e tudo que muitas empresas fingem que executam porque compadrios internos protegem os preferidos de chefetes muitas vezes inseguros, majoritariamente adeptos do politicamente correto em situações que exigem reformas.
A premissa de que zero a zero é o corolário da ausência de produtividade enfeixa um conteúdo raso tanto quanto imaginar que um jogo encerrado com empate de 5 a 5 seja o suprassumo da competência. Bobagem. O zero a zero faz parte do espetáculo competitivo do futebol. Já assisti a jogos memoráveis sem gols e a peladas insuportáveis recheadas de redes balançando. Costumo dizer que um jogo com flagrante desequilíbrio no placar, ou mesmo com excessivo número de gols para cada lado, pode ser a prova provada de incompetência generalizada. As exceções confirmam a regra.
Ainda recentemente São Bernardo e Rio Claro empataram de 5 a 5 no Estádio Primeiro de Maio pela Série B do Campeonato Paulista. A conclusão a que cheguei ao discorrer sobre o jogo estava implícita nas bobagens cometidas pelos dois treinadores: eles deveriam ter sido demitidos ao final do jogo, porque ultrapassaram o direito de errar e penetraram na estratosfera da burrice juramentada. Cada um teve em determinada circunstância do jogo a possibilidade de dar um xeque-mate no adversário. Ficaram inertes no banco de reservas.
Calendário desumano
Há muito mais engenhosidade técnica e tática submersa num zero a zero do que possa imaginar a jornalista da Folha de S. Paulo. É claro que há jogos enfadonhos encerrados em zero a zero, como há exemplares às pencas de jogos insossos com um, dois, três e mais gols. Condenar as equipes à perda de pontos após um zero a zero, indo muito além de simplesmente negar ponto algum aos oponentes, é um disparate. Tanto quanto ignorar que o mundo do futebol não é feito apenas dos grandes clubes, sempre destacados pela mídia.
A maior parte dos profissionais do futebol está desempregada no segundo semestre de cada ano em que o calendário nacional contempla apenas 10% das agremiações nas quatro divisões de 20 equipes cada. Imaginar que quem está fora e quem está nos gramados ou no entorno dos gramados deve pensar primeiro em dar espetáculo, é acreditar que o mendigo ali da esquina teria obrigação de aprender passos de Nureyev para alegrar o trânsito tão enlouquecido.
Futebol é uma atividade econômica como tantas outras, com o adicional de exigir transparência total dentro das quatro linhas dos atletas e dos treinadores. Zero a zero, em muitos casos, ou na maioria dos casos, é resultado final de virtudes e deficiências equivalentes que se contrapõem e se anulam.
O caderno da Copa do Mundo da Folha de S. Paulo só está perdoado porque Ana Estela assinou o artigo na seção “Estranhos no ninho”. Mas mesmo nessa seção ela agiu como perna de pau. Basta ler a preciosidade de texto de Antônio Prata na edição de domingo, ao remontar sua história pessoal nas Copas do Mundo a que assistiu, e também na Copas do Mundo no qual era apenas um projeto de gente.
Sindicalista obtuso
Já o caso do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC é mais grave porque ele é um estranho no ninho da competitividade econômica, embora seja agente importante da atividade. A edição digital do jornal ABCD Maior publicou um artigo de Rafael Marques, também presidente da Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC, que é uma preciosidade corporativa. Sob o título “Inverter a lógica e preservar o emprego”, o sindicalista faz uma defesa inacreditável dos trabalhadores empregados em detrimento dos trabalhadores desempregados, entre outros exotismos. Alguns trechos:
Defendemos para o Brasil a possibilidade de redução da jornada de trabalho entre 20% e 50% por um período de até dois anos. As horas não trabalhadas seriam custeadas parcialmente – entre 60% e 80% do valor – por um fundo do governo e a outra parte custeada por meio de negociação coletiva entre sindicalistas e empresas. Teriam acesso ao programa, também mediante negociação coletiva, empresas que tenham registrado redução da receita decorrente de causas externas. A adoção do sistema propicia à empresa a redução de seus custos, ajustando a produção à demanda, e ao trabalhador a manutenção do emprego e do salário. (...). Os primeiros estudos realizados apontam que o custo dessa política é inferior ao montante que o País gastou, por exemplo, para pagar benefícios de seguro-desemprego àqueles que perderam seus postos de trabalho no pós-crise de 2008. No entanto, mais do que isto, o importante é inverter a lógica atual, focada apenas no amparo ao trabalhador já desempregado, colocando como prioridade a manutenção do emprego, o que, nossa concepção, deve ser a premissa principal das ações governamentais nessa área. Dessa forma, ganham o trabalhador, as empresas e o País.
Simplificando o absurdo
O flerte permanente do sindicalista Rafael Marques com a simplificação dos leigos não é abuso interpretativo. Fosse aquele texto preparado por políticos de oposição ao governo federal, ou, mais que isso, fosse apresentado um projeto de lei nos termos utilizados pelo sindicalista, o mundo cairia sobre o autor da proposta. No fundo, Rafael Marques pretende mesmo é preservar o curral sindical do qual é um dos beneficiários. A ideia de que é possível jogar nos custos do governo federal e das empresas (ou seja, na ponta final dos contribuintes e dos consumidores) a conta do descasamento entre oferta e demanda da indústria de transformação está alinhada aos ideólogos do caos econômico.
O sindicalista Rafael Marques não exibe qualquer estudo razoável que possa ser avaliado mais detidamente pelos opositores da proposta. É pouco verossímil que a medida supostamente protetora de emprego de quem está empregado custará menos que o salário-desemprego de quem está desempregado ou pode vir a ficar desempregado. Mas isso é de menos: a inviabilidade econômica e social da troca provocaria danos enormes.
Ao utilizar como referência da iniciativa a realidade vivida na Alemanha, principal economia da Europa, num trecho do artigo que deixei de lado porque bastaria a citação, Rafael Marques desconsidera todas as imensas diferenças que separam os dois países. Só no critério produtividade, que consiste em produzir mais com semelhante massa de empregados, fruto de investimentos tecnológicos e de preparo da mão de obra, entre outros vetores em que o componente educacional faz muita diferença, perdemos de goleada.
Clonar legislação trabalhista de Primeiro Mundo e tentar aplicá-la num País em que produzir muitas vezes é uma combinação de teimosia e insensatez, é artifício para convencer incautos. Mas o buraco mais fundo do enunciado do sindicalista é de ordem prática porque carrega caudalosa potencialidade de desvios. O mercado de trabalho nas regiões em que os sindicatos exercem fortes poderes ganharia múltiplas faces de privilégios, desencadeando o afrouxamento dos rigores à competitividade industrial num mundo globalizado.
Quando me dizem que Rafael Marques é uma novidade no velhíssimo sindicalismo regional, talvez estejam se referindo exclusivamente à faixa etária. Imagino a tormenta de executivos e empresários da região ante elaborados semelhantes, retirados de prateleiras congeladas pela ideologia e pelo despreparo. Não necessariamente nessa ordem.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)