Não pretendo invadir a grande área nem chutar em gol de forma objetiva para destrinchar os destroços do setor comercial de pequeno porte no Grande ABC porque esse é um tema que integrará a série “Metamorfose econômica”, um dos ofícios a que tenho me dedicado nos últimos tempos neste espaço que vai se transformar em portal. Entretanto, não resisto em abordar aspectos periféricos mas nem por isso desprezíveis do caso: o esfacelamento do pequeno negócio comercial, principalmente do varejo.
Quem recorrer aos arquivos de LivreMercado saberá o quanto escrevi sobre os impactos da invasão de grandes conglomerados comerciais na região, justamente num período de retração industrial. Os bobocas de sempre ocuparam espaços nos jornais para cantarolar glórias. Gataborralheirescos como sempre, aplaudiram o paroximismo autofágico do conceito de livre mercado.
Vou me prender agora às informações que o jornal “O Estado de São Paulo” publicou ontem sobre a concentração de poder econômico das grandes redes de comércio varejista brasileiro, que atingiu no ano passado o nível mais alto desde 2003. O jornal paulistano foi abastecido por dados da Serasa Experian.
“Numa escala de 0 a 1, na qual 0 significa total (todas as lojas têm a mesma participação) e 1 significa concentração total (apenas um estabelecimento detém todo o mercado), o indicador atingiu 0,931 no ano passado, ante 0,909 em 2007. Em 2003, início da série histórica da pesquisa, o índice era de 0,896″ — escreveu o jornal.
É uma pena que o índice da Serasa Experian não fosse criado bem antes, por volta do começo dos anos 1990, quando o Grande ABC, mais que qualquer outra região no País, foi invadido por grandes redes. O impacto no pequeno negócio de comércio se deu com força destrutiva, porque associou a queda acentuada da massa salarial e de renda. Nosso pequeno negócio estava despreparado para o jogo bruto dos grandes players. O choque foi brutal.
Voltando ao Estadão, a notícia explica que para calcular os níveis de concentração, a Serasa Experian usou como base dados de faturamento líquido de 9,8 mil empresas comerciais que, juntas, faturaram R$ 268,9 bilhões no ano passado. As explicações para o crescimento da concentração recorde variam de setor para setor, explica o jornal, mas são duas as mais importantes, segundo Luiz Rabi, executivo da empresa: os movimentos de fusões e aquisições movidos por decisões estratégicas e o fluxo de crédito desigual.
“A dificuldade dos pequenos e médios varejistas em oferecer crédito em condições similares às das grandes redes os fez perder mercado nos últimos anos” – disse Rabi ao jornal. A principal vantagem dos grandes, segundo o especialista, é a possibilidade de parcelar o preço de venda a vista em até 10 ou 12 vezes sem juros, por meio de uso de cartão da própria loja, situação que os pequenos e médios não conseguem oferecer por falta de fôlego financeiro.
A reportagem do Estadão explica algo que cansei de relatar mas que não custa nada ser repetida: o crescimento da concorrência e da concentração se deu a partir de meados da década passada de forma violenta. A abertura da economia e a estabilidade pós-Plano Real viabilizaram investimentos estrangeiros no setor de distribuição, dando a partida para amplo e incisivo processo de fusões e aquisições, atingindo inicialmente o setor de supermercados.
O jornal e o especialista não disseram o que também cansei de alertar: as autoridades públicas municipais, estaduais e federais deixaram ao deus-dará esse jogo desigual de conquista do mercado, sem condicionantes que pudessem amenizar o que chamei de nordestinização do mercado varejista. Reboquei o neologismo “nordestinização” por conta do que se transformou o Grande ABC nesse período, uma realidade, por outros motivos, até então mais impactante e visível nas capitais nordestinas.
Aliás, foi de uma viagem a Fortaleza em 1995 e de incursões por áreas centrais e periféricas da Capital do Ceará que extrai a terminologia que mais tarde grudei no processo de fragilização do comércio varejista do Grande ABC. Guardarei para “Metamorfose econômica” algumas observações importantes para reforçar a sentença de esquartejamento econômico do Grande ABC nas duas últimas décadas. Apesar de toda a patifaria verbal de alguns representantes do mercado imobiliário. Gente que só se finge de morta à leitura de meus textos, mas que no fundo, no fundo, quer mesmo é me esganar.
Especificamente, me debati nesses 20 anos de jornalismo econômico no Grande ABC contra a invasão dos bárbaros do setor de supermercados. E os números da Serasa Experian evidenciam as transformações: as cinco maiores redes do setor têm cerca de 60% do mercado. Esse percentual, segundo o Estadão, é maior do que as cinco maiores redes detêm nos Estados Unidos, onde a concentração está na faixa de 30%. Na Europa, ainda segundo o jornal, os cinco maiores supermercados chegam a ter 70% ou mais do mercado. Não é o caso da Itália, onde até alguns anos havia proteção oficial para o pequeno varejo.
Também o jornal e a Serasa Experian não abordam na participação dos grandes conglomerados supermercadistas uma realidade típica de regiões metropolitanas, onde os ganhos de escala também se fazem importantes no setor: a participação de mercado ultrapassa em muito, mas muito, a média nacional de 60%. Se a média nacional é essa, e sem que a afirmação ganhe a conotação de chutometria, diria sem medo de errar que, no Grande ABC, por exemplo, essas cinco redes abarcam provavelmente dois terços dos consumidores.
Por isso que a atuação da Coop de Antonio José Monte é reverenciada na maioria das vezes silenciosamente por formadores e tomadores de opinião, porque se trata, de fato, de uma organização que simboliza mais que a resistência de um negócio regional, mas a própria definição de um modelo que poderia inspirar o rebaixamento da taxa de mortalidade dos empreendimentos de pequeno porte.
A Coop se tornou um dos 10 maiores empreendimentos supermercadistas do País partindo de uma plataforma modesta e esgueirando-se com engenharia entre os concorrentes de grande porte, a ponto de ganhar o jogo de consumidores em seu território.
Pelo menos em relação à Coop o Grande ABC não caiu na mesquinharia do desdém. Muito pelo contrário: a cooperativa de consumo ganhou tantas vezes a aprovação da sociedade, em diferentes edições do Prêmio Desempenho Empresarial, que chegamos ao ponto de torná-la out concurs. Nada surpreendente de fato porque, além do comando de um especialista no setor, desses com quem qualquer 10 minutos de entrevista valem por uma vida inteira, a Coop, também por conta dessa mesma liderança, tem a sensibilidade social que se expressa tanto nos projetos assistenciais que abraça quanto intimidade com o público que frequenta os corredores de mais de duas dezenas de lojas como extensão de despensa domiciliar.
Pena que, no setor mercadista, a Coop seja praticamente uma exceção de crescimento numa área em que a quase totalidade de empreendimentos locais vive aos trancos e barrancos e com perspectivas de novos derramamentos de sangue, a julgar pela previsão do também especialista em varejo, Nelson Barrizzelli. O professor da Faculdade de Administração e Economia da USP (Universidade de São Paulo) e consultor de varejo afirmou que o mapa do varejo brasileiro vai sofrer nova e profunda modificação em breve. E agora a mão pesada vem do Poder Público. “Por incapacidade de adaptação às novas exigências da competitividade e às novas regras tributárias, 50% dos pequenos varejistas vão sumir ou ser engolidos pelos mais fortes nos próximos dois a três anos” — afirmou.
Barrizzelli só não disse que a política fiscal é do governo José Serra, socialista por convicção e, como a maioria dos gestores públicos estaduais e municipais, critica a carga tributária federal mas aperfeiçoa cada vez mais os mecanismos de arrecadação.
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