Nos meus tempos de editor e de diretor de Redação não teria publicado nas páginas internas a matéria que virou manchetíssima do Diário Regional de domingo. Nem tampouco a manchetíssima do Diário do Grande ABC de segunda-feira. Manchetíssima é a manchete principal de primeira página dos jornais. Um neologismo que criei e que está à espera de homologação do Houaiss.
Este é o primeiro de uma série indefinida de capítulos que configurarão a função de ombudsman não autorizado que decidi assumir como contribuição ao jornalismo impresso da região. Sei que tem gente que não vai gostar, mas não jogo para a plateia nem pratico corporativismo. Se forem minimamente abertos ao debate, donos de jornais e jornalistas deverão adorar o fato de um idiota lhes dar luz de graça. Não vejam nessa conclusão qualquer resquício de arrogância. Tenho obrigação de saber alguma coisa sobre jornalismo e repassar o quanto puder a terceiros. Os leitores vão ter visão diferente do noticiário se prestarem atenção aos requisitos básicos de avaliação do conteúdo.
Tanto a matéria do Diário do Grande ABC de segunda-feira quanto a do Diário Regional de domingo não merecem mais que nota dois, como antecipei ontem. A escala de zero a 10 as torna comprometedoras ao jornalismo desejado pela maioria dos leitores.
Relatorial demais
Leiam a manchetíssima do Diário do Grande ABC de segunda-feira: “Só 17% das ligações para o 190 são para acionar auxilio da PM”.
Qual é a maior deficiência do trabalho jornalístico? Ficou no relatorial. A matéria sugere que foi redigida tal qual foram coletadas as informações. Sem arte nem engenharia. Tanto que os dados mais importantes da retranca (texto auxiliar) da página interna poderiam ter sido introduzidos no corpo principal da matéria, enriquecendo-a sistemicamente, em vez de fragilizá-la, porque denunciatória da falta de critério na valoração das informações. Mais que isso: as declarações do entrevistado no texto auxiliar, um especialista em segurança pública, são tão fortes e apropriadas ao assunto que deveriam reverter o enfoque, redirecionando a pauta drasticamente. Para a glória do jornalismo e o comprometimento social dos leitores.
A manchetíssima poderia sair do muro relatorial e virar uma manchetíssima de posicionamento editorial, interpretativo, com forte impacto. Mas o que se pode fazer se o jornalismo está impregnado pelo vírus do distanciamento? Os editores e repórteres confundem alhos de isenção com bugalhos de omissão.
Vou repassar alguns trechos da matéria da página interna, sob o título “Das ligações para o 190, só 17% exigem atuação policial”. Nada melhor para a compreensão desejável:
Nem tudo o que acontece de errado nas cidades é caso de polícia. No entanto, a maior parte das chamadas recebidas pelo Copom (Centro de Operações da Polícia Militar) do Grande ABC é referente a demandas que não competem ao serviço da corporação. Em 2013, de 1,6 milhão de ligações atendidas pelo 190, 70% eram pedidos de informações referentes a outros serviços e órgãos. Do total de acionamentos, 13% eram trotes e apenas 17% exigiram intervenção policial.
Prova dos nove
A reportagem do Diário do Grande ABC discorre sobre a estrutura montada pela Polícia Militar. Fornece números e detalha as operações. A retranca (o texto auxiliar), recurso que se utiliza para acomodar o apanhado informativo e produtivo conforme determina a ditadura da diagramação (as disposição do texto e dos títulos em espaços previamente definidos) fornece, como já escrevi, os insumos que poderiam ter alterado completamente o enfoque principal da matéria.
Leiam alguns dos parágrafos mais importantes do texto auxiliar:
Para evitar que o telefone 190 seja utilizado para qualquer finalidade, o coronel da reserva da PM (Polícia Militar) e ex-secretário nacional de Segurança Pública, José Vicente da Silva Filho, acredita que deveria haver campanha permanente que esclarecesse o que realmente compete à corporação (...). Em algumas capitais do Brasil, como Fortaleza, no Ceará, foi criado o Centro Integrado de Operações de Segurança, que reúne os serviços das polícias Militar e Civil, controle de tráfego, bombeiros e ambulâncias. Silva Filho ressalta que esse modelo deveria ser expandido para todo o País. “Em todo lugar do mundo é assim. Nos Estados Unidos, por exemplo, o mesmo número é para a polícia, bombeiros e ambulância, pois, em um momento de emergência, a pessoa pode não ter à mão uma relação com cada contato”.
Sugestão corretiva
Resumi na medida do possível o material publicado segunda-feira pelo Diário do Grande ABC. Como se observa, não existe carência de informações básicas, mas sobram buracos ao encaixe interpretativo e analítico da situação. O correto seria mais ou menos o seguinte, como enfoque principal. A manchetíssima de primeira página seguiria o seguinte rumo: “Sem inteligência operacional, 190 da região é acúmulo de desperdício”. O texto que sugeriria como base da informação a ser transmitida aos leitores é o seguinte:
O Centro de Operações da Policia Militar do Grande ABC sofre com a falta de planejamento e engenharia operacional. Contando com 140 policiais distribuídos entre atividades administrativas e equipes operacionais, o Copom não consegue atender com produtividade a imensa demanda do serviço 190. Há desperdício de 83% nas chamadas. Um especialista no assunto, o coronel José Vicente da Silva Filho, sugere completa reformulação do sistema, adotando-se medidas já corriqueiras em vária capitais brasileiras, além de consagradas experiências internacionais. A criminalidade tenderia a forte queda se a Polícia Militar agisse com maior velocidade no atendimento dos chamados.
Resta saber se é do interesse do Diário do Grande ABC produzir reportagem que colocaria o comando da Polícia Militar contra a parede da eficiência. Os números escandalosos de criminalidade na Província do Grande ABC indicam que o baixo rendimento da PM é algo que deveria ser estudado detidamente. O serviço 190 (afirmo com base em experiência pessoal) é uma calamidade. Talvez seja justamente porque virou uma casa da sogra, explicitada nas estatísticas. O atendimento do Copom lembra a eficiência de Felipão à frente do escrete nacional na Copa do Mundo.
Manchetíssima do Regional
Já a manchetíssima do Diário Regional de domingo cometeu o pecado capital de não contar com dados suficientemente completos. O título (“Educação integral é realidade para 6% dos alunos da rede pública”) condensa imprecisão monumental que a própria reportagem expõe: “Santo André, Mauá e Rio Grande da Serra não forneceram as informações até o fechamento da edição”. Ora, sem os números de três dos sete municípios da região (Ribeirão Pires não conta com turmas em tempo integral) como é possível obter número relativo sobre o total de alunos atendidos pela educação em tempo integral?
A reportagem do Diário Regional fixou-se exclusivamente nos estudantes de São Bernardo, Diadema e São Caetano. E mesmo assim, conforme consta do texto, longe do conceito de educação em tempo integral, segundo explicou o especialista da USCS (Universidade de São Caetano do Sul), Nonato Assis de Miranda. Para ele, programas de atividades no contraturno escolar não podem ser considerados como educação integral: “Ou é, ou não é. Promovem enriquecimento cultural, indica que estão sendo procuradas melhorias, mas não podem ser consideradas como educação integral”, alertou”.
Um dos apertos recorrentes do jornalismo dos pequenos e médios veículos impressos é o açodamento na gestão de manchetíssimas. As reuniões de pauta, quando editores se encontram para debater o que pretendem publicar no dia seguinte, são cada vez mais ensaios e práticas de apagar incêndios. A escassez de recursos humanos e materiais sobrecarrega mais e mais alguns dos requisitos básicos à consumação de reportagens densas.
Os dois exemplos rebocados nesta primeira edição do ombudsman voluntário em que me transformei provavelmente serão uma amostragem de um dos maiores dramas vividos pelos jornalistas, profissão em extinção ou sob completo controle estatal nas periferias das grandes capitais.
A imperiosidade de encontrar uma manchetíssima de impacto provoca o efeito reverso de se desperdiçar munições extraordinárias à consolidação da credibilidade do jornal. Tudo porque é escasso o tempo para a engorda de dados, de declarações e de pesquisas, entre outras ações intermediárias até a execução da tarefa de escrever. É algo como preparar uma feijoada com apenas alguns dos apetrechos.
Por isso, essas duas manchetíssimas do Diário do Grande ABC e do Diário Regional são candidatíssimas a indigestões monumentais.
Agora, caros leitores, me respondam com franqueza: vocês que leram pelo menos uma das duas manchetíssimas, tinham ideia do quanto eram frágeis? Pois é: quem disse que o Ombudsman é frescura de um jornalista rabugento?
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)