Imprensa

Manchetíssima do Diário sobre
SUS mais complica que explica

DANIEL LIMA - 23/07/2014

Este é o segundo capítulo do ombudsman não autorizado dos jornais da Província do Grande ABC, projeto que se sustenta sobre um tripé que associa independência, experiência e rabugice. Não necessariamente nesta ordem. A manchetíssima (manchete das manchetes) de primeira página do Diário do Grande ABC de domingo foi de lascar. Um abismo de imperfeições. Uma montanha de dúvidas.


 


Diz a manchetíssima: “MP investiga repasse menor do Ministério da Saúde a prefeituras”. O buraco maior da reportagem é que o jornal não se preocupa em dar respostas à ação do MP, embora contasse com entrevistados dispostos a isso. Li e reli o texto e cheguei à seguinte conclusão: se o objetivo era confundir, esmerou-se.


 


Na página interna o título “MPF investiga estagnação de gasto da União no SUS” mantém o questionamento que, caso se cumprisse a função de esclarecer, o jornal teria esclarecido.  Vamos aos principais trechos da matéria:


 


 O MPF (Ministério Público Federal) e Ministério Público de Contas, vinculado ao TCE (Tribunal de Contas do Estado) em São Paulo, abriram inquérito para apurar a queda proporcional de custeio do governo federal no SUS (Sistema Único de Saúde) nos municípios. Segundo as instituições, o Ministério da Saúde deixou estagnado na última década o repasse de verbas para as cidades, sobrecarregando os orçamentos das prefeituras, que ano a ano têm de despender mais valores para compensar repasses menores da gestão federal. (...) A investigação tem como um dos pilares pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que indica que caiu de 59,8% para 44,7% a relação da participação da União na montagem orçamentária do SUS entre 2000 e 2011 no País. (...). O SUS é mantido pelos três níveis de poder: União, Estado e município. O recurso é utilizado para pagamentos de procedimentos médicos, profissionais da área e compra de equipamentos e materiais. MPF e Ministério Público de Contas consideram equivocada a correção anual dos valores investidos pelo governo federal. Em vez de vincular o reajuste à arrecadação do ano anterior e ao desempenho do PIB (Produto Interno Bruto), promotores defendem que seja fixado percentual de transferência a exemplo dos Estados e municípios, que têm de separar, pelo menos, 12% e 15%, respectivamente. (...). Por nota, o Ministério da Saúde, hoje chefiado pelo ex-secretário em São Bernardo Arthur Chioro (PT), informou cumprir “rigorosamente o que determina a Constituição”. “Na última década, o orçamento federal executado mais que dobrou, passando de R$ 32,7 bilhões (2004) para R$ 83,1 bilhões (2013), exclusivamente, em ações e serviços públicos de saúde em todo o País. Neste mesmo período, o Ministério da Saúde executou R$ 5 bilhões a mais do que o exigido pela Constituição.” (...). De acordo com a professora de saúde coletiva da FMABC (Faculdade de Medicina do ABC) Vânia Barbosa do Nascimento, desde a regulamentação do SUS, pela Lei 8.080/1990, é sabido que os recursos são insuficientes para manter equidade nos atendimentos. “Existe discussão, que eu defendo, para que o governo federal gaste com o SUS 10% de seu Orçamento.” (...).  Dados fornecidos por quatro das sete prefeituras do Grande ABC ao Diário corroboram com a investigação do MPF (Ministério Público Federal) e Ministério Público de Contas. Em uma década, cresceu a fatia de custeio de três delas no SUS (Sistema Único de Saúde). Entre as administrações de Diadema, Mauá, Santo André e São Caetano, somente a última registrou aumento significativo da participação do governo federal no orçamento do SUS nos últimos anos. O montante da União passou de 15,6%, em 2011, para 26,5%, em 2013, no custeio total da Saúde da cidade. No caso de Diadema, a União registrou queda no custeio, passando de 25,5% em 2011 para 22,8% em 2013. Nesse período o município ampliou participação de 74% para 76%, enquanto o Estado passou de 0,44% para 0,58%.


 


Complicações estruturais


 


Quais são os problemas estruturais da manchetíssima do Diário do Grande ABC, edição de domingo?


 


Fica a sensação de que o ministro da Saúde Arthur Chioro se utiliza de um argumento fatal, que tanto o Ministério Público Federal quanto o Ministério Público de Contas do Tribunal de Contas da União, desconsideram: o critério utilizado pelo governo federal está constitucionalmente preservado e, portanto, a salvo de eventuais penalidades. O ministro recorre a número de investimentos que não foram contestados.


 


A reportagem poderia ter explorado a informação sobre a constitucionalidade dos repasses. Provavelmente não o fez porque a manchetíssima estaria descartada. Ou seja: o ministro está certo. O enfoque teria de ser necessariamente outro. E aí não se sabe se haveria interesse da publicação. Há situações em que a pauta jornalística se consuma como forçada de barra. Parece ser o caso.


 


Mas há outros pontos a observar. Por exemplo: os valores mencionados sobre os repasses da União na montagem orçamentária do SUS. Se a União obedece a Constituição, conforme garante o ministro Arthur Chioro, a queda decorreria dos mecanismos legais que movem a engrenagem de financiamento do programa. Se há descasamento dos respectivos repasses quando confrontados com os valores absolutos e rigorosamente definidos de aplicação orçamentária anual obrigatória de 15% das prefeituras, são outros quinhentos.


 


Para entender a situação seria indispensável que a reportagem mencionasse os valores monetários no período de descasamento dos repasses federais aos municípios e os respectivos orçamentos das prefeituras. A participação percentual dos repasses de recursos financeiros federais aos municípios do País não dá guarida a outras argumentações. Teriam sido os repasses monetários acima dos valores definidos pela Constituição, como sugere o ministro Arthur Chioro?


 


Proposta autocondenatória


 


A proposta de equalizar o quadro, reservando-se de repasse federal um percentual fixo sobre o comportamento da arrecadação, eliminando-se dispositivo que inclui nos cálculos a arrecadação do ano anterior e o PIB, pode até ser a confluência do bom senso e da lógica de administração pública. Pode ser, mas nada garante que seja. E se o for, está mais que caracterizada a improcedência da matéria, inadvertidamente elevada à condição de manchetíssima num tom de delinquência do governo federal na distribuição constitucional de recursos aos municípios brasileiros.


 


Por isso, quando o ministro Arthur Chioro disse o que disse sobre a constitucionalidade dos repasses, faltou ouvi-lo mais atentamente. A resposta estaria ali, nua e crua. E, quem sabe, a manchetíssima poderia ter uma abordagem completamente diferente, se o propósito fosse apenas explicar. O MP está perdendo tempo em acionar o Ministério da Saúde e os administradores municipais seriam desmascarados na Província do Grande ABC caso números absolutos deflacionados mostrassem que, apesar da chiadeira nacional, os prefeitos contariam com muito mais dinheiro para essa área social do que no início dos anos 2000. 


 


Também mereceria explicação o fato de São Caetano ser o único entre os municípios citados na matéria que teve aumento de participação no repasse federal. O que faz São Caetano tão diferente e, portanto, a anular o conceito-chave que move o Ministério Público?


 


Há, portanto, algo de muito estranho na manchetíssima do Diário do Grande ABC de domingo. Há contornos de uma tremenda barrigada conceitual. De zero a 10, a manchetíssima de domingo não vale mais que zero.


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