Com atraso de pelo menos uma década e meia e sob o fogo cruzado da crise internacional que afeta tremendamente as exportações do setor, bem como com a misericordiosa mas temporária benevolência fiscal do governo federal, o Grande ABC apresenta nesta sexta-feira de manhã no palco do Teatro Cacilda Becker, em São Bernardo, o que os otimistas chamam de operação reviravolta. Como sou mais cauteloso e estou calejado pelo passado de frustrações institucionais, prefiro esperar. O fato é que a remontagem do Grupo de Trabalho do Setor Automotivo vai reunir nesta sexta-feira de manhã muitas autoridades públicas e lideranças econômicas. A coordenação é do prefeito Luiz Marinho, ex-sindicalista e ex-ministro do governo Lula da Silva.
A promessa dos organizadores é que será um festival de proposições, porque vai reunir representantes dos governos municipais do Grande ABC, do Estado e também federal, além de empresários e executivos de empresas, de entidades automotivas e de sindicalistas. O ministro Miguel Jorge participará dos dois painéis, que tratarão de “Cadeia Produtiva Automotiva e Políticas do Governo Federal” e “Cadeia Produtiva Automotiva e as Políticas do Grande ABC”.
Também vai estar presente o secretário de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo, o ex-governador Geraldo Alckmin, além do presidente da Anfavea (a associação representante das montadoras de veículos), Jackson Schneider, e o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Sérgio Nobre.
Como já me manifestei em outro artigo, considero bastante válido esse desdobramento do seminário “O ABC do Diálogo e do Desenvolvimento” idealizado pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e realizado recentemente. Daí a colocar todas as fichas, ou as fichas mais significativas, no sucesso da empreitada vai distância enorme.
Até porque, o “sucesso” no caso é relativo e está intimamente relacionado à temporalidade. O que venha supostamente a ser obtido num demorado futuro por conta dessa iniciativa tardia mas providencial mergulhará em obsolescência e, portanto, se tornará pouco sólido diante da tempestade de transformações que atingem a macroeconomia como um todo e o setor automotivo em particular.
Provavelmente o que de melhor se alcançaria para dar vitalidade às conclusões seria a entrada em campo de consultores especializadíssimos em indústria automotiva que pudessem dar forma e consistência a um planejamento a toque de caixa. Somente assim o Grande ABC, finalmente, estaria preparado para enfrentar concorrências muitas vezes predatórias no campo nacional, por conta da guerra fiscal, e também em nível internacional, sobretudo com os asiáticos loucos por nossa clientela em qualquer canto do planeta, inclusive nestas terras verde-amarelas.
Meu temor com relação a esses encontros de estrelados é que o Grande ABC venha a repetir com novos e também velhos personagens os erros do passado. Por mais que sejam importantes os cenaristas de plantão, sem planejadores e operadores de fato não há saída para a revitalização da economia local.
A perda de mais de 1% em média por ano do PIB industrial do Grande ABC desde a implantação do Plano Real não é pouca porcaria. É situação gravíssima. Principalmente quando se tem a grandiosidade da importância relativa do setor automotivo no cromossomo regional. Sofremos dessa doença holandesa, mas historicamente se preferiu observar apenas o ângulo favorável da predominância de montadoras de veículos e de autopeças na estrutura econômica e social da região.
Sei lá quanto do tempo disponível do encontro da manhã desta sexta-feira será dedicado a particularidades contagiosas da unidade da General Motors em São Caetano. Os rescaldos da estatização provisória da GM dos Estados Unidos vão atingir sim as unidades da GM no Brasil. Há noticiário contraditório, mas especialistas do ramo não perderam o senso de responsabilidade e desfilam nos jornais — nem sempre interessados em dar visibilidade às entrevistas — contraposições que executivos da empresa sonegam porque assim foi determinado como política de comunicação da matriz norte-americana.
O mais impressionante de tudo é que se procura passar a imagem de que a GM do Brasil foi ao longo dos tempos um mar de excelência em meio ao deserto de competências da matriz norte-americana. Qualquer consultor da área sabe que muitos dos equívocos gerenciais e administrativos Made in Brazil foram superados apenas pela intervenção de Detroit. Ou alguém é tão ingênuo a ponto de acreditar que durante o longo período de mercado fechado e de industrialização de carroças havia eficiência nas linhas de produção automotiva? Tanto não havia que bastaram uma penada federal com a implementação do Plano Real e o incentivo tresloucado de descentralização das plantas, atraindo-se novos competidores, para tudo começar a mudar.
Em outro artigo pretendo me deter nas possíveis consequências econômicas e sociais para São Caetano, mas não está descartada a possibilidade de o prefeito José Auricchio estar perdendo o sono. A GM representa perto de 40% das receitas de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) de São Caetano.
É mais que provável que a GM não tomará tanto espaço no encontro de hoje em São Bernardo, porque o quadro regional no contexto nacional e internacional é muito mais grave. O Grande ABC depende excessivamente da indústria automotiva. Tanto que sofreu nos últimos 15 anos as consequências da estabilização da moeda e, principalmente, da invasão dos bárbaros internacionais em vários pontos do País, apoiados por uma guerra fiscal fratricida.
A participação regional na produção de veículos de passeio caiu a 20%. Com a desvantagem mercadológica de que nos dedicamos principalmente aos veículos de maior valor agregado, fórmula encontrada para suportar os custos trabalhistas mais elevados do que os pólos que brotaram a partir da metade da última década do século passado. A redução gradual e dolorosa da participação relativa de produção de veículos no Grande ABC não só subtraiu empregos como também rebaixou salários. A mobilidade social do Grande ABC foi para o espaço. Acabou o eldorado de ascensão frenética à classe média de verdade, não essa que andaram inventando.
O encontro automotivo desta sexta-feira é o primeiro grande evento setorial realizado no Grande ABC depois do fracasso do GT Automotivo da já há muito tempo morta e sepulta Câmara Regional do Grande ABC, em julho de 1998. Num encontro realizado no salão nobre da Prefeitura de São Bernardo, então sob o comando de Maurício Soares, reuniram-se representantes de todas as vertentes do mundo sobrerrodas para discutir o futuro da atividade no Grande ABC. No mês seguinte, em agosto de 1998, produzi uma Reportagem de Capa para LivreMercado sob o título “Quem desativa a bomba sindical?”. Foi uma das matérias mais importantes da história daquela publicação que comandei até a edição de janeiro deste 2009.
O Grande ABC não estava preparado institucionalmente para discutir para valer o futuro automotivo, muita coisa mudou em 11 anos mas tenho sérias desconfianças de que a essência de dificuldades para chegar a um consenso produtivo ainda persiste. Ainda não nos demos conta de que a situação é muito mais grave do que se imagina.
Total de 1893 matérias | Página 1
12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES