O empresário da construção civil de São Bernardo, Milton Bigucci, também presidente da Associação dos Construtores, Imobiliárias e Administradoras do Grande ABC, acaba de postar no site do ABCD Maior uma pérola de triunfalismo. Junta-se Milton Bigucci àquele colunista eletrônico ao qual me referi ainda outro dia. Mimetizou-o na objetividade cortante de transformar parte em todo. Vejam um dos parágrafos do texto sob o título “O momento da casa própria”:
Crise? Ora, só vendo o que eu vi. Muita gente do povo comprando o seu sonho. E foram 121 mil visitantes. Mais de 100 mil unidades habitacionais ofertadas, novas e usadas. Negócios efetuados: R$ 1,590 bilhão.
Referia-se o empresário, num artigo que poderia ser confundido com esboço de peça publicitária, ao feirão imobiliário realizado no final de semana no Centro de Exposições Imigrantes.
Após conseguir estacionar, milhares de pessoas se aglutinavam em filas para poder entrar, gratuitamente, no salão. Lá dentro, essas milhares de pessoas, em filas homéricas, aguardavam para serem atendidas. Parece incrível: todas em busca do sonho da casa própria. São milhares de pessoas, lado a lado, buscando alcançar o seu sonho. Casais com filhos, noivos, separados, a grande maioria jovens de 20 a 40 anos, procurando produtos de até R$ 130 mil. Havia também um bom número da classe média procurando produtos maiores — escreveu Milton Bigucci.
O Brasil maravilhoso descrito pelo construtor do Grande ABC continuou explicitado no artigo:
Situação geral e comum de busca: imóvel até R$ 100 mil, FGTS de R$ 4 mil a R$ 8 mil na conta corrente, recursos próprios também até R$ 5 mil, algumas pessoas separadas, sem cônjuge, os pais e sogros querendo ajudar. Talvez não só pela solidariedade, mas também para se livrar de conviverem juntos na mesma casa.
Não estou inventando uma vírgula sequer deste texto. Está lá no ABCD Maior. Talvez Milton Bigucci, no entusiasmo de ver o seu negócio aparentemente embalado pela política de financiamento a perder de vista do governo federal, não tenha atentado para os próprios excessos.
Não me parece, sinceramente, que este deva ser o comportamento de uma liderança de classe num momento tão complicado quanto o que o Brasil vive. É claro que não se deve esperar que concorram com jornalistas independentes nas abordagens socialmente responsáveis, mas o extremo oposto é dilacerante.
Milton Bigucci está na mesma situação de quem, como ele são-paulino, está num Morumbi coalhado de tricolores numa decisão em que ao adversário se reservaram apenas 10% dos ingressos e, fanaticamente, acredita que aquele seja o retrato da proporção de torcedores no futebol paulista.
Tomar como argumento rebatedor da crise um evento do mercado imobiliário fartamente noticiado e a reboque de políticas públicas anticíclicas para minimizar os efeitos da crise mundial está longe de encaixar-se no que chamaria de compromisso civil de uma liderança econômica.
É por comportamentos públicos como esse que tem razão, muita razão, o economista americano Robert Shiller, professor da Universidade Yale, que, em parceria com o colega George Akerlof, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley e ganhador do Prêmio Nobel de 2001, acaba de lançar o livro “O Espírito Animal”. A obra busca no estudo do comportamento humano novas maneiras de explicar o que acontece na economia. O que tem o livro com o mercado imobiliário? Leiam um trecho da entrevista do professor Shiller ao jornal Valor Econômico:
Hoje em dia, serviços de assessoria em assuntos financeiros são oferecidos apenas por pessoas interessadas em vender produtos financeiros específicos. Corretores de ações e corretores de imóveis são recompensados por fazer recomendações que nem sempre são adequadas para as pessoas e não há incentivos no sistema atual para corrigir isso. Minha sugestão é que o governo subsidie esse tipo de serviço para estimular o nascimento de uma indústria de assessores financeiros que sejam desinteressados e deem segurança às pessoas. Na hora de planejar investimentos significativos e tomar decisões importantes como a compra do primeiro imóvel, as pessoas poderiam ter ajuda de um assessor especializado, com quem teriam o mesmo tipo de conexão pessoal que qualquer um tem com seu médico particular — escreveu.
A situação institucional do mercado imobiliário brasileiro é muito mais complexa e delicada do que a vigente nos Estados Unidos, embora nos últimos anos tenham sido aplicados dispositivos que reduzem fortemente a possibilidade de novos casos Encol. Mesmo assim, as entidades de classe estão muito distantes das práticas norte-americanas, como se sabe insuficientes para barrar a ganância que transformou as hipotecas em alavanca para a desorganização quase generalizada do sistema financeiro internacional.
O que tem a ver isso com o artigo de Milton Bigucci? Tudo.
Desbaratar a crise do cenário nacional, como sugere na indagação seguida de uma conceituação exclusivamente setorial movida, repito, por uma política de governo oportuníssima mas nem por isso sustentável no logo prazo, é tratar os leitores com o desembaraço típico de quem os ignora ou, pior, os subestima.
Não bastasse a própria situação do mercado imobiliário como um todo, cujos resultados aparecem nas perdas acumuladas por empresas que ingressaram na Bolsa de Valores de São Paulo, o noticiário econômico mais fresquinho sepulta o verde-amarelismo de torcida organizada do comandante da Associação dos Construtores do Grande ABC.
Querem ver? Eis o que diz o Estadão de hoje na página E4, de Economia, sob o manchete “Para Fiesp, indústria paulista cairá no mínimo 5% em 2009″:
A atividade da indústria paulista registrou queda de 14,6% nos quatro primeiros meses do ano, o pior resultado para o período desde 2003, segundo dados divulgados ontem pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). No mês de abril, o Indicador do Nível de Atividades (INA) mostrou estabilidade na comparação com março, com alta de 0,1%, levando-se em conta o ajuste sazonal. (…) A Fiesp prevê que o nível de atividade encerre o ano de 2009, na melhor das hipóteses, com queda de 5% na comparação com 2008. Esse cenário considera um crescimento de 2,4% ao mês de maio a dezembro, algo que nunca ocorreu na história da indústria de São Paulo. (…) Se esse cenário se confirmar, a queda de 5% terá sido o pior resultado da indústria paulista desde o início da série, iniciada em 2000. Para se ter uma idéia, no ano de 2003, o INA fechou o ano com queda de 3,8% na comparação com 2002 — escreveu o Estadão.
Poderia pinçar em meus arquivos dezenas de exemplos de que o mar não está para peixe, mas me limito a uma noticia publicada ontem nos principais jornais. Reproduzo alguns trechos da matéria da Folha de S. Paulo sob o título “País entrou em recessão em 2008, diz comitê”.
”Não há dúvida” de que o Brasil entrou em recessão no último trimestre de 2008, interrompendo 21 trimestres de expansão continuada da economia, o mais longo ciclo de crescimento desde 1980, que gerou incremento acumulado do PIB de 29,9% — nível só verificado na história recente no ciclo expansionista entre 1983 e 1987. As conclusões são do Codace (Comitê de Datação de Ciclos Econômicos) criado pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) para apoiar as decisões de política monetária e de planejamento das empresas. Iniciativa inédita no país, a criação do Codace segue os moldes e a proposta de comitê similar dos Estados Unidos, o NBER (Escritório Nacional de Pesquisa Econômica, na sigla em inglês), que afirmou que aquele país está em recessão desde o final de 2007. (…) A informação de quando o país entra numa fase recessiva ou expansionista é fundamental para auxiliar o planejamento das empresas e definir estratégias de estoques, investimentos e produção. Pode também ajudar o governo na definição da política monetária. “Saber quando o país entrou em recessão é fundamental para a política monetária. E enterra aquela regra sem fundamento econômico de que dois PIBs negativos seguidos indicam recessão. É um dado importante para calibrar a política de juros”, disse Sérgio Vale, economista da MB Associados. Para Vale, outra vantagem é que o comitê usa outros dados para decretar se o país está ou não em recessão — como produção, emprego e renda. “Acaba a centralidade do PIB” — afirma.
Empresário de sucesso, Milton Bigucci colaboraria intensamente com a sociedade regional se, como a maioria das lideranças empresariais do País, fosse menos corporativista. Como membro de diretorias de entidades de construção civil do Estado, poderia ajudar na criação de ferramentas tecnicamente mais confiáveis e responsáveis na condução de informações do mercado imobiliário. O desprezo — ou o descuido — a metodologias que de fato exprimam a realidade do setor seria o ponto prioritário ao atendimento da demanda por moradias sem mistificações que artificializam um cenário de fato nada cor-de-rosa como o que temos no Grande ABC desde que as indústrias de transformação bateram asas.
A Associação dos Construtores do Grande ABC jamais produziu qualquer estudo sobre o comportamento do mercado imobiliário da região sob bases concretamente científicas. Não se tem literatura alguma de peso intelectual para consubstanciar ações que desemboquem nas instâncias dos poderes Legislativo e Executivo. Quem perde com isso? Os consumidores, entregues à falta de regras éticas de um mercado exageradamente livre, e também os próprios empreendedores do setor, colocados todos no mesmo saco sem fundos de confiança ou desconfiança.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES