Na nova investida deste ombudsman não autorizado dos jornais da região, sétima de uma série indefinida, é preciso reconhecer o talento da direção editorial do ABCD Maior em dar o drible da vaca na simplicidade useira e vezeira da maioria dos demais veículos de comunicação da região. Uma simplicidade reducionista que trata leitores como amebas.
O ABCD Maior, a julgar pela manchetíssima a ser analisada, tomou todos os cuidados possíveis para não cair na armadilha do contragolpe crítico. Tanto que o material é aparentemente robusto, porque lastreado por certo cientificismo estatístico. Mas tem fragilidades ante olhos mais atentos e mentes responsavelmente idiossincráticas.
O entrevistado à produção do trabalho jornalístico tentou dar um golpe estatístico ou então simplesmente trombou com a realidade na tentativa de agradar o chefe. E teria conseguido o intento em situação de normalidade, ou seja, de aceitação passiva do material publicado pelo ABCD Maior. Pena que exagerou na dose. Mas deixo o desfecho inapelável para o final deste artigo.
Mantido pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, o ABCD Maior conta com versões digital e impressa. São três edições impressas por semana. A edição 777 de 29 de agosto é um primor de esperteza. Ou de descuido monumental.
Obra a desvendar
À maioria dos leitores a mensagem subliminar de que especificamente São Bernardo é um paraíso de emprego pode causar admissibilidade, embora os mesmos leitores tenham suficiente experiência contextual de que o bicho está pegando.
Na pior das hipóteses, entre dúvidas de cunho macroeconômicos, sobra outra mensagem subliminar: o governo federal pode estar atrapalhado, pode estar caindo do cavalo da reeleição, mas o prefeito Luiz Marinho vai dando conta do recado. A manchetíssima, portanto, é uma obra a ser desvendada.
É claro que é difícil acreditar que um contingente majoritário de leitores desvincule a crise verde-amarela, expressa na queda contínua do PIB, do quadro econômico regional, ou especificamente de São Bernardo. Mas a manchetíssima do ABCD Maior joga bem jogado o jogo da indução à preservação do prefeito petista em relação ao governo federal petista.
Enquanto o setor automotivo pega fogo, com demissões e afastamentos temporários remunerados cada vez maiores para amenizar o drama da queda de vendas de veículos, o ABCD Maior saiu com um manchete indutiva de felicidade geral em São Bernardo, a Capital Automotiva do País. A República Sindical agradece a manchetíssima: “Obras em São Bernardo vão gerar 89 mil empregos”.
Esperar que o ABCD Maior faça uma ressonância magnética completa do organismo econômico de São Bernardo é sonhar com independência completa do jornalismo brasileiro. A crise nas montadoras e nas autopeças da região, significativamente concentrada em São Bernardo, raramente sai nas páginas do jornal dirigido por Celso Horta, homem de confiança de Luiz Marinho.
Os metalúrgicos são tão protegidos no ABCD Maior quanto o mercado imobiliário no Diário do Grande ABC. Mexer com interesses da classe geraria complicações diversas. Principalmente de financiamento do produto editorial. O instinto de sobrevivência prevalece. Mais que isso: tem-se na realidade o instinto de parceria. Uma rotina no jornalismo, embora com outras nuances.
Esquerda reveladora
Não se deve desdenhar da qualidade editorial do ABCD Maior em meio às dificuldades da indústria de comunicação da região. O jornal não é um primor que poderia até dispensar a concorrência, até porque tem olhar enviesado de centro-esquerda. Mas é bem feito e alimenta diariamente uma versão interessante à consulta na versão digital. É um produto que deve ser consumido sempre. Até para que qualquer análise sobre o pensamento da esquerda tenha lastro na rede de segurança do conhecimento de causa e, portanto, fuja do aventureirismo preconceituoso.
Só o fato de ter levado à manchetíssima (manchete das manchetes de primeira página) uma equação aritmética desafiadora em forma de geração de emprego, artimanha que supostamente dificulta bombardeamento incontinenti, demonstra o quanto o ABCD Maior leva a sério duas vertentes editoriais: proteger a classe dos trabalhadores de chão de fábrica, sobretudo os filiados à CUT (Central Única dos Trabalhadores) tão próxima ao PT, e tornar o jornalismo algo menos óbvio do que o fazem outros veículos de idêntica capacidade de investimentos. O ABCD Maior tem certo grau ensaísta de sofisticação ideológica disfarçado de jornalismo.
Para o tamanho que ostenta numa região inóspita à sustentação de qualquer veículo de comunicação pelo mercado publicitário, o ABCD Maior dá relativa conta do recado. Com enviesamento ideológico. Os demais, quase todos, sofrem de enviesamento econômico.
Repasso, para subsequentes comentários, alguns dos trechos principais da manchetíssima do ABCD Maior deste final de semana. O título da página interna é menos direto e no fundo, no fundo, nega a afirmativa enunciada na primeira página: “São Bernardo estima gerar 89 mil empregos com obras até 2016”:
Os investimentos em obras na cidade de São Bernardo entre 2009 e 2016, período da gestão do prefeito Luiz Marinho, devem gerar mais de 89 mil postos de trabalho, principalmente no setor de construção civil, responsável por 88% desse contingente. A estimativa foi elaborada pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo do município e divulgada nesta quinta-feira (28/08). Para chegar neste total de empregos foi utilizada metodologia do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), que considera a quantidade de mão de obra necessária a cada R$ 10 milhões investidos. Como estão empenhados R$ 5,2 bilhões em investimentos até o final de 2016, é possível chegar aos 89.157 empregos diretos e indiretos. “O estudo leva em consideração, além da construção civil, os segmentos de fabricação de aparelhos e equipamentos de material eletrônico, serraria e fabricação de artigos de madeira e mobilidade e fabricação de outros produtos metalúrgicos. A ampliação e melhorados serviços públicos municipais garante ainda que, dos empregos gerados, 6.485 postos sejam permanentes, onde 5.252 desempenhem cargos municipais e 893 empregos terceirizados. Para o secretário de Desenvolvimento Econômico (...). Jefferson José da Conceição, a pesquisa demonstra a importância dos investimentos públicos para promover a criação de empregos. “O desenvolvimento da cidade é traduzido nos serviços e nos empregos gerados. Dessa forma, percebemos que São Bernardo está num bom momento, promovido pela intensa parceria com o governo federal para grandes obras, principalmente no segundo mandato, no qual foram investidos mais de R$ 4 bilhões em intervenções municipais” – ressaltou. No primeiro período analisado (2009-2012) foram executados projetos como a construção de duas mil unidades habitacionais, reforma da Cidade da Criança e no Parque Estoril. Já no período do segundo mandato, iniciado no ano passado, estão sendo contabilizados projetos como o Hospital de Clínicas, revitalização da Prainha do Riacho Grande, construção do Museu do Trabalho e do Trabalhador, além do início de obras do projeto Drenar para o combate às enchentes – escreveu o ABCD Maior.
Gama de problemas
A reportagem do ABCD Maior comporta variedade de questionamentos e esclarecimentos, além da restrição à enfática afirmativa da manchetíssima que se tornou apenas probabilidade da manchete de página interna. A manchetíssima não se confirma na página interna. Entre “Obras em São Bernardo vão gerar 89 mil empregos”, da manchetíssima, e “São Bernardo estima gerar 89 mil empregos com obras até 2016” vai uma grande diferença.
Até porque, a maioria dos recursos financeiros está reservada ao segundo mandato de Luiz Marinho. Um mandato que poderá ser abalado com eventuais cortes da irrigação do governo federal se o governo federal não for mais petista, como parece se insinuar com a chegada acidental da obviedade de alternativa à mesmice até então oferecida aos eleitores.
Outra tentativa de dourar em excesso a pílula do mercado de trabalho de São Bernardo foi a quase omissão de uma informação relevantíssima: dos supostos 89.157 postos de trabalho que seriam gerados nas intervenções, nada menos que 82.672 são temporários. Ou seja: 92% do adicional de trabalhadores alardeado o foram em forma de tiro curto, de largada de 100 metros, que logo se esgota. Se 10% desse total fosse resultado de um empreendimento privado, uma fábrica por exemplo, a situação seria completamente diferente. O agregado econômico teria mais força de enraizamento.
A “quase omissão” a que me refiro se deu na forma de um suplemento infográfico, discretamente ao pé da reportagem, a indicar o destino da natureza do emprego gerado. É claro que teria sido pior e maquiavelicamente desonesto a prática da omissão, que desmoralizaria por completa a matéria. Mais dia menos dia os indicadores oficiais do próprio governo federal, mais especificamente do Ministério do Trabalho e Emprego, acabam por oferecer à aferição.
Confesso que não me dei ao trabalho de exercitar contas e mais contas para conferir o resultado numérico de empregos que seriam gerados durante os oito anos de mandato do prefeito Luiz Marinho. A equação seria por demais complexa e acredito que exigiria a atenção de um econometrista de primeira linha. Não sou nem uma coisa nem outra. Mas isso é indiferente nestas alturas do campeonato. A essência da informação são outros pontos – os quais coloca o entrevistado, secretário de Desenvolvimento Econômico, Jefferson José da Conceição, em situação típica de quem marcou um encontro com o incômodo mas antes disso precisa fazer visitinha no meio do caminho ao desconforto.
Jefferson José da Conceição utiliza-se de estudos do BNDES, e mais direcionadamente de insumos da construção civil, como base de cálculo da grande massa de empregos que São Bernardo geraria no período aludido. A atividade é um dos setores que menos geram riqueza na cadeia produtiva de mão de obra. Eis o que diz o texto dos especialistas Sheila Najberg e Roberto de Oliveira Pereira, que assinam o que chamaram de “Novas estimativas do modelo de geração de empregos do BNDES”: “O setor de construção civil, embora normalmente citado como grande gerador de empregos, está em 17º lugar no ranking de emprego total. Isso se deve a pequena quantidade de empregos indiretos (está em 33º lugar no ranking dos empregos indiretos), decorrente de reduzido impacto na cadeia produtiva”.
Empregos sem raízes
A bateria de inconformidades da manchetíssima do ABCD Maior não terminou. Faltou dizer também que a quase totalidade dos empregos que marcariam a trajetória de Luiz Marinho como prefeito de São Bernardo como indutor de desenvolvimento econômico estatal, no caso do Município, se limitaria à fase de implantação das intervenções. Nesse período, são necessários trabalhadores principalmente dos setores de construção civil, fabricação de máquinas e equipamentos e serviços prestados às empresas para construir o empreendimento. Poucos empregos estão inseridos na fase de operação das intervenções, que ocorre após a implantação do investimento e quando é empregada mão de obra na própria empresa mutuária para realizar a produção da maior capacidade instalada.
A manchetíssima do ABCD Maior leva os leitores menos atentos, e até mesmo os leitores atentos mas pouco reflexivos, a conclusões precipitadas e equivocadas. Os quase 90 mil empregos alardeados ao longo de oito anos (pouco mais de oito mil empregos temporários para cada ano) não são significativamente quase nada quanto cotejados com a fragilização do mercado de trabalho com carteira assinada na Província do Grande ABC, mais especificamente em São Bernardo. Mas isso não é coisa que se possa colocar na pauta de material jornalístico do ABCD Maior, porque o bicho sindicalista iria ficar raivoso.
Para completar, deixei o principal contragolpe à manchetíssima do ABCD Maior para o final, de modo a justificar e a explicar o título deste artigo. Quis porque quis guardar um golpe fatal, irremediável, nocauteador, após sugerir que levava a sério o indicador do BNDES selecionado pelo secretário Jefferson José da Conceição como métrica de geração de emprego decorrente de investimentos durante a administração petista de Luiz Marinho.
Medidor sem lastro
Para ser mais preciso, o medidor utilizado pelo secretário Jefferson da Conceição não tem nenhum lastro. Os conceitos do BNDES são utilizados única e exclusivamente nos casos de financiamento a empresas. Até prova em contrário, a Prefeitura de São Bernardo não é uma empresa, é um ente governamental. A contabilidade de geração de postos de trabalho, portanto, não se sustenta nos estudos daquela instituição de financiamento público. É uma invenção, uma licença poética do secretário Jefferson José da Conceição. Estimulado por não sei quem, mas possivelmente pelo calendário eleitoral.
Utilizar a metodologia do BNDES para projetar a influência da Prefeitura de São Bernardo na geração de empregos durante os oito anos da Administração Luiz Marinho tem sentido semelhante à divulgação de que o Bolsa Família está estreitamento relacionado à explosão de gastos dos donos de lojas de diamantes em viagens internacionais. Entenderam? Pois é, não tem nexo mesmo.
Afinal, o dinheiro que as Prefeituras recebem de governos estadual e federal integra os orçamentos dessas duas instâncias, não tem qualquer vínculo com um banco de investimentos na geração de riqueza.
Qualquer tentativa de estabelecer paralelo à transposição de dinheiro emprestado a empresas privadas a juros favorecidos, como é o caso do BNDES, e dinheiro reservado a investimentos públicos pelo orçamento da União ou do Estado de São Paulo, não passa de mistificação.
Fosse levada a sério a contabilidade que gerou a manchetíssima do ABCD Maior, o governo federal de Dilma Rousseff poderia alardear aos quatro ventos que só com o PAC 3 (Programa de Aceleração do Crescimento), 17 milhões de empregos se acrescentariam à geografia verde-amarelo – praticamente um terço de todo o estoque histórico de ativos de empregos com carteira assinada no País.
Dilma acharia ótimo
A conta é simples: o valor projetado para ser consumido pelo PAC 3 supera a US$ 1 trilhão e reúne perfil de desembolso semelhante ao anunciado pelo secretário de Luiz Marinho. Se no caso de São Bernardo, segundo o secretário Jefferson da Conceição, os R$ 5,2 bilhões de investimentos projetados representariam 89 mil empregos, só com o PAC 3 o governo federal geraria 17 milhões de postos de trabalho diretos e indiretos durante o prazo de execução. A conta é simples: se R$ 5,2 bilhões gerariam 89 mil empregos, R$ 1 trilhão (192 vezes mais o montante de São Bernardo) gerariam 192 vezes mais emprego (exatamente 17,088 milhões).
Não pensem os leitores que foi tarefa chegar ao formato analítico deste artigo. A manchetíssima do ABCD Maior foi exaustivamente pesquisada. Quem ousaria questionar algo que parecia inquestionável, partindo-se, como partiu, de um profissional de ampla reputação, como o secretário Jefferson José da Conceição.
Fosse a inventividade do auxiliar de Luiz Marinho algo de robustez empírica, tenham certeza que a campanha presidencial de Dilma Rousseff já estaria alardeando os efeitos miraculosos que se atribuíram às várias fases do PAC, entre tantos programas do governo federal. Não é difícil supor que os marqueteiros da presidente Dilma Rousseff, em situação de desespero, levem a sério a montagem estatística do secretário de Luiz Marinho.
A nota para a manchetíssima do ABCD Maior é zero, porque não se deve confiar cegamente em equações de gestores públicos durante o período eleitoral. Fora do período eleitoral, se deve confiar desconfiadamente.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)