Imprensa

Como perder um filme que remete
às lembranças das fotonovelas?

DANIEL LIMA - 02/09/2014

Nem a pau vou perder o filme sobre “A Fera da Penha”, em cartaz com um título mais sofisticado (“O Lobo Atrás da Porta”). Acabo de ler com muito atraso uma resenha de estreia no Caderno 2 do Estadão. Está lá o texto de Luiz Carlos Merten. Devorei todos os parágrafos. Nem poderia ser diferente. Estou voltando à infância. Não completara 10 anos na pequena Guararapes, Interior de São Paulo, quando aquele crime, traduzido em formato de fotonovela, lapidou ainda mais meu interesse por leitura.


 


Consumia tudo o que era informação em papel. “A Fera da Penha” ganhou uma longevidade extraordinária em meu imaginário. Ver a história contada no cinema é o máximo a que aspiraria. Vou lá, ora se vou.


 


Só espero que algum cinema da Província coloque a atração à disposição. Os filmes de maior apelo intelectual, por assim dizer, são banidos das salas comerciais locais. O cardápio de filmes disponíveis nos cinemas da região, salvo raras exceções, é um convite ao infantilismo, recheadíssimo de ficções sem graça pelo menos para quem não pertenceu à geração que curtiu videogames e por isso mesmo leva a vida com certa racionalidade.


 


Costumo dizer que já não tenho mais tempo a perder com coisas inúteis.  Mas o que é mesmo coisa inútil? Essa é uma subjetividade à qual me curvo. Para os jovens, é o máximo ir ao cinema e se divertir com “O Homem Aranha”, com “Divergente” e outras baboseiras.


 


Tecnologia e emoção


 


Pergunto-me: será que nos meninos e meninas de hoje, enfeitiçados pela tecnologia à palma da mão, crimes como os da “Fera da Penha” que tanto me despertaram atenção, teriam alguma importância afetiva? Tenho a impressão, quase certeza, de que não fariam a menor diferença. Da mesma forma que as crianças e os jovens de hoje não estão nem aí com a interpretação do que leem na mídia digital e refugam leituras impressas que não sejam compulsórias dos bancos escolares, acredito que crimes como aqueles passariam batidos. Eles, os jovens, têm uma pressa imensa em desperdiçar tempo, entretidos que estão em manipular bugigangas eletrônicas supostamente aproximadoras de relações pessoais.


 


Durante minha infância os crimes bárbaros viravam fotonovelas. O assassinato de Aída Cury, no Rio de Janeiro, como o crime da “Fera da Penha”, também chegou às páginas de uma revista na longínqua Guararapes. Ali, um menino doido por leitura encontrou um jeito de correr à banca e comprar um exemplar. Ou o exemplar chegou em casa por outras mãos, quem sabe pelas mãos de minha mãe, Dona Maria? Com ela aprendi a aprender a gostar de leitura, ela que devorava revistas e livros e que ganhara uma coleção especial de meu pai, seu Gabriel, com contos fabulosos de autores famosos, uma coleção que hoje enriquece minha biblioteca. Lá estão “Os Miseráveis”, “Os que riem e os que choram”, “Mulheres de Bronze” e mais alguns livros de capa dura com data de edição de 1956. Nem completara 10 anos e já os tinha lido todos.


 


Tudo ficou mais fácil e agradável quando descobriram que eu precisava de correção oftalmológica. A hipermetropia me obrigava a acrobacias sobre a mesa da sala, na qual plantava uma cadeira que me aproximava mais do facho de luz no teto. Com óculos, dispensei a cadeira e me apaixonei ainda mais por tudo que fosse impresso. De gibis a revistas semanais de entretenimento que um velho tio colecionava.


 


Suporte crítico


 


Vai ser uma oportunidade especial assistir “A Fera da Penha” transformada em “O Lobo Atrás da Porta”. Acredito no taco de Luiz Carlos Merten, jornalista especializado em cinema que não costuma se levar pelo politicamente correto. Nem me lembro de que tenha sido dele uma crítica recente sobre um desses blockbuster ainda em cartaz, “Noé”. Se não foi Merten foi alguma alma jornalística gêmea dele. Caí na besteira de desdenhar da advertência de que se tratava de um filmeco de efeitos especiais ridículos.


 


Não saí antes do final da projeção de “Noé” num dos cinemas da região porque tenho comigo mesmo um pacto de estupidez completa: tanto quando não abandono meu time diante da televisão ou na arquibancada de um estádio só porque está perdendo, não será um filme vagabundo que me levaria a debandar antes que o último dos espectadores também o fizesse. “Noé” é uma das porcarias a que assisti este ano. Sempre caio do cavalo quando teimo em resistir ao crítico sensato ou quando, por pressa ou algo parecido, não me informo previamente sobre a qualidade da programação a que assistirei.


 


A obsessão de Fernando Coimbra pela produção cinematográfica de uma história sobre a qual teve conhecimento muito tempo depois, quando, segundo relato de Luiz Carlos Merten, José Celso Martinez mostrou uma revista antiga, parece suficiente para acreditar que não sairei blasfemando degraus abaixo contra mais um filme em que fui enganado pela intuição, pela teimosia ou pelo descuido.


 


Erros em cadeia


 


Acredito piamente que a obsessão positiva é o caminho mais apropriado ao sucesso de uma proposta, de um projeto, de uma vida. Quem faz por fazer sem o mínimo despertar da responsabilidade que o ato de fazer exige, acaba como mais de uma dezena de executivos da General Motors nos Estados Unidos, demitidos pela companhia porque negligenciaram o tempo todo, numa cadeia de irresponsabilidade, os defeitos de um dispositivo mecânico que já matou muitos motoristas de um dos modelos da companhia.


 


Entretanto, acho que os recalls das montadoras poderiam dar um belo filme. Esse da GM, por exemplo, poderia se concentrar em aspectos que extrapolariam a tecnologia, porque envolvem gente com expectativas mais que legitimas de construir uma história de vida.


 


No fundo, no fundo, não trocaria jamais “A Fera da Penha” por algo como “Os criminosos da General Motors”, entre outras razões porque nada supera o valor subjetivo das memórias dos tempos de criança. Talvez algum menino ou menina de agora possa ser amanhã o autor do filme sobre as trapalhadas na General Motors. Acredito que não terão o mesmo apelo sensorial de “A Fera da Penha”, mas isso só o futuro responderia. Tudo muda tão rapidamente que não se pode duvidar que os marmanjos de amanhã distanciem-se dos marmanjos de hoje, e que o humanismo romântico das folhas impressas ceda espaço ao humanismo difuso, confuso e inebriantemente ditado pela comunicação digital.  


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