Imprensa

É melhor não fugir da verdade

DANIEL LIMA - 25/08/2005

Qual o comportamento editorial que devem adotar veículos de comunicação? É licito que jornais e revistas joguem para baixo do tapete de suposto protecionismo problemas com os quais convive amarguradamente a sociedade? Valeria a pena essa política de esconde-esconde para pressupostamente deixar de contaminar o ambiente comunitário com informações que pudessem destilar baixa estima?


 


Traduzindo essa equação em termos objetivamente transparentes: devem os veículos impressos subestimar propositalmente fatos rotulados de negativos em nome de valores institucionais, sociais e comerciais?


 


Reforçando um pouco mais a proposta de colocar em debate a conciliação entre jornalismo sério e mercantilismo exacerbado: se você fosse editor-chefe de um jornal ou revista, atenderia aos desejos de abrandamento de más notícias verdadeiras e superestimaria boas notícias pontuais que não resistem a contextos temporais mais largos?


 


Para ser ainda mais direto e reto, no caso, ainda, de você ser o profissional que dá a última palavra sobre a linha editorial do jornal ou da revista que lhe entregaram a missão de comandar: entre uma manchete na qual se divulgue com base estatística que o Grande ABC segue perdendo riqueza industrial e outra em que a informação se prende à queda da mortalidade infantil, qual seria a opção? Quer saber a resposta jornalisticamente mais compatível? Simples: deveriam se juntar os dois fatos num mesmo espaço editorial, dando-lhe tratamento sistêmico, ou seja, muito além do puramente individualizado e informativo, e pronto, os leitores seriam contemplados integralmente. Mais que contemplados: seriam respeitados.


 


País dualístico


 


Quem considerar que a queda de produção industrial não casa com a redução da mortalidade infantil no Grande ABC desconhece dualidades de um País que insiste em desprezar o futuro porque mal dá conta do presente.


 


A mortalidade infantil está implicitamente relacionada com os pilares orçamentários do Poder Público. Trata-se de dinheiro carimbado segundo determinação constitucional. Já a produção de riqueza pela indústria, disseminadora de mobilidade social, é equação mais complexa, que passa pelo jogo macroeconômico ao qual, ao longo dos últimos 15 anos, o Grande ABC não passou sequer pela catraca de acesso às arquibancadas porque não tem representatividade política e institucional. Mesmo, como agora, com o presidente da República como filho adotivo mais notável.


 


A história de LivreMercado já completou 15 anos e está diretamente ligada ao conceito de que notícia supostamente desagradável tem o mesmo valor da notícia supostamente agradável. Se coincidir de numa mesma edição, na disputa pela reportagem de capa, houver a necessidade de escolha, o desempate se dará com base no valor mais abrangente das informações.


 


Em nenhum instante da trajetória desta revista houve qualquer dúvida sobre o conjunto de informações que os leitores consumiriam na edição seguinte. Foram várias as situações em que temários desagradáveis galgaram a vitrine principal de capa pela simples razão de que a vida não é feita só de alegria e entretenimento.


 


Basta rápida passada de olhos sobre as capas da revista para observar que todas as pedras da desindustrialização foram cantadas com absoluta segurança, enquanto outras mídias desprezavam estatísticas sérias por conveniência ou despreparo. Chegamos ao ponto de, ao ouvir especialistas, dimensionar o total de área desocupada pelo setor industrial. E o massacre aos pequenos negócios? E a mistificação de que o Grande ABC é a capital política do País, destruída pelo rastreamento de votos que revelaram legisladores municipais filhotes preferenciais de todos os vícios nacionais? E as derrapadas do Fórum da Cidadania, da Agência de Desenvolvimento Econômico, da Câmara Regional?


 


Detrator ufanista


 


Um detrator de plantão não perdeu a oportunidade de, em julho de 2000, prevaricar contra este jornalista ao expor cópias de texto produzido para esta revista sob o título "Como não repetir os erros do ABC?". Jornalista, ele se deu ao trabalho de enviar cópias a amigos de profissão e a diretores e acionistas do jornal ao qual servia. É claro que não se esqueceu de enviesar a leitura ao introduzir comentários que procuraram desclassificar o autor, instalando-o no banco dos réus dos traidores da região.


 


Tratar cobertura jornalística com a devoção acrítica de torcida organizada é antiga prática nacional, principalmente de publicações cujos mandatários ainda estão impregnados pela burrice de confundir negócios com informação. Aliás, o tempo mostrou que essa é uma combinação sadomasoquista, porque o veículo perde duas vezes, tanto no corpo da credibilidade informativa quanto na alma de quebra de receitas.


 


Um paralelo entre a análise que redigi em junho de 2000 para LivreMercado e um longo, duro e surpreendente editorial do poderoso "The New York Times" não seria nem pretensioso nem desproposital, já que há sintonia na essência informativa. Na matéria que esta revista publicou há cinco anos, fiz série de exposições sobre os riscos de o Interior mais industrializado de São Paulo incidir nos erros do Grande ABC. "O que empreendedores privados, administradores públicos e a comunidade do Interior do Estado podem aprender com o histórico de desenvolvimento econômico do Grande ABC, conjunto de sete municípios na Região Metropolitana de São Paulo que se consagrou como a área geográfica industrial mais influente do País?" -- indaguei na abertura do texto de uma edição cuja distribuição de exemplares nas principais praças interioranas integrava o projeto de expansão do produto.


 


Em seguida, respondi: "Talvez a melhor resposta seja tão cruel quanto providencial: não caíam no ufanismo doméstico de quem precisa de permanente auto-elogio para inflar o ego. Nem se deixem enganar pelo lambe-lambe dos chamados forasteiros, especialistas em propagar o lado róseo das regiões que pretendem seduzir, exatamente porque precisam parecer simpáticos para seus projetos pessoais ou profissionais".


 


Ao longo de quatro páginas, procurei demonstrar os problemas crônicos do Grande ABC em diferentes esferas, principalmente institucionais, ou seja, entre os poderes públicos, comunidade e empresários. A conclusão do trabalho foi contundente:


 


"Monopólio industrial, indiferença dos administradores públicos, desinteresse da comunidade social pelas implicações sistêmicas provocadas pelas ações econômicas e alheamento dos empreendedores às nuances públicas e sociais formaram, resumidamente, o caldeirão de deficiências de um Grande ABC que, em contrapartida a todo esse conjunto de déficits organizacionais, mobiliza-se de forma pioneira para combater seus demônios. Os municípios do Interior paulista que tiverem um mínimo de juízo saberão agir a tempo de evitar que o filme do passado do Grande ABC se transforme em campeão de bilheteria".


 


China culpada?


 


Onde entra o editorial do "The New York Times" para corroborar com as diretrizes estratégicas de LivreMercado? O artigo do jornal norte-americano referiu-se à tentativa da China de comprar uma companhia de petróleo americana e a necessidade de os Estados Unidos tomarem uma decisão sobre como pretendem proteger a economia, preservar os recursos e crescer num mundo onde já não são mais a única potência econômica.


 


"Com a China -- diz o editorial -- numa orgia de compras de matérias-primas para suprir o crescimento incessante da economia, era inevitável que fosse além das aquisições mais modestas de empresas e fizesse um lance por algo que realmente preocupasse os Estados Unidos. Na semana passada, o maior país comunista da história fez, através da estatal China National Offshore Oil Corporation (Cnooc), a suprema jogada capitalista: uma proposta de compra do controle acionário da petrolífera americana Unocal por US$ 18,5 bilhões em dinheiro" -- escreveu o jornal nova-iorquino.


 


Caiu do andaime da expectativa frustrada quem esperava, assegurado pelo enraizadíssimo nacionalismo norte-americano, que o editorial do "The New York Times" trituraria a política econômica chinesa, como não cansam de exercitar empresários brasileiros igualmente preocupados com o avanço da esquadra asiática.


 


Como se sabe, a China de mais de um bilhão de habitantes interpõe guerrilha capitalista sustentada pela prática de regime trabalhista escravagista e moeda desvalorizada. Uma combinação imbatível num mundo globalizado porque, ao mesmo tempo em que atrai investimentos internacionais, penetra em diferentes geografias com o peso de produtos mais baratos.


 


O jornal norte-americano puxa a orelha da administração federal e do Congresso dos Estados Unidos na medida em que os parágrafos se desvencilham de explicações contextuais e se posicionam na reta de chegada de conclusões analíticas: "Em vez de malhar a China, o Congresso e o governo Bush deveriam injetar dinheiro para incrementar programas de retreinamento para ajudar os trabalhadores americanos, cujos empregos migram para o exterior. Os sistemas escolares, os pais e os estudantes americanos terão de considerar que jovens com formação medíocre não conseguirão competir com jovens enérgicos, preparados, em lugares como a China" -- escreveu o articulista. "Mas a solução não é culpar a China. É instituir políticas econômicas mais sensíveis, inclusive revogando os presentes desnecessários que o presidente Bush tem dado a americanos muito ricos na hora do Fisco".


 


Fortalecer por dentro


 


Para completar a sessão de porretadas à competitividade, o "The New York Times" sentencia: "A China poderá ou não sair por cima. Mas mesmo que a China perca essa escaramuça, faz parte de uma batalha mais longa e os responsáveis pela condução da América fariam bem em gastar esse tempo fortalecendo a América por dentro. Por mais que a China se torne grande e poderosa, não é páreo para os Estados Unidos em sua melhor forma".


 


Do mesmo "The New York Times" vem outro exemplo de que jornalismo não é teatro de operações de narcisismo xenófobo. O colunista Thomas Friedman respondeu com as seguintes frases uma entrevista ao jornalista Paulo Soltero, correspondente do jornal paulistano Estadão, publicada em página inteira no mês passado, quando indagado sobre as vulnerabilidades dos Estados Unidos:


 


"Estamos perdendo terreno em quatro áreas. Uma é a infra-estrutura. Não estamos nem perto dos líderes do mundo em redes de banda larga. No começo do governo Bush éramos o quarto país, hoje somos o 13º. O segundo problema é que estamos ficando gordos, tolos e preguiçosos. Comportamo-nos como a terceira geração de uma família rica. O avô fez a fortuna, os filhos a mantiveram e os netos estão pondo tudo a perder. Achamos que temos todo o tempo do mundo para consertar nosso problema de endividamento. Estamos ficando para trás em números de jovens formados em engenharia e ciências, especialmente em comparação com chineses e indianos, tanto em termos relativos como absolutos. Por fim, não estamos mais educando nossos filhos nas escolas primária e secundária com a seriedade e o rigor de outros povos. Quando você regride em educação, em infra-estrutura, em ambição e em número de técnicos e cientistas, começa a comer a semente em vez de usá-la para semear, mesmo com todas as vantagens comparativas que temos nos Estados Unidos. É uma crise silenciosa, mas é séria".


 


Uma leitura atenta da coletânea de matérias da equipe de LivreMercado e as centenas de páginas de três livros que escrevi entre 2002 e 2003, "Complexo de Gata Borralheira", "Meias Verdades" e "República Republiqueta", permitiriam aprofundamento nos conceitos que nortearam os 15 anos de circulação dessa publicação que jamais se deixou levar por pressões em prol de triunfalismo inconsequente. Mas que também não se furtou a dar o devido valor e reconhecimento aos protagonistas de diferentes atividades. O Prêmio Desempenho, com mais de mil laureados em 12 anos, é a garantia de que o jornalismo repete a própria vida -- tem lugar para o amor e para a dor. Só não pode mistificar. 


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