O conceito de que apenas o jornalismo fora das capitais sofre consequências de pressões políticas e econômicas que, invariavelmente, tornam a linha editorial colcha de retalhos, com elogios permissivos demais hoje e críticas espalhafatosas amanhã, provavelmente carrega o vírus do gataborralheirismo.
Sim, porque em matéria de parcialidade -- em forma de preferência ou de discriminação -- ditada por conveniências isoladas ou sistêmicas, o jornalismo brasileiro está democraticamente repleto.
A chamada grande Imprensa que, em larga escala, proclama-se independente, apartidária, comprometida com todos os ângulos, revela calcanhares-de-aquiles pelo menos àqueles que lhe dão um mínimo de atenção crítica, que lhe dedicam desconfiança dos sensatos.
Os exemplos que apresentamos a seguir envolvem o Estadão. Que fez, afinal, o Estadão, para que mereça mais que um puxão de orelhas ético, uma reprimenda pública porque colhido em delito editorial? Os leitores desta newsletter vão entender e vão compreender também porque num outro campo, no campo do crime cometido contra o prefeito Celso Daniel, o mesmo jornal sustenta mesmo que cada vez mais cambaleantemente a linha condenatória a um inocente. Mas essa é outra história.
Vamos diretamente ao tratamento que o Estadão dedicou a duas entrevistas com protagonistas das eleições deste ano. Em realidade, o que se apresentou de anomalia editorial não é novidade alguma. O Estadão seria mais transparente, honesto e responsável com os leitores que constam de seu quadro de assinantes se assumisse de vez, sem meio termo, sem condicionantes, sem cinismo, que é partidário tanto da candidatura de Geraldo Alckmin à presidência da República quanto de José Serra ao governo do Estado de São Paulo.
Qual o problema? Se nos Estados Unidos e na Europa posturas desse tipo são comuns e até mesmo no Brasil a revista Carta Capital jogou abertamente com os leitores nas últimas eleições presidenciais ao apoiar Lula da Silva, por que tentar tapar o sol da preferência escandalosamente evidente com a peneira de uma dissimulação provavelmente sustentada pelo menosprezo à inteligência dos leitores? Pelo menos dos leitores mais atentos.
Afinal, quais foram as duas entrevistas publicadas pelo Estadão, em edições domingueiras que parecem mais domingadas (um trocadilho com a bobagem atribuída a Domingos Da Guia, craque da Seleção Brasileira que entregou o ouro numa disputa de Copa do Mundo), que provocaram irritação de quem espera, por mais escaldado que esteja, um mínimo de competência na arte de atender à fome de conhecimento dos leitores?
A primeira entrevista
Na edição de 14 de maio último, o candidato petista ao governo do Estado, Aloizio Mercadante, ocupou uma página inteira do Estadão. Foi entrevistado por Carlos Marchi e Mariana Caetano. O título da matéria -- "São Paulo precisa de um governo caipira" -- tem evidente sentido discriminatório, entre outras razões porque foi retirado bastardamente do contexto de uma resposta do candidato petista. Quem nasceu como este jornalista no Interior sabe mais do que ninguém que "caipira" é verbete pejorativo ou no mínimo visto com desconfiança quando usado em determinadas circunstâncias. Ao mencioná-lo na entrevista, o paulistano Aloizio Mercadante abriu brecha sobre a qual avançou o editor do Estadão com mensagem subliminar de incontentável desgaste.
Mas isso é de menos. Acompanhem agora algumas das perguntas ao candidato petista e observem o tom com que foram elaboradas:
O senhor é candidato por um partido abalado por escândalos, sai com 8% contra 50% e vai ter um governo aprovado por 65%. Como vencer?
Como Marta Suplicy durante a prévia, os tucanos também podem argumentar que o sr. quer abandonar o mandato na metade.
Mas esses problemas não seriam generalizados no País (referindo-se a uma série de críticas sobre várias situações sociais do entrevistado ao governo Geraldo Alckmin em São Paulo).
Sua intenção de voto no Interior é bem menor. O senhor vai olhar para lá?
Como o senhor vai explicar o mensalão ao eleitorado?
Como explicar que até hoje o PT só tenha punido Delúbio Soares, seu ex-tesoureiro?
Pesquisa feita pelo PT mostrou que 59% dos brasileiros acham que as providências tomadas pelo PT foram insuficientes. E aí?
O PT de São Paulo define o quercismo como força política nascida e criada na corrupção. Como aliar-se a Quércia?
Possivelmente, faria indagações semelhantes ao candidato petista. São todas pertinentes à candidatura de um representante do partido que disputa o comando do principal Estado da Federação.
A "entrevista" de Alckmin
Agora, acompanhem as perguntas que marcaram a "entrevista" -- do mesmo jornalista, Carlos Marchi, só dele -- com o candidato presidencial Geraldo Alckmin, publicada na edição de 11 de junho do Estadão, sob o claramente sugestivo e eleitoreiro título "Irregularidades do governo Lula serão investigadas, e elas não são poucas".
Seus aliados e simpatizantes se queixam de que na campanha o senhor usa luvas de pelica...
Como será sua relação com Chaves?
Se eleito, o senhor vai mandar investigar o governo Lula?
O que o senhor mudaria nas políticas cambial e fiscal?
E o câmbio?
Lula criticou a educação em São Paulo. O que o senhor diz da educação de Lula?
Em São Paulo a mortalidade infantil caiu de 14,3 por mil para 13,5 por mil entre 2004 e 2005. É número de Primeiro Mundo. Como conseguir índices como este no Brasil?
Como o senhor vai tratar o MST?
Se o Brasil for campeão do mundial de futebol favorece a eleição de Lula? O senhor vai torcer pelo Brasil?
Qualquer iniciante em jornalismo, esses foquinhas que saem aos borbotões das faculdades sem entender o que é informação, observaria a disparidade de tratamento, desde que, como faço agora, coloquem-se os questionamentos no mesmo ritmo temporal de leitura. Quando separados em quase um mês, descolados do tempo, a tendência é de esquecimento do apetite de farejador que incomodou Aloizio Mercadante e o levantar de bola para gol de placa que embeveceu Geraldo Alckmin.
Esse tipo de manobra é manjadíssimo no jornalismo transformado em ferramenta de manipulação.
É por essas e outras que os diários caem pelas tabelas em tiragem. Mas não faltam por aqui, nestas plagas suburbanas, leitores obtusos, descuidados, festivos, partidários, que glorificam cinderelas informativas e imaginam que apenas gatas borralheiras municipais e regionais da Imprensa estão invariavelmente em posição de conluio ou de guerra tática tanto com os paços municipais como com grupos políticos e econômicos que pretendem desalojar os titulares dos postos. Com mil demônios, essa é uma praga quase que generalizada na Imprensa verde-e-amarela geralmente imersa em dívidas, maltratada em qualidade, propagandeadora de reformas gráficas e recheadíssima de semânticas.
Na minha mais recente, inesquecível e, se Deus permitir, jamais reprisável cotidiano de desgaste no jornalismo diário, como diretor de Redação do Diário do Grande ABC, tive a possibilidade de viver o período eleitoral das disputas municipais, em 2004. Foi uma loucura segurar as pontas de uma combinação de interesses. Só a Frente Andreense do Atraso já justificaria indenização monstruosa. Seus advogados não fizeram outra coisa senão perpetrar enxurrada de 32 pedidos de direito de resposta. Perderam todos. Rigorosamente todos.
O tratamento nas eleições no Grande ABC em 2004 só não foi rigorosamente equânime porque é impossível consertar uma máquina que acumulava avarias a décadas. Além disso, verdade seja dita sem sofismas: ninguém em sã consciência aceita perseguição movida por grupo de políticos de terceira linha sem que não se decida de alguma maneira por medidas, diria, compensatórias. Mais que compensatórias: protetoras à própria sociedade da ameaça representada por profissionais da política. Mas, no conjunto, mostramos, com série histórica de sabatinas com candidatos de cada Município, o quanto prezamos o interesse do leitorado.
Tratamento igual
As perguntas a todos os candidatos foram quase que integralmente formuladas por este jornalista, embora, fisicamente, não participasse das sabatinas. Não houve mandraquismo. As questões colocadas foram tanto personalizadas à situação de cada Município representado em cada rodada como em casos específicos de preocupação regional. Todos os candidatos tiveram a oportunidade de manifestar pensamentos, propostas, sugestões, de acordo com o sorteio feito sem manipulação. Enfim, não houve discriminação nem perseguição.
Jamais foi dada qualquer orientação para privilegiar qualquer dos candidatos. As regras do jogo eram publicamente conhecidas. Somente a Frente Andreense do Atraso, sempre disposta a arranjar confusão, contestou-as. Queria escolher o campo, a arquibancada, a bola, as regras e o árbitro.
Mesmo o relacionamento com o candidato Newton Brandão, da Frente Andreense do Atraso, não chegou ao extremo da insustentabilidade, embora tanto ele quanto seus parceiros de chapa fizessem de tudo para transformar o Diário do Grande ABC no verdadeiro adversário com série de acusações que, repito, originavam-se do passado de rusgas pessoais e econômicas entre alguns acionistas da empresa e lideranças da Frente Andreense do Atraso.
O confronto das duas entrevistas do Estadão, cujas indagações principais reproduzimos neste espaço, serve entre outras questões para mostrar aos leitores gataborralheirescos do Grande ABC que a grande mídia, em largo espaço, manipula sim as emoções, as informações, os objetivos e tudo que se pretenda entender como elementos de esclarecimento e compreensão.
Por isso, ao ler o jornal "Unidade", do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, o jornalista Acácio Rocha Perez Guerrero, de Adamantina, Interior do Estado, incorre em ingenuidade num TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) ao pespegar principalmente nos periódicos municipais e regionais do Interior o entreguismo da linha editorial. Bobagem. As matizes que colocam o jornalismo sob suspeição são múltiplas e estão relacionadas aos fundamentos negociais. Quem conhece a história da Imprensa nacional e internacional não cairia no reducionismo de centralizar nos "caipiras" ou "suburbanos" o ônus de trambicagens mais ou menos graves mas todas, indiscutivelmente, alheias ao papel institucional que a atividade deve exercer.
A diferença entre pequenas e grandes publicações que descaminham para favoritismos e perseguições é apenas metodológica, que também pode ser entendida como sofisticação tática, estratégica e operacional.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)