Causou certa estupefação a frase que proferi outra noite aos membros da Adesg/ABC:
"Não queiram saber como se fazem linguiça e jornal".
Não é comum um jornalista referir-se aos jornais da forma como a que refiro, porque o princípio corporativista está acima de tudo e quem ousa quebrar a rotina é visto como estranho no ninho.
"Não queiram saber como se fazem linguiça e jornal" -- eis uma sentença só aparentemente implacável. Vou explicar as razões.
A principal é que, obviedade das obviedades, jornalistas que fazem jornal não fazem jornal que gostariam de fazer. Principalmente se os donos do jornal não tiverem intimidade alguma com a especialidade. Acredito que durante os nove meses que passei no Diário do Grande ABC fiz o jornal que era possível fazer com minha equipe, com todas as limitações estruturais eternizadas em forma de um CD de workshop demolidor. Mas, reconheço, é preciso relativizar a expressão "fiz o jornal que era possível fazer", porque, tempos depois, descobri que nem tudo que se transformava em notícia decorria de, diríamos, combustão espontânea. Havia guetos articuladíssimos para viciar o processo. Mas os detalhes sobre isso deixo para outra oportunidade.
O que interessa mesmo agora é dizer que há um longo caminho para que os jornais publiquem notícias, opiniões, reportagens, como resultado de alicerce democrático de infra-estrutura social. De maneira geral, que comporta exceções, jornalistas fazem jornais que os acionistas e diretores querem e os acionistas e diretores geralmente não fazem o jornal que pretendem, mas o que os balanços financeiros e as interlocuções políticas, sociais e econômicas determinam.
Comando diretivo
Essa avaliação não está condicionada à divisão discricionária de pequenas, médias e grandes publicações, nem mesmo a definições geográficas de circulação regional, estadual ou nacional. A musculatura de ética e moralidade dos jornais não está presa a qualquer um desses condicionantes. Depende apenas de quem está no comando diretivo-acionário.
"Não queiram saber como se fazem linguiça e jornais" -- eis a frase que calou fundo naquele ambiente da palestra aos adesguianos comandados por Valter Moura.
Há jornais que, sem contrapartidas de comprometimento com o público a que serve como veículo de informação formador de opinião, entregam-se aos braços de candidatos eleitorais ou mesmo a gestores públicos como moças de vida difícil em determinados inferninhos que se multiplicam num Grande ABC pau-para-toda-obra em matéria de versatilidade empregadora.
Quando se joga na lata do lixo a possibilidade de estabelecer e cobrar um conjunto de medidas profiláticas, regeneradoras, prospectivas e corretivas que contribuam para mudanças providenciais, optando-se por benesses particulares, negociais, corporativas, tem-se a perpetuação das mazelas que dificultam a superação do ambiente de descrédito com o futuro.
Nada há de pecaminoso na proximidade entre mídia e interesses individuais, desde que os pressupostos que contemplam a comunidade sejam explicitamente transparentes.
Luta por objetivos
Querem um exemplo prático? Um concorrente a cargo público que tenha compromisso tácito e comprovado de atuar na sensibilização governamental em favor da construção do Rodoanel deve sim ser prestigiado, independentemente da coloração partidária e de outros fatores que desnecessário se torna detalhar. A causa regional deve estar acima de todas e quaisquer restrições que eventualmente tenham sido. O acompanhamento do processo e a cobrança permanente de resultados garantiriam a valorização do veículo de comunicação.
De forma prática, vamos a um exemplo factual que caracteriza um dos pilares da linha editorial da revista LivreMercado. Lembram-se da recente Reportagem de Capa em que nosso ilustrador enfiou o prefeito William Dib no assento então ocupado por Juscelino Kubitschek, sob o título "Dib, nosso JK"? Querem maior prova de que estamos prontos a embalar o ritmo ainda madorrento de nossa economia?
O prefeito William Dib está trabalhando de fato para que, a partir de São Bernardo, o setor automotivo do Grande ABC se reorganize e recupere parte das riquezas perdidas. Esse é um dos pontos nucleares históricos de análises de LivreMercado. Ora, bolas, se temos na praça alguém com vontade, dedicação, poder e relacionamentos que podem conferir ao Grande ABC uma nova modelagem de planejamento estratégico, por que haveríamos de sonegar, minimizar ou mesmo subdimensionar a proposta? Por isso que o colocamos na capa, cujo valor institucional está muito acima do que os leigos imaginam e muito além do que o partidarismo político gostaria.
Mensagem ramificada
Normalmente as reportagens de capa de LivreMercado têm sempre uma mensagem ramificada do projeto editorial que concebeu a publicação regional mais qualificada do País. Dib travestido de JK não é obra do acaso supostamente espetaculoso da imagem pela imagem. Muito pelo contrário. A imagem é a síntese da expressão editorial que se manifesta continuamente a cada edição. O que é manifestar-se continuamente a cada edição? É a cláusula pétrea de que a edição seguinte está umbilicalmente atrelada aos conceitos da edição anterior, retroalimentando-se permanentemente.
Muitos jornais não sabem o que isso significa na prática porque negam na edição seguinte o que a edição anterior formulou. Não vou nem me referir a períodos mais longos porque aí, convenhamos, é querer demais.
Foi por essas e outras que, quando lançamos a imagem de Sérgio Gomes na Reportagem de Capa da edição de outubro de LivreMercado, sob o título "Inocente ou culpado? Imprensa já condenou Sérgio Gomes", o que tivemos dos apressadinhos e dos açodados foram manifestações anencefálicas. Partiram alguns para impropérios. Vincularam, vejam só, aquela reportagem a penduricalhos acionários da Editora Livre Mercado, como se houvesse a mínima possibilidade deste jornalista dobrar-se a imposições de quem quer que seja. A edição seguinte, de novembro, já estava conceitualmente embalada para despachar os estúpidos para guetos de obscuridade dos quais jamais deveriam sair.
Há um lobby das entidades representativas de jornais que pretendem vender a idéia-força de que os veículos diários não estão em crise de credibilidade. A generalização é um equívoco. A estrutura funcional da maioria dos jornais brasileiros, cuja combinação é enxugamento de pessoal, obsolescência tecnológica e pressões editoriais tanto internas quanto externas, não permite que as melhores individualidades de cada publicação tenham suas qualidades transferidas para as páginas com o grau de eficiência necessária. Sufocadas essas lideranças por um excesso de contingente de aprendizes, os veículos patinam entre o noticiário geral cansativamente explorado pela mídia eletrônica e pelas informações locais e regionais formuladas a toque de caixa.
O negócio chamado jornal precisa ser reavaliado no Brasil sob variados aspectos, o principal dos quais, base das demais necessidades, é a qualificação dos profissionais. Exatamente no que menos pensam os donos de jornais.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)