A diferença entre montadora de veículos e maquiadora de veículos é que montadora de veículos gera grande valor de riqueza internamente e no entorno produtivo com o suprimento de autopeças geralmente localizadas nas proximidades, enquanto maquiadora recebe de fora tudo prontinho, separadinho, organizadinho e só arredonda algo que nem de longe lembra uma fábrica, porque está mais para um quebra-cabeça infantil. Pois o que a Volkswagen de São Bernardo está preparando para colocar o Jetta no mercado automotivo do Brasil não passa de maquiadora. É um pequeno salão de beleza plantado numa estrutura industrial.
Os dois jornais diários da região, Diário do Grande ABC e Diário Regional, em manchetíssimas de sábado último, se esqueceram desse pequeno detalhe. E venderam a ideia de que a fábrica mais que ultrapassada da Volkswagen na região seria incrementada com um novo produto, algo redentor aos olhos menos preparados às armadilhas semânticas do jornalismo.
A notícia verdadeira e insofismável de que a Volkswagen está arrumando uma maneira de salvar uma parte pequena do monstruoso excedente de mais de dois mil trabalhadores da fábrica de São Bernardo saiu quase que envergonhadamente em meio às linhas secundárias das reportagens desdobradas das manchetíssimas dos dois jornais. O que pergunto a mim mesmo é como os repórteres e editores envolvidos na operação não se dão conta de que estão a patrocinar uma barbaridade jornalística, que o tempo vai cobrar, como o tempo está cobrando inapelavelmente as omissões e erros do passado que tanto apontamos -- para o incômodo dos irresponsáveis de sempre que flertam com o populismo.
Abordar a crise automotiva na Província do Grande ABC, escancarada na Mercedes-Benz, na Volkswagen e certamente nas demais montadoras locais que venham a ser esmiuçadas pela imprensa, é uma obrigação geral. Estamos no bico do corvo em competitividade num setor de produção que não dá trégua. Estamos sendo engolidos pelos custos muito mais baixos e pela produtividade muito mais elevada da maioria das plantas industriais que aportaram no Brasil nas duas últimas décadas. Estamos perdendo de goleada. E não reagimos porque a República Sindical acredita que será possível postergar decisões compulsórias. Estamos pagando o preço do envelhecimento do trabalhismo regional, que consiste em práticas mantenedoras de sinecuras.
Manchetíssimas enganadoras
A manchetíssima do Diário do Grande ABC de sábado (“Volkswagen irá montar o Jetta em S. Bernardo para manter empregos”) e a manchetíssima do Diário Regional do mesmo dia (“Volks garante montagem do Jetta em S. Bernardo a partir de 2015”) são manchetíssimas enganadoras. Não existe outro adjetivo a utilizar sem que a franqueza corra pelo ralo da submissão à hipocrisia. Mais que meias verdades, as duas manchetíssimas são duas mentiras inteiras. O verbete “montar” e seus derivados, quando se trata de indústria automotiva, induzem à industrialização do conjunto das operações. Maquiagem é o termo apropriado e inescapável a quem preserva os interesses dos leitores.
Prestem os leitores mais uma vez atenção máxima ao enunciado da manchetíssima do Diário do Grande ABC (“Volkswagen irá montar o Jetta em S. Bernardo para manter emprego”) e leiam, na sequência, a chamada da matéria:
Para garantir a manutenção de ao menos 450 trabalhadores dos 2.300 considerados excedentes, a Volkswagen vai montar o sedã médio Jetta na planta de São Bernardo a partir de 2015. Hoje o carro é produzido no México. Para também assegurarem os empregos, os demais metalúrgicos confiam na implementação, até 2018, da plataforma mundial chamada de MQB, que teria condições de receber até oito modelos, como Gol, Saveiro, Voyage e Fox. Esses projetos fazem parte dos R$ 10 bilhões de investimentos entre 2014 e 2018, que a automobilística quer aportar no Brasil. Essas questões estão sendo tratadas com o sindicato – escreveu o Diário do Grande ABC na primeira página.
A chamado do Regional
Agora vamos repetir a manchetíssima do Diário Regional (“Volks garante montagem do Jetta em S. Bernardo a partir de 2015”) e reproduzir a respectiva chamada de primeira página:
Acordo fechado entre o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e a Volkswagen do Brasil garante a “montagem final”, na unidade de São Bernardo, do sedã médio Jetta, atualmente importado de Puebla, México. Segundo a entidade, a produção do modelo terá início no primeiro semestre do próximo ano. Além disso, o acordo – aprovado pelos trabalhadores da empresa em assembleia realizada ontem (26), na portaria da fábrica, garante a continuidade da picape Saveiro e do compacto Gol. As negociações entre o sindicato e o presidente da montadora no pais, Thomas Schamall, preveem também “plataforma mundial” para produção de novos modelos – escreveu o Diário Regional.
Goleada subestimada
Como os leitores atentos repararam, nenhuma informação sobre o que é um ponto vital da reportagem: o modelo a ser importado do México é o próprio veículo produzido no México, e que chegará ao Brasil desmontado. A maquiagem ficará a cargo dos trabalhadores da Volkswagen em São Bernardo. Nada que a indústria automotiva mexicana não tenha feito no passado para abastecer o mercado das montadoras de capital norte-americano. Até que apareceram os asiáticos com custos ainda menores.
Apenas nas respectivas páginas internas, e mesmo assim de forma discretíssima, como se a informação não reunisse importância alguma, os leitores são informados sobre o critério de nacionalização do Jetta na fábrica de São Bernardo. Sem exagerar, a quase omissão da especificidade da operação da Volkswagen em São Bernardo equivaleria a relatar que o Brasil perdeu a vaga às finais da Copa do Mundo para a Alemanha reservando-se apenas às linhas complementares a tragédia dos 7 a 1.
O resumo dessa história, se o resumo já não tiver sido captado pelos leitores, é que estamos ferrados e mal pagos, mas, com arrogância típica de quem acredita que será possível enganar o distinto público, principalmente em período eleitoral, as lideranças sindicais de São Bernardo fazem das tripas coração para tentar tapar o sol da gravidade no setor com a peneira de medidas paliativas, além de promessas de novas divisões de produção em anos vindouros quando o outro lado da moeda é a defasagem tecnológica de uma empresa que, como tantas outras, se submeteu ao jogo de imposições metalúrgicas ao longo de décadas.
O excedente de trabalhadores na fábrica da Volkswagen de São Bernardo será postergado como custo de produção e de baixa produtividade até que o esvaziamento contínuo em forma de demissões premiadas reduza a carga de forma lenta.
Vagas gordas se foram
Tudo indica que o período de vacas gordas do setor automotivo se esgotou, pelo menos na proporção dos últimos anos de crédito farto e de calotes igualmente comprometedores. O sistema financeiro aperta o cerco em torno de aprovação do sonho do carro próprio de primeira viagem e do carro próprio de muitas viagens, cujos pretendentes nem sempre honram com os compromissos firmados ante estímulos consumistas. As restrições bancárias avolumam-se na exata proporção dos calotes. Há medidas sendo estudadas para oferecer maiores garantias aos emprestadores de recursos financeiros.
Diferentemente de imóveis, que não têm pernas nem braços e que são imóveis porque não se encontrou no vernáculo outra palavra, os automóveis têm pneus, rodam a valer e podem sumir milagrosamente sob o comando de devedores, tornando as apreensões complexas e geralmente malsucedidas. Em resumo: o crédito para veículos é altamente arriscado e, portanto, exige total atenção.
Esse é apenas um dos pontos problemáticos da atividade. A concorrência entre as montadoras é brutal na medida em que mais indústrias aportam no Brasil, inclusive porque o governo federal criou regras de sobrecarga tributária aos importadores, relaxando-as na medida em que essas empresas investem em produção no País.
Cada nova montadora que chega ao Brasil mais aumentam as dores na Província do Grande ABC. Os empreendimentos chegam mais enxutos, mais produtivos e a salvo dos vícios atávicos locais. São vícios produtivos locais, segundo conceito dos investimentos, tudo que signifique custo a mais em relação a outras unidades do País.
Salão em embelezamento
Só o futuro vai responder à indagação sobre o grau de maquiagem dos produtos da Volkswagen em São Bernardo. Por enquanto, o Jetta representará apenas discreto do salão de beleza que visa conciliar interesses mais imediatos do comando da multinacional e lideranças sindicais pressionadas a dar respostas aos trabalhadores com a corda no pescoço.
Os temores de que mais cadeiras giratórias, escovas e espelhos serão reservados ao embelezamento provisório e insustentável não são descabidos. Há quem observe tanto na Volkswagen como em outras montadoras locais uma ampla sala de cirurgia bariátrica para conter tanto a pança de conquistas sindicais que já não seriam mais suportáveis num ambiente de competição duríssima quanto a fome pantagruélica de malemolências trabalhistas que ajudaram a erigir a torre do Custo ABC, do qual os investimentos fogem adoidados.
Por essas e por outras não posso, como ombudsman não autorizado da imprensa regional, dar mais que nota três, de zero a 10, às manchetíssimas do Diário do Grande ABC e do Diário Regional. São irmãs siamesas no esforço de reportagem que inclui, nocivamente, uma tentativa frustrada de esconder o principal, ou seja, o processo de maquiagem de uma montadora.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)