Pelo andar da carruagem de provocações à minha parca inteligência, não me resta alternativa senão ligar para o dono do Diário do Grande ABC, empresário Ronan Maria Pinto. Pretendo sugerir que, uma das funções que exerço no jornalismo regional, de ombudsman não autorizado (e não remunerado) passe por reavaliação.
Trata-se da seguinte proposta: ou deixo de ser não autorizado e passarei a receber numerários dignos da profissão outrora regulamentada ou penduro as chuteiras digitais. Estou exausto. Afinal, o Diário do Grande ABC em fase terminal de inteligência editorial, dá trabalheira danada. É mais fácil cuidar de um bando de adolescentes revoltados. Pelo menos eles são previsíveis na arte de aprontar. O quase sexagenário Diário surpreende até quem acredita que surpresa não encontrará no dia seguinte a cada manchetíssima, entre outros insumos editoriais.
A manchetíssima (manchete das manchetes da primeira página) de ontem, domingo, foi de lascar. Pura provocação à paciência gandhiana que, todos sabem, não tenho. Tanto que resolvi, imperialmente, criar o Troféu Manchetíssima Orelha de Ouro. Não preciso dizer que a marca tem tudo a ver com aquele equino tido e havido como a estultice em animal. O Diário deste cinco de outubro merece a condecoração. Vai ser tão difícil escapar à embalagem tanto quanto o prefeito Luiz Marinho do título de lorota imbatível com o tal aeroporto internacional em plena área dos mananciais em São Bernardo. O Aeroportozão sobre o qual tanto escrevemos.
E se fosse Dia do Flanelinha?
O que os responsáveis pela manchetíssima da edição de domingo do Diário do Grande ABC perpetraram contra o bom senso dos leitores foi uma mistura de desprezo e desdenho. Não sei se inverter a ordem da adjetivação não seria mais adequado.
O mundo inteiro do jornalismo impresso diário lascou em manchetíssimas as eleições para a presidência da República e tantos outros cargos. Menos o Diário do Grande ABC. A manchetíssima do jornal da Rua Catequese (“Municípios só entregam 35% das casas prometidas”) só não foi pior e mais despropositada porque não era o Dia Mundial dos Engraxates e tampouco o Dia Mundial dos Trombadinhas. Também se deve agradecer que não tenha sido o Dia Mundial da Bissexualidade ou o Dia Mundial dos Flanelinhas. Qualquer que fosse o dia por assim dizer menos importante do que o Dia Mundial da Habitação, correríamos o risco de ver uma manchetíssima ainda mais atrapalhada.
Vou explicar. Domingo, descobre-se ao ler a matéria da manchetíssima em página interna, foi o Dia Mundial da Habitação. O Diário do Grande ABC, preso às simbologias populistas do calendário gregoriano nacional, decidiu elevar à condição de prioridade da edição o placar da construção de casas populares na região. Esqueceu-se o jornal de, simplesmente, que o calendário político-eleitoral reservara a maior disputa nas urnas de todos os tempos, com dois milhões de eleitores na Província do Grande ABC e 143 milhões no País. Uma manchetíssima fria, que poderia continuar guardada numa gaveta qualquer do computador para chegar em forma de uma chamadinha qualquer de primeira página, atropelou a manchetíssima mais lógica desta Província.
Presente de grego ao presidente
Fico a imaginar a reação do presidente do Diário do Grande ABC, Ronan Maria Pinto, que de jornal não entende bulhufas, ao receber um exemplar do jornal ontem de manhã em seu apartamento. Por mais despreparado que seja Ronan Maria Pinto para entender de jornalismo, não se deve atribuir a ele qualquer participação relativa no Troféu Manchetíssima Orelhão de Ouro. Ronan Maria Pinto tem bom senso como a maioria dos leitores do jornal para entender que algo estava fora do lugar naquela primeira página.
A manchetíssimazinha (ou seja, a sub-manchete da manchetíssima) dava conta sim de que se tratava de um dia especial na vida dos brasileiros em geral. O título “Festa da democracia: o ABC vai às urnas”) está para lá de ufanista. O tom deveria ser outro, porque a abordagem seria outra, mas, se o material fosse levado à condição de manchetíssima e não de manchetíssimazinha, teria sido menos chocante.
Somente quem participou diretamente da operação editorial que elevou à manchetíssima do Diário do Grande ABC de ontem uma temática que fugia completamente à unanimidade nada burra das eleições merece compartilhar exemplares do Troféu Orelhão de Ouro. O autor da matéria não tem nada a ver com a história, porque repórter é para reportar, editor é para editar. Exceto, é claro, se o repórter forçou a barra em favor da manchetíssima habitacional. Possibilidade da qual duvido. Tanto quanto possível lobby da editoria de SeteCidades.
O que fico a perguntar é como se dá a definição da manchetíssima e das manchetes diárias de primeira página do Diário do Grande ABC. Se a reunião de final de tarde com todos os editores foi suprimida do cronograma, cometeram uma loucura. Se consta do cronograma e é rigorosamente respeitada, então o erro coletivo é mais grave. Provavelmente falte contraditório.
Instituto de pesquisas desprezado
Não se introduz sob nenhuma hipótese uma temática alheia à obviedade de uma manchetíssima sobre a escolha de novos mandatários no País, com ramificações regionais importantes. Nenhum outro assunto seria sequer tangencialmente tão importante. Nem as Torres Gêmeas se tivessem desabado em cinco de outubro de 2014 tomariam as eleições do espaço reservado à manchetíssima de cada jornal. O local de interesse social, para não dizer mercadológico, deve prevalecer sobre o restante.
No caso do Diário do Grande ABC o quadro é ainda mais surrealista quando se verifica que a publicação propagandeia a existência de um instituto de pesquisas próprio que, por duas vezes, foi às ruas para detectar o desejo do eleitorado local à sucessão presidencial e também ao Palácio dos Bandeirantes.
Qualquer cabeça razoavelmente preparada teria organizado tudo para uma manchetíssima fundamentada na interpretação dos resultados. Desta forma, contava o jornal com insumos especiais para retirar a cobertura do lugar comum de sempre e a instalasse num patamar de informação qualificada, prospectiva, provocativa até. Quem se ateve à leitura de meus comentários sobre as pesquisas do Diário do Grande ABC há de convir que o cardápio seria farto.
Se o jornal Diário do Grande ABC despreza o DGABC Pesquisas, como é denominado o instituto em questão, o que se deve esperar da sustentabilidade das sondagens eleitorais divulgadas primariamente pela publicação?
Parceiro em Presidente Prudente
Se em plena edição do dia das eleições o Diário do Grande ABC desconsiderar o calhamaço de resultados ao governo federal e ao governo estadual divulgado anteriormente, o que esperar dos percentuais que saltaram das páginas da publicação após as duas rodadas de investigar a vontade popular?
Se o DGABC Pesquisas, braço estatístico do Diário do Grande ABC, não tem estofo para assegurar condimentos jornalísticos sobre as intenções de votos divulgadas, não resta dúvida de que o jornal corre sérios riscos de ser contaminado pela possível precariedade dos estudos.
Para completar, tive o capricho de vasculhar os jornais filiados à APJ (Associação Paulista de Jornais), da qual o Diário do Grande ABC é integrante. Nenhuma publicação, exceto o Imparcial, de Presidente Prudente, cometeu erro semelhante, ao se definir por manchetíssima que fugia aos arranca-rabos das urnas.
Também naveguei por outros jornais paulistas não associados àquela entidade – e todos embarcaram na nave automática de manchetíssimas eleitorais. O Diário do Grande ABC, portanto, viveu um domingo no mundo da lua. Aqui na Província, o outro jornal diário, o Diário Regional, mais uma vez deveria servir de referencial às manchetíssimas do Diário do Grande ABC. O título (“No ABC, 2 milhões de eleitores vão às urnas neste domingo”) não enveredou por caminhos mais instigantes, mas também não viajou na maionese habitacional, ou algo parecido.
Mais lambanças ainda
A lambança do Diário do Grande ABC na edição de ontem da manchetíssima não se limita à submissão da disputa eleitoral ao Dia Mundial da Habitação. A manchetíssimazinha de primeira página, que focaliza as eleições sob a ótica regional, rivaliza-se em prélio árduo com o escorregão da escolha da abordagem principal. A manchete de página interna (“Região tem peso para eleger 40 deputados”), que sustenta a chamada de primeira página, é uma combinação de estupidez e irracionalidade.
Reproduzo os principais trechos da reportagem para, na sequência, provar que nenhuma adjetivação por mais agressiva que aparentemente seja pode ser considerada desproposital. Leiam:
O Grande ABC possui potencial político para eleger 40 deputados hoje, data do primeiro turno. O cálculo levantado para vagas proporcionais pode ser verificado em hipotética linha de corte de 100 mil votos. Com dois milhões de eleitores, a região conseguiria garantir 20 cadeiras parlamentares na Câmara Federal e outras20 à Assembleia Legislativa, caso a votação de todos os envolvidos no processo eleitoral fosse concentrada em candidatos de reduto eleitoral nas sete cidades. (...). Atualmente em exercício, a região tem representatividade de nove deputados (...) – publicou o jornal.
Uma bobagem monumental
Confesso que já li muitas bobagens, mas a projeção eleitoral do Diário do Grande ABC supera qualquer escorregadela do passado. A reportagem deixou de lado alguns princípios básicos de potencialidade, proporcionalidade, racionalidade e tudo o mais do mundo dos votos.
Para que elegesse 20 deputados estaduais e 20 deputados federais, conforme o cálculo escravizado pela linha de corte de que a cada 100 mil votos locais elegeríamos um deputado, para que isso ocorresse os dois milhões de eleitores da região deveriam ter ido às urnas ontem e sufragado só candidatos com residência na região.
Mais que isso: não poderia ser registrado sequer um voto nulo, em branco ou fruto de absenteísmo. As urnas deveriam registrar, portanto, 100% de comparecimento e de sufrágios em favor dos 107 candidatos locais. Tudo isso confirmado, teríamos de torcer para que fenômenos semelhantes não se dessem em outras geografias do Estado de São Paulo porque, se ocorressem, todo o esforço seria em vão porque contamos com apenas 6,15% do colégio eleitoral paulista e 1,5% do colegiado nacional.
Ou seja: possivelmente não teríamos mais que algo equivalente a esses percentuais de deputados estaduais e federais.
Fico preocupado com a possibilidade de que algum leitor tenha levado a sério tamanha sandice do jornal, porque, historicamente, não mais que 50% dos votos do colégio eleitoral da Província do Grande ABC são considerados válidos tanto à Assembleia Legislativa quanto à Câmara Federal, e desse naco uma parte considerável é generosamente destinada a candidatos sem qualquer relação domiciliar com a região.
Provavelmente tenha faltado à matéria do Diário do Grande ABC a sugestão que obrigaria todos os leitores da região não só a comparecerem como também a votarem em candidatos da região sob pena de, ao acionarem a urna eletrônica em desobediência à ordem geral e irrestrita, ser penalizados com um choque elétrico que os reconduziria automaticamente à inserção compulsória.
Não teria sido mais útil o Diário do Grande ABC ter investido numa pauta mais densa, mais qualificada, ao desvendar historicamente os números de votos destinados aos candidatos da região àquelas duas casas supostamente de leis, em vez de vender uma mercadoria imprestável à razão?
Total de 1884 matérias | Página 1
13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)