A manchetíssima (manchete das manchetes de primeira página) da edição de hoje do Diário do Grande ABC me leva a pensar sobre a possibilidade de encerrar a curta carreira de ombudsman não autorizado dos veículos de comunicação da região. Estou tão pronto a entregar os pontos quanto aquele pastor evangélico cansado de tentar converter um maníaco sexual. O Diário é um veículo tomado pelo vício do triunfalismo econômico.
É realmente de lascar que o próprio jornal, na prática de um triunfalismo que se perpetua como tatuagem, porque vem de longe, não tenha se dado conta de que o enunciado da manchetíssima é desmentido na reportagem de página interna pelo único empresário com vivência na região ouvido pelo repórter.
Sem exagerar, a manchetíssima do Diário do Grande ABC equivale a algo como se os jornais impressos de 12 de setembro de 2001 adotassem algo como o seguinte padrão de estupidez: “Relâmpagos derrubam Torres Gêmeas”. Para quem vive na Província do Grande ABC, em crise inescapável muito além do quadro nacional, a manchetíssima “Imóveis sobem mais que inflação” é uma heresia. É negar o óbvio ululante, como diria o impagável Nelson Rodrigues.
A gravidade do setor imobiliário na Província é tão preocupante que o exército de corretores de imóveis que frequentavam os melhores endereços de consumo praticamente desapareceu. Grande parte trocou de profissão. Ficar meses a fio sem concretizar uma única venda é enganar a si próprio. O desemprego dissimulado ultrapassou o limite da tolerância e se tornou desemprego crônico.
Cuidados gerais
Enquanto os grandes jornais brasileiros noticiaram com discrição e também com tonalidade menos efusiva a situação do mercado imobiliário em 20 praças de vários Estados medida pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), o Diário do Grande ABC alçou os índices gelatinosos à manchetíssima.
A matriz da pesquisa da Fipe, contestada por especialistas independentes, tem tanta robustez técnico-avaliativa quanto sugerir resultados extraordinários ao time pequeno da Série A do Campeonato Paulista que resolver vestir a camisa do Barcelona.
Trata-se, o índice da Fipe, de um banco de dados que ganha característica de páginas e páginas de classificados de imóveis digitais cujos preços dos imóveis anunciados pela Internet referenciam o movimento das pedras do setor. O índice Fipe não leva em conta uma situação mais que consumada do mercado imobiliário: preço anunciado é uma coisa, preço negociado é outra.
Além disso, o indicador não mostra transparência suficiente porque está a serviço do lobby do setor. Ao se atribuir cientificismo, o indicador é um motor de transmissão de resultados estatísticos divergentes em relação ao cotidiano dos municípios.
Empresário esclarecedor
Para retirar essa avaliação de qualquer compartimento subjetivo, e também para desqualificar o enunciado da manchetíssima do Diário do Grande ABC de hoje, o empresário entrevistado pelo jornal, Miguel Colicchio Neto, disse textualmente na reportagem: “Um imóvel que há um ano valia R$ 1 milhão, hoje não tem comprador por R$ 800 mil”. E completou, algumas frases mais adiante: “Não dá para falar em valorização. O mercado está relativamente parado neste ano”.
As declarações do empresário são uma exceção à regra de corporativismo. As entidades de classe só admitem alguma situação de dificuldade, como o Secovi passou a admitir nas últimas declarações do presidente Cláudio Bernardes, quando não há mais como sustentar ilusões. Por isso mesmo se exige jornalismo independente para, sempre com a garantia de sigilo da fonte, amealhar um conjunto de informações, dados, declarações e tudo o mais, repassando-os à sociedade.
A responsabilidade social de um veículo de comunicação é abrangente. Vale para qualquer tipo de informação e cresce na medida em que determinados temários ocupam persistentemente mais espaços editoriais, bem como a escala de valoração gráfica.
Manchetíssima é manchetíssima. É muito da história de uma publicação. O Diário do Grande ABC tem se especializado em produzir manchetíssimas indecorosamente contraproducentes. A manchetíssima de hoje expressa permanente ausência de cuidados na reta de chegada de fechamento editorial sempre extenuante.
Redação é uma fábrica de loucos. Com aberrações como a da edição de hoje, contaminam-se todas as demais matérias publicadas. Não há eventuais acertos editoriais da edição de hoje que neutralizem o desatino da manchetíssima. Quem é do ramo imobiliário e também quem não é do ramo mas se tem mobilizado em busca de algum espaço comercial e residencial não levará a sério um jornal que chega ao extremo de fiar-se contraditoriamente num site de classificados de preços solicitados, ignorando a instabilidade de região cujo centro de poder econômico está em crise. Caso mais que escancarado da indústria automotiva, com milhares de trabalhadores excluídos de chãos de fábricas e entregues a tarefas domiciliares sustentados por recursos do FAT e das empresas contratantes.
Exemplos não faltam
Ainda recentemente o mercado imobiliário da Província do Grande ABC mostrou o quanto sofre com os desencontros entre oferta e demanda. O empreendimento Domo, no entorno do Paço Municipal de São Bernardo e um dos grandes micos do setor, conheceu a distância que separa preço pedido e preço vendido. Apartamentos e salas comerciais novinhos em folha foram levados à leilão. Numa primeira rodada, mesmo com 40% de descontos, foram rigorosamente desprezados. Só numa segunda rodada, com preços mais convidativos, houve venda suficiente para arrecadar o equivalente a dívidas fiscais junto à Receita Federal.
No mercado imobiliário regional voltado a salas comerciais o estouro da boiada é ainda mais contundente. São milhares de espaços à espera de empreendedores e investidores que insistem em não aparecer. E não aparecem porque a mobilidade social da região está muito aquém da média nacional, como estamos cansados de provar.
A manchetíssima de hoje do Diário do Grande ABC (“Imóveis sobem mais que inflação”) não pode receber outra nota de zero a 10 senão zero.
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