Um cálculo inédito permite comprovar que uma intervenção cirúrgica de grande complexidade é mesmo questão de vida ou morte para o combalido organismo fabril da Volks Anchieta. Os 12,4 mil funcionários da unidade representam 13,1% dos 94 mil trabalhadores da indústria automobilística brasileira. Em contrapartida, os 193 mil automóveis montados na fábrica de São Bernardo durante o ano passado corresponderam a 8,4% do total nacional de 2,3 milhões de veículos leves. A diferença de quase cinco pontos percentuais indica que a planta regional da montadora alemã emprega gente demais em relação à quantidade de veículos que produz. Ou que produz muito pouco em comparação ao tamanho do efetivo funcional.
Para se ter idéia de como a Volks Anchieta está atrasada na corrida pela produtividade, basta comparar os números locais de produção e de empregos com os das plantas de outras marcas espalhadas pelo País. Com 3,7 mil funcionários, a fábrica da Ford na baiana Camaçari produziu 247 mil unidades em 2005. Isto é, com 3,9% da força de trabalho do setor, respondeu por 10,7% da produção brasileira. Na fábrica da General Motors instalada na gaúcha Gravataí os números são igualmente impressionantes: 1.930 funcionários, ou 2% do total nacional, e 130 mil automóveis em 2005, ou 5,6% da produção. Até a pequenina fábrica da Toyota sediada em Indaiatuba, no Interior de São Paulo, deixa a Volks Anchieta no chinelo em produtividade: com 1,6 mil empregados, 1,7% do País, produziu 57 mil unidades, equivalentes a 2,4% do total nacional. Com a ressalva de que a fábrica de Indaiatuba é especializada em automóveis de valor agregado, que não custam menos de R$ 50 mil.
A situação da fábrica da General Motors em São Caetano não chega a ser dramática como a da Volks, mas também não se aproxima das referências nacionais. Com 8,8 mil funcionários, 9,4% do total nacional, produziu cerca de 190 mil automóveis em 2005, ou 8,2%. Se a simples comparação entre a quantidade de empregados e o volume produzido seria suficiente para decretar a inviabilidade da Volks Anchieta nos moldes atuais, o cenário se torna ainda mais sombrio ao se considerar que no Grande ABC o custo unitário da mão-de-obra é muito mais alto do que em outras regiões. O próprio Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) ligado à CNM (Confederação Nacional dos Metalúrgicos) e à CUT (Central Única dos Trabalhadores) constatou – por meio de levantamento nacional – que a renda dos metalúrgicos do Grande ABC equivale a quase o dobro da média nacional. Isso significa que o quadro da Volks torna-se ainda mais insustentável se à distorção na relação entre trabalhadores e produtos forem acrescentados custos operacionais acumulados nos tempos de mercado fechado.
O Dieese não realizou o trabalho com a finalidade de consubstanciar as agruras das montadoras do Grande ABC. A intenção era converter a comparação entre salários nas diversas regiões em bandeira à adoção de contrato coletivo nacional, segundo o qual metalúrgicos de Norte a Sul do País seriam remunerados com base nos vencimentos do Grande ABC. O pano de fundo dessa proposta era a constatação, por parte do mesmo Dieese, de que não havia diferenças significativas de custo de vida entre Bahia, São Paulo, Rio Grande do Sul e outros Estados a ponto de justificar discrepâncias para menos, é claro. A moda não pegou, caso contrário a competitividade brasileira estaria ainda mais comprometida no embate com contendores internacionais em franco crescimento, casos de China, Índia, México, Coréia do Sul, Tailândia e Leste Europeu. Afinal, as montadoras definem investimentos de olho no mapa-múndi e têm predileção por países e regiões que oferecem custos mais baixos e melhores condições de crescimento. Não é o caso do Brasil, onde a média de imposto incidente sobre o zero-quilômetro – de 30% – faz com que o mercado interno se desenvolva em ritmo muito inferior ao sugerido pelo potencial da população continental de 180 milhões.
Miopia – Por mais que diferenças de produtividade e custos trabalhistas significativamente mais elevados asfixiem a fábrica mais antiga e ineficiente do País, os sindicalistas preferem ignorar as dificuldades como se vivessem no auge da industrialização do Grande ABC entre as décadas de 60 e 70. Desde o dia em que a Volkswagen anunciou o plano de reestruturação, em 3 de maio, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, José Lopez Feijóo, se antecipou ao deixar claro que, em hipótese alguma, aceitaria qualquer medida interpretada como precarização do mercado de trabalho ou perda de direitos adquiridos. Deu no que deu. Ao não conceder a menor possibilidade de alívio à Volks, com a terceirização de atividades satélites para sistemistas em condomínio industrial anexo, como fazem a Ford baiana, a GM gaúcha e a própria Volks Caminhões do Rio de Janeiro, por exemplo, os sindicalistas praticamente obrigaram a montadora a tomar atitude drástica de anunciar no mês passado 1,8 mil demissões a partir de 21 de novembro, quando se encerra o acordo de estabilidade de cinco anos. Em contraposição, os empregados optaram por fazer greve em assembléia realizada dia 29 de agosto.
Se os sindicalistas não fossem tão inflexíveis e não exercessem tamanho poder sobre as massas, pelo menos os funcionários sobressalentes da Volks Anchieta poderiam se desligar com o mínimo de dignidade. Mais maduro, o Sindicato dos Metalúrgicos de Taubaté firmou acordo para proporcionar demissões menos traumáticas a 700 funcionários até dezembro de 2008. Quem adere espontaneamente tem direito de receber 60% do salário a cada ano trabalhado, além de plano de saúde por três meses. Se a cota não for atingida por demissões voluntárias, a Volks se reserva o direito de indicar demissionários de acordo com critérios de qualificação técnica e aspectos sociais.
Se apenas os representantes sindicais adotassem oposição incondicional ao enxugamento de custos seria compreensível, embora lamentável, na medida em que legislam em causa própria e foram muito mal acostumados nos tempos de mercado fechado. O problema é que amplos setores da mídia e até do governo federal resolveram apedrejar publicamente a montadora, como se estivesse mal intencionada, e não emparedada pela competição nacional e internacional. Depoimentos melodramáticos e repercussões mal-acabadas pontificaram em páginas menos valorosas. O jornalismo presta papel infinitamente mais útil à sociedade quando explica os acontecimentos com isenção, profundidade e contextualização, sem se render ao apelo fácil da demagogia vazia. Afinal, se o enxugamento de um terço dos funcionários até 2008 prejudica muita gente, o corte de metade dos 12,4 mil trabalhadores em condições piores, isto é, sem pacote adicional de benefícios – e com perspectiva de fechamento da fábrica – prejudica muito mais.
A inestimável contribuição do governo federal veio em forma de recapitulação: sugestionado pelo ministro Luiz Marinho, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) resolveu suspender o empréstimo de R$ 497 milhões que havia concedido à Volks. Um governo tem todos os motivos para emprestar ou deixar de emprestar recursos a uma companhia privada. Mas espera-se que esteja blindado contra os interesses de categorias organizadas que, além de compor a base de representação partidária, não demonstram constrangimento em perpetuar privilégios bancados pelo conjunto dos brasileiros nos tempos de mercado fechado, mas que se tornaram insustentáveis no panorama da globalização.
Quem mete a colher nessa disputa?
DANIEL LIMA
Em briga de marido e mulher, ninguém deve meter a colher. Essa é provavelmente a resposta que os prefeitos do Grande ABC, o governador do Estado e o presidente da República gostariam de dar com sinceridade a quem insistisse em indagar o porquê de a ameaça de fechamento da fábrica da Volkswagen em São Bernardo não ter gerado reações públicas dessas instâncias de poder. Diretamente envolvido no caso, o prefeito William Dib tem sido persistentemente cobrado a manifestar-se. Afinal, aquele que talvez seja o maior símbolo da industrialização de São Bernardo pode virar sucata. William Dib escapa pelas portas dos fundos de complicações explicativas tanto quanto o governador Cláudio Lembo e o presidente Lula da Silva simplesmente porque o mar não está para peixe. E faz tempo.
A fábrica da Volkswagen é um corpo sobre o qual o médico endocrinologista chamado investidores internacionais recomenda imediata cirurgia. A obesidade mórbida já ultrapassou todos os limites e compromete seriamente os sinais vitais num mundo de competitividade extrema. Do outro lado do leito hospitalar estão sindicalistas travestidos de fisioterapeutas. Eles sugerem exercícios leves e um cuidado suplementar com a dieta alimentar para que tudo esteja sob controle. Tanto uns quanto outros sentem-se donos daquele corpo que exige extremos cuidados. Quem quer que apareça em cena adicionalmente se parecerá com paramédico, sem poder de intervenção.
O estado degenerativo da fábrica da Volks em São Bernardo é uma crônica situação anunciada há muito tempo por LivreMercado. Enquanto a mídia em geral ao longo dos anos insistia em destacar dimensões grandiloquentes dos números de produção, de faturamento e de infra-estrutura da empresa, e mesmo depois de graduais e discretas lipoaspirações fingia ignorar as mudanças que se fazem urgentes, LivreMercado foi a campo na medida exata para monitorar o quadro. São históricas as reportagens e entrevistas.
Esclerose – Provavelmente a principal análise sobre a situação da indústria automotiva no Grande ABC foi publicada como Reportagem de Capa de LivreMercado em agosto de 1998. “Quem desativa a bomba sindical” fez relato minucioso dos obstáculos que a Câmara Regional do Grande ABC encontrou para sensibilizar o ataque gradual e inapelável à esclerose regional no setor. Enquanto o restante da mídia mal e porcamente apenas registrava aquele encontro, LivreMercado foi a fundo e analisou o diagnóstico de representantes de montadoras e autopeças.
A enfermidade que atacava a Volkswagen já naquele período não era distinta do que se apontava nas demais montadoras e autopeças da região. A diferença é que a cultura germânica do Estado-do-Bem-Estar-Social se pretendia resistente para protelar indefinidamente medidas profiláticas que outras empresas, menos apegadas a conceitos que se esboroam com a globalização movida pela desigualdade de tratamento ao capital e ao trabalho, trataram de promover.
A Volkswagen de São Bernardo é um corpo estendido pelo qual tanto os executivos da multinacional como os sindicalistas se consideram legítimos e únicos responsáveis, com o poder de traçar o destino. Por isso, principalmente em época eleitoral, político ajuizado não cometerá a bobagem de entrar em bola dividida. Sabem que em rusgas domésticas parentes e vizinhos devem manter-se calados.
O paciente respira por aparelhos hoje porque, desde a destrambelhada abertura econômica, lhe surrupiaram regime que associasse cortes de custos acumulados nos tempos de mercado fechado e exercícios pós-operatórios de responsabilidade social.
As autoridades públicas de várias instâncias se omitiram na origem da construção do modelo de relações capital-trabalho no Grande ABC e lançaram a bomba para os sucessores que, espertos, fingem que não estão nem aí. Quem faria diferente?
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