Uma das muitas pragas que solapam o jornalismo destes tempos de vacas magras do mercado publicitário e de grandes transformações em plataformas de comunicação é a contaminação do sacrossanto território editorial pela sempre ensaboada geografia comercial. Embora seja o setor mais pernicioso no relacionamento com a mídia em geral, o mercado imobiliário não é o único opressor na praça a sequestrar pautas, transformando-as em boletins oficiais de tonalidades sempre auspiciosas.
Mas é mesmo o setor imobiliário, sobretudo de grandes corporações, o mais insidioso. Em linhas gerais, a atividade organizada em associações não obedece a critérios minimamente responsáveis de preservação da qualidade de vida nas grandes metrópoles. O céu é o limite no preenchimento dos planos de voos orçamentários.
Excluem-se dessa lista principalmente os pequenos (e médios) construtores. Eles sobrevivem às intempéries de competição desigual e guardam uma relação mais saudável com o ecossistema ao pulverizarem empreendimentos e ao desafiarem os grandalhões que se utilizam inclusive de poderes públicos para inibir, quando não bombardear, a competitividade desses concorrentes. O debate sobre o uso e a ocupação do solo em Santo André é sintomático dessa enfermidade ditada por interesse manipuladores do espaço urbano.
Cargos vantajosos
Ocupar cargo diretivo em entidade de classe potencialmente poderosa numa Província do Grande ABC e nas grandes capitais é sempre oportunidade a contrapartidas da mídia e, claro, dos poderosos do poder público. O toma-lá-dá-cá se estabelece sem cerimônia.
E são esses mesmos protagonistas que, hipocrisia das hipocrisias, saem a condenar a classe politica que atua semelhantemente. Provavelmente sentem-se usurpados porque a legitimidade digamos moral é dos políticos, já que o modus operandi se consagrou como ética paralela.
A diferença entre velhas e novas raposas do mundo corporativo e a classe dos políticos é que estes não têm como esconder o jogo de trocas, enquanto os mercadores de espaços publicitários e de inserções comerciais na mídia em geral o fazem de forma dissimulada.
Muitos insumos que aos olhos de consumidores de informações da mídia parecem de interesse geral não passam de preparação meticulosa para travestir a mentira ou a meia-verdade de realidade indiscutível. Sempre está disponível um bobo da corte de irresponsabilidade a propor ou a botar a carinha de pau de sempre para vender ilusões aos ouvintes, leitores e telespectadores.
Os leitores que tratem de desconfiar, e de desconfiar muito, de gente metida em trapaças negociais que aparecem aqui e ali em notícia mais que negociada. Noticiário negociado é uma coisa, dá para detectar logo, enquanto noticiário mais que negociado, porque dissimulado, é a noticia de contrapartidas a favores prestados direta ou indiretamente a determinados conglomerados da mídia que atuam em outras atividades.
Democracia relativa
Só vou acreditar na possibilidade de a democracia representativa dar um salto muito além do comparecimento às urnas e do funcionamento das instituições sem restrições bolivarianas quando corruptos imobiliários sempre em conluio com servidores públicos forem exemplarmente punidos pelos tribunais e, também, quando tiverem projetos de investimentos que respeitem a mobilidade urbana já nocauteada pela desídia legislativa e também por atalhos delinquenciais.
Sim, não canso de dizer e de escrever que o marketing demonizador do setor automotivo como grande vilão da qualidade de vida principalmente das metrópoles entupidas em suas artérias de conexão viária é uma articulação esperta. Tão esperta que até o setor automotivo detentor de marketing de ponta não encontrou ainda uma saída para dividir os prejuízos de imagem com os mercadores imobiliários de grandes corporações que empesteiam as principais ruas e avenidas com verticalização insana.
São tão espertos os mercadores imobiliários de grande porte e geralmente sem alma que ainda posam de benemerentes ao arguirem os recursos financeiros e materiais das concessões onerosas como espécie de prova de solidariedade e preocupação com a sociedade.
Quem conhece os números dos benefícios que os construtores imobiliários amealharam para construir mais espaços físicos do que a legislação inicialmente especificava sabe que se trata de um assalto ao trem pagador da paciência de motoristas e passageiros de veículos de passeio e coletivos.
Ainda recentemente escrevemos sobre esse assunto, ao qual chamamos atenção à leitura no link abaixo.
Raras reações
São raras as reações de jornalistas à hecatombe que estamos assistindo nas grandes metrópoles dominadas pelos mercadores imobiliários de grande porte que desprezam a sociedade mas procuram encantá-la mesmo que por alguns instantes. Faz parte desse arsenal o uso de mensagens de otimismo, diversionistas em larga escala porque escondem novos golpes de enriquecimento espúrio. Enriquecimento material que não leve em conta o bem comum não pode ser chamado de enriquecimento decente.
Recorro ao decano do jornalismo nacional, Alberto Dines, comandante do Observatório de Imprensa, melhor endereço do jornalismo, que, ainda ontem escreveu sobre o esfacelamento financeiro da mídia impressa e as consequências sociais dos produtos impressos que editam. Leiam:
(...) E daí, perguntará o leitor. Eis o que informa a própria Folha (de S. Paulo) na capa do caderno de classificados de imóveis, no domingo (/11): “Preços em desaceleração e vendas em queda em São Paulo”. Construtoras, imobiliárias e incorporadoras gozam de tabelas especiais, os jornais oferecem generosos descontos ao setor, os anúncios de página dupla começam a substituir os de uma página. A Folha está oferecendo seu precioso espaço por preços insignificantes, quase de graça. (...). Quando grandes jornais abrem mão de seus traços e compostura vão se apequenando nos demais atributos. Demitir – ou eufemismo de “interromper a colaboração” – acontece em qualquer empresa ou instituição. Afastar do quadro duas estrelas de primeira grandeza ao mesmo tempo e dessa forma descuidada, pusilânime, não é acidente, ou casualidade. É causal, tem um sentido, é ato político (não necessariamente partidário ou ideológico). Quando a imprensa é notícia, um dos dois está doente. Ou os dois. A Folha adora surpreender: é o seu charme. E a sua perdição – escreveu Alberto Dines sobre a demissão dos jornalistas Fernando Rodrigues e Eliane Cantanhede.
O que esperar?
Se os grandes jornais brasileiros estão cada vez mais debilitados e por conta disso abrem portas e janelas a todo tipo de gente sem ideia e muito menos interesse em entender o significado de responsabilidade social, o que esperar em territórios provinciais como este? Nada senão raríssimos respiros de independência informativa.
E é nesse vácuo que, principalmente o setor imobiliário de grande porte associado informalmente em carteis, ingressa com a impetuosidade dos centroavantes rompedores, aqueles sem arte mas que sempre ganharam manchetes desses mesmos e de outros jornais porque supostamente resolvem as paradas contra defesas fechadíssimas.
Pois no caso específico do equilíbrio informativo e analítico da mídia impressa diária, o que temos é um massacre de intensidade medonha. Profissionais de imprensa que caminham em sentido contrário, de combate franco e aberto aos poderosos de plantão, acabam sendo observados por alguns bandidos da praça como ervas daninhas a ser eliminadas a qualquer preço.
Minha sugestão aos leitores mais espertos e minha orientação aos leitores descuidados é no sentido de que não leiam notícias em jornais, não acompanhem no noticiário das emissoras de rádio e de televisão e nem trafeguem pelo mundo da internet de forma descuidada, descomprometida. Não acredite em bom-mocismo quando interesses econômicos, políticos e ideológicos dão sinais de presença mesmo que nas entrelinhas.
Mais ainda como recomendação: tomem cuidados quando algum exemplar de gataborralheirismo regional aparecer na mídia cinderelesca, porque a escolha a dedo não passaria de uma jogada de marketing de contrapartida por serviços prestados, condicionada à função de animador de auditório.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)