A capacidade de converter situações amargas em condições adocicadas é certamente uma das mais preciosas virtudes corporativas. E a Ford Brasil dá show na arte de transformar limão em limonada, ou crise em oportunidade, para usar sentidos antagônicos presentes no mesmo ideograma chinês. O limão, ou crise, é representado pela fábrica de automóveis e comerciais leves de São Bernardo, a mais antiga da marca norte-americana no País e certamente uma das mais ociosas entre as plantas de todas as marcas.
A produção de 55 mil unidades no ano passado representou metade da capacidade instalada. A limonada, ou oportunidade, é a solução surpreendente que o board internacional encontrou para soerguer a planta estremecida pela competitividade deflagrada pela globalização. A escolha da fábrica do Bairro Taboão para acolher a linha de montagem de novo modelo compacto representa golaço salvador aos 45 minutos do segundo tempo. A unidade regional de automóveis e comerciais leves estaria fadada ao fechamento sem esse novo produto.
A gravidade do quadro ficou clara em recente entrevista de Antonio Maciel Neto, presidente da operação sul-americana, ao Valor Econômico. O executivo deu a entender que os funcionários de São Bernardo vão passar mais tempo em casa nos próximos meses porque a montadora deve adotar medidas como banco de horas e férias para reduzir ainda mais o ritmo de produção. A pisada no freio se fez necessária porque a valorização do real minou a competitividade das exportações do automóvel Ka e da picape Courier. Os modelos produzidos em São Bernardo são relativamente simples, baratos e, portanto, mais sensíveis a reajustes de preços que se tornaram inevitáveis diante da depreciação do dólar. Nesse quadro adverso, o projeto do automóvel popular elaborado pela engenharia brasileira representa a tábua de salvação para os 3,1 mil funcionários.
Especialmente por conta da expiração do acordo de estabilidade celebrado em 2001 pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC diretamente com o quartel-general nos Estados Unidos. “Os trabalhadores serão aproveitados na linha de montagem do novo carro” – garantiu Antonio Maciel Neto.
A questão conjuntural da perda de competitividade no mercado internacional soma-se à vulnerabilidade estrutural da indústria automobilística no Grande ABC. Custo da mão-de-obra inflado em décadas de enclausuramento alfandegário, deficiências logísticas tipicamente metropolitanas e o festival de incentivos fiscais patrocinado pelo regime automotivo são os principais ingredientes de um prato indigesto que levou montadoras a implantar novas fábricas de automóveis bem longe do berço automotivo. A própria Ford foi protagonista da pulverização ao instalar megacomplexo industrial na baiana Camaçari. Quando todos os sinais indicavam que a concentração de 100% dos automóveis e comerciais leves da marca na planta nordestina era apenas questão de tempo, e São Bernardo cuidaria exclusivamente da manufatura de caminhões, a montadora alterou o rumo dos acontecimentos com a surpreendente decisão de alocar automóvel popular no Grande ABC. Se a fábrica baiana é mais econômica e moderna, quais fatores teriam desequilibrado o jogo em favor de São Bernardo? Muitos. A criação de ambiente favorável por parte do prefeito William Dib e do Sindicado dos Metalúrgicos do ABC contribuiu sobremaneira. Dib ofereceu isenção de IPTU (Imposto Predial, Territorial e Urbano) e fez ponte de interlocução junto ao governo estadual para viabilizar construção de barreira de contenção de enchentes.
A representação dos trabalhadores concordou com a instalação de sistemistas de autopeças na área da montadora para terceirização de atividades tradicionalmente executadas pela própria Ford. A liberação de créditos tributários sobre exportações pelo governo do Estado também pesou na balança. Mas o principal motivo diz respeito à necessidade de preservar a imagem construída em 87 anos de atividades no Brasil. O fechamento da fábrica de São Bernardo deflagraria embates desgastantes com sindicalistas e causaria danos irreparáveis à reputação corporativa. Moral da história: se fugir é hipótese fora de cogitação, o melhor é lutar com as armas disponíveis.
Quem conhece a trajetória recente da Ford Brasil não duvida da capacidade de o limão da fábrica ociosa virar limonada de plataforma para novo produto campeão de vendas. A companhia sobreviveu ao nocaute representado pela associação com a Volkswagen sob a égide da Autolatina, recuperou a auto-estima abalada pela perda de participação de mercado, deu a volta por cima com o lançamento de novos produtos e passou a se sustentar com as próprias pernas.
Após nove anos de prejuízos consecutivos, desde que desfez a aliança com a Volks em 1995, a companhia finalmente voltou a respirar sem aparelhos: a divisão sul-americana da qual o Brasil é o carro-chefe obteve lucro de US$ 389 milhões no ano passado, quase três vezes mais que os US$ 140 milhões colhidos em 2004 – o ano da virada financeira. Com esses resultados a Ford se tornou uma das poucas montadoras capazes de ganhar dinheiro no Brasil. A maioria das concorrentes está no prejuízo porque a ociosidade do parque nacional continua elevada, na casa dos 30%, e a rentabilidade das exportações virou pó com a valorização do real.
A substituição do vermelho pelo azul no balanço financeiro resulta de ações ousadas que compõem um dos principais cases brasileiros de sucesso empresarial. Contrariando críticos que só concebiam produção industrial de alta qualidade no terço inferior do mapa brasileiro, a Ford apostou todas as fichas na instalação de uma fábrica de automóveis na Bahia, a milhares de quilômetros do principal mercado consumidor e dos tradicionais redutos de mão-de-obra especializada. E levou quase 30 sistemistas de autopeças, cuja instalação dentro do próprio complexo industrial é sintomática do comprometimento que caracteriza a manufatura do século XXI.
Independentemente de juízo de valor sobre os efeitos da guerra fiscal nas finanças públicas, o fato é que a Ford soube aproveitar a onda de incentivos fiscais e creditícios oferecidos pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Protagonizou a descentralização automotiva mais atribulada da história nacional e foi recompensada à altura da coragem: a participação de mercado que patinava em 7% no pós Autolatina hoje se situa em 12%.
O incremento do market share é reflexo do sucesso dos modelos escolhidos para a nova fábrica na Bahia – o novo Fiesta, lançado em maio de 2002, e o EcoSport, que chegou às revendas em março de 2003. A campanha de lançamento do novo Fiesta teve Antonio Maciel Neto como garoto-propaganda. O executivo de cabelos grisalhos aparecia no horário nobre televisivo com uma proposta aparentemente irrecusável que denotava o nível de confiança no produto: convidava os consumidores a ir até as concessionárias fazer test drive com o novo Fiesta e, se mesmo assim adquirissem automóvel de outra marca, a Ford pagava R$ 100,00 aos refratários. Quem não se lembra?
O EcoSport tornou-se campeão absoluto na raia dos utilitários esportivos porque tropicalizou modelos importados mais caros e inacessíveis que povoavam o imaginário de parcela expressiva de consumidores. Juntos, novo Fiesta e EcoSport conduziram a planta baiana ao limite da capacidade, com produção de 246 mil unidades no ano passado. Mais um motivo que determinou a implantação do novo modelo compacto na fábrica do Grande ABC.
Pouco se sabe sobre o novo modelo engatilhado para São Bernardo em 2008. Características do veículo, valores de investimento e detalhes da relação com os sistemistas de autopeças permanecem trancados a sete chaves. As únicas certezas são que será veículo de entrada de mercado, com preço abaixo de R$ 25 mil, e, a julgar pelos lances mais recentes da Ford no Brasil, vem com tudo para arrasar.
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