Economia

Cidadania e corporativismo

DANIEL LIMA - 22/03/2005

A conversão do sindicalismo corporativista em sindicalismo cidadão segue distante do padrão minimamente desejado. Essa antiga cantilena de quem reconhece que há imenso déficit histórico de os trabalhadores se preocuparem apenas com seus importantes, mas próprios umbigos, está a léguas de distância do que a comunidade em geral prescinde dentro dos princípios de capital social.


A recíproca é verdadeira em direção ao empresariado, igualmente intestinal, cultivador de relações individualistas mesmo no seio de entidades de classe. Aliás, grande parte de empresários integra-se a instituições para acessar canais de interlocução pessoal que o anonimato de vôos individuais dificulta.


Podem alegar tanto os sindicalistas como os empreendedores que mobilizações intramuros associativistas se expandem complementarmente ao conjunto da comunidade.


Entretanto, a alegação não passa de sofisma. Ou melhor: decisões se esparramam mesmo para a sociedade, mas em muitos casos, historicamente, sob o peso de sobrecarga de custos de produtos, serviços e impostos. Ou seja: o conjunto da sociedade em algum momento e durante muito tempo será atingido pelos resultados de negociações em gabinetes refrigerados, cercadas de ti-ti-ti marquetológico manjadíssimo.


Querem um exemplo claro, cristalino e insofismável? O Custo ABC, caracterizado entre outros quesitos pelo padrão salarial dos trabalhadores com carteira assinada no setor industrial, é subproduto direto de mobilizações de lideranças sindicais a partir de Lula da Silva.


A muito custo, depois da abertura econômica a partir dos anos 90, primeiro com Collor de Mello, depois com Itamar Franco e principalmente com Fernando Henrique Cardoso, parte do Custo ABC acabou dinamitado em vários setores. Mesmo nos mais tradicionais redutos de aguerrimento sindical, como os metalúrgicos. Sim, pequenas e médias indústrias que restaram da hecatombe fernandohenriquista, desativaram pacotes de conquistas sindicais pelo simples motivo de que ficaram entre a cruz da insolvência econômico-financeira e a espada da evasão.


Uma recente e inédita reportagem da revista LivreMercado deu a dimensão das grandes contra-transformações do setor metalúrgico do Grande ABC nos últimos anos, quando se rasgaram na prática muitos dos principais quesitos das chamadas conquistas históricas.


A constatação, divulgada na semana que terminou, pela Secretaria de Desenvolvimento e Ação Regional de Santo André, de que nove em cada 10 dos empregos formais criados no ano passado na região, num total de 48 mil, ofereceram a seus ocupantes não mais que três salários mínimos, clareia ainda mais essa mudança.


A idéia de que o sindicalismo dos trabalhadores poderá seguir corporativo e com isso arrancar dividendos econômicos das empresas está ultrapassada. O jogo da competitividade internacional que permeia a maioria das cadeias produtivas do Grande ABC é muito mais envolvente e asfixiante. O movimento grevista e reformista dos tempos de mercado fechado, de ganhos inflacionários geralmente concertados entre sindicalistas e empresas, entrou para o museu de arqueologia trabalhista.


Ora bolas, se isso é fato incontestável, e o melhor medidor dessa equação é o rebaixamento contínuo dos salários dos trabalhadores pressionados pelo desemprego avassalador no mercado interno e o rabo-de-arraia de concorrentes internacionais, por que então os sindicatos e as lideranças empresariais insistem em perpetuar chavões de cidadania se nada fazem nesse sentido? Que vantagem Maria leva nesse jogo de cena se a debilidade estrutural da cidadania nacional está na raiz do avanço pantagruélico de impostos do Estado em suas três esferas?


Não há como resistir à tentação de ser absolutamente claro e pragmático: o que temos de maneira geral na engenharia de instituições trabalhistas e empregadoras deste País é um modelo desatualizado de atuação que transmite a sensação de que se prende às raízes corporativas como super bonder.


Mais que isso: presos como estão a conceitos superados, a maioria de seus representantes se agarra aos cargos como indianas jones em improvisadas embarcações sobre rios empesteados de crocodilos.


A diferença entre ficção e realidade é conhecida de todos.


Enquanto nas telas o protagonista é ovacionado, na vida real o que temos, anos após anos, é um quadro de esfacelamento do setor produtivo, cujos números positivos do PIB no ano passado não conseguem esconder a exclusão empresarial que atinge milhões de pequenas e médias organizações impedidas de mobilidade empreendedora.


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