Foi logo após a vitória de Lula da Silva que, da virtualidade da newsletter Capital Social Online, entrincheirei-me de indignação contra o sociólogo José de Souza Martins. A fim de proteger seu guru Fernando Henrique Cardoso, ele viu no resultado eleitoral prova de mobilidade social no Brasil. Aquela newsletter de 19 de novembro de 2002, sob o título “Lula não é exemplo de mobilidade social”, é resgatada agora da memória parafernálica de meu computador. E para que os leitores deste Diário possam entender o que pretendo explicar na sequência, pinço alguns parágrafos daquele trabalho:
“O anacrônico e claramente avocativo e autobajulativo conceito de mobilidade social propagado por um sociólogo conhecido internacionalmente, atual presidente da República do Brasil, corroborado por outro, menos conhecido e seguidor do primeiro, o professor uspiano José de Souza Martins, não pode ser consagrado como idéia de afirmação de um modelo econômico que, todos sabem e sentem, se converteu em falácia. Dizer que ex-retirante e ex-metalúrgico Lula da Silva, presidente eleito do Brasil, é generalização da mobilidade social brasileira nestes tempos de escaladas descendentes de salários formais e de inchaço da informalidade, do desemprego, do subemprego e do empreendedorismo autônomo de subsistência, é no mínimo um oportunismo semântico e dialético que cala fundo apenas nos incautos”.
“Senhores sociólogos que andam a propagar Lula da Silva como corolário da mobilidade social que invalidaria toda a realidade de um Brasil que não consegue crescer, prestem mais uma vez atenção para a diferença entre mobilidade social e mobilidade corporativa. Lula da Silva como tantos outros que estão em Brasília, no Executivo, no Legislativo, no Judiciário, como tantos que estão nas capitais, nos municípios, a exercer mandatos públicos, a comandar entidades de classe, a dirigir sindicatos, a exibir nas lapelas símbolos de suas cidadelas conquistadas, todos esses, senhores sociólogos, são a mais refinada expressão do corporativismo brasileiro. São infantarias indestrutíveis em suas jornadas sobretudo voltadas para a defesa de interesses específicos, muitas vezes disfarçados por uma verborragia de responsabilidade social que se esgota em projetos de puro efeito marquetológico”.
Recorro, portanto, a fragmentos daquele texto cristalizador do que chamei e chamo de mobilidade corporativa, porque na edição de sábado do Estadão o mesmo José de Souza Martins, agora em brilhante artigo, discorreu sobre o quadro de exclusão social de São Paulo. Sob o título “A cidade clandestina dos sem-prefeito”, o sociólogo com ramificações no Grande ABC costura com competência dos atentos e bem aquinhoados tecnicamente o que está por trás dos 2,1 milhões de habitantes da Capital que vivem em favelas, cortiços, habitações improvisadas e na rua.
Numa mistura aparentemente paradoxal de distanciamento acadêmico e proximidade cidadã, o texto de José de Souza Martins percorre uma São Paulo que na essência só é diferente do restante do Brasil porque é o quarto maior aglomerado humano do planeta, considerando-se o perímetro metropolitano do qual é o centro catalisador e irradiador. O sociólogo que viu mobilidade social e não mobilidade corporativa na vitória de Lula da Silva parece se penitenciar nesse novo texto, embora em nenhum parágrafo faça qualquer menção, mesmo que indireta, à realidade que negara anteriormente, levado na onda ideológica de FHC.
Longe de mim ao menos insinuar que José de Souza Martins tenha capitulado. Fundamentalmente, não acredito que chegue a tanto, porque, segundo aqueles que o conhecem mais de perto, tratar-se-ia de um caso emblemático de irrevogabilidade da palavra academicamente empenhada.
De qualquer modo, matem a curiosidade da guinada do sociólogo com as seguintes frases, retiradas do artigo: “A São Paulo clandestina não elege ninguém nem tem direito a nenhuma forma de expressão que dê visibilidade política e institucional à sua condição anômala, peculiar e desumana de habitar. Quando vota, seu voto se dissolve em políticos que representam a cidade legal, onde não vivem, mas não a cidade clandestina, onde vivem.
Ganham identidade quando aparecem de maneira desproporcional e injusta no noticiário policial. Há um abismo entre essa multidão espalhada pela cidade e a administração da cidade” — escreveu o sociólogo.
Lamento apenas que José de Souza Martins não se tenha dado conta, há mais tempo, de que um País cujo PIB cresceu em média míseros 0,3% nos últimos 20 anos, contra 1,5% do restante do mundo, não se tenha posicionado com o mesmo senso crítico há mais tempo. Principalmente durante o governo FHC, responsável pela sobrecarga de 11 pontos percentuais dos tributos em relação ao PIB e da queda semelhante da participação da renda dos trabalhadores na produção de riqueza.
Ou seja: Lula da Silva recolhe sobras históricas de exclusão social que, ao recebê-las anteriormente, FHC conseguiu a proeza de elevá-las com a proletarização da classe média.
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