Foi encanto à primeira vista. Quando a professora da primeira série do curso ginasial da Escola Técnica Julio de Mesquita explicou aos alunos a metamorfose pela qual passam as crisálidas, da evolução do casulo até se transformarem em borboletas, apaixonei-me imediatamente pela palavra.
Vivíamos tempos de grandes metamorfoses naqueles anos 1960. Beatles, Jovem Guarda, a guerra do Vietnã, a revista Realidade, a televisão...
Existia no ar um profundo clima de mudanças que, imaginávamos, viriam para melhorar -- e muito -- nossas vidas. Porque tudo apontava para uma outra palavra mágica: o progresso. Tinha-se a impressão de que as novas indústrias e suas chaminés, os loteamentos, o crediário, a intensa movimentação dos ônibus carregando operários nos fins de madrugadas chegavam para incluir todos no novo eldorado brasileiro.
Mas algo não fazia sentido. Minha despedida da infância foi marcada por uma grande decepção. O meu paraíso, uma ampla área verde que se prolongava do quintal de casa até o Ribeirão dos Meninos, aquela imensa selva onde existiam muitas nascentes, lagoas, pássaros, borboletas com muitas espécies nativas de legítima Mata Atlântica, foi colocada abaixo pelos tratores. O terreno foi nivelado, aterraram nosso campo de futebol. Surgia um novo loteamento.
Seria aquilo progresso? Para mim teve o sabor amargo de uma metamorfose invertida: a borboleta se transformou em lagarta.
A casinha
Vivi a adolescência envolvido num grande sonho: ser jornalista. No sítio de meus avós maternos, em Atibaia, onde procurava recuperar, nas férias escolares, o verde do meu paraíso perdido da infância, dona Emilia contava admiráveis histórias de Assis Chateaubriand e Carlos Lacerda. Ouvíamos juntos, à luz de lampião, num rádio de pilhas, o noticiário da Rádio Nacional, em ondas curtas e da Rádio Tupi em ondas médias. Aos domingos, caminhava quatro quilômetros para buscar a Folha de S.Paulo na estação do trem.
Ainda não sabia como ingressar na profissão quando surgiu a grande chance, aos 17 anos, após ter sido office boy, auxiliar de escritório, arquivista e faturista ganhando entre meio e um salário mínimo. A porta foi o Expositor Cristão, centenário órgão oficial da Igreja Metodista onde eu era uma espécie de faz-tudo, desde revisão de artigos escritos à mão pelos colaboradores até o acompanhamento dos linotipistas e paginadores na gráfica. Suspirava fundo e a espinha gelava quando o ônibus passava defronte o então majestoso edifício do "News Seller", predecessor do Diário do Grande ABC.
Preparei-me. Escrevi algumas matérias assinadas, consegui uma apresentação com o pastor Lenildo Magdalena e numa noite pulei o muro do "Américo Brasiliense", onde cursava o segundo colegial, e apresentei-me a Fausto Polesi, diretor de Redação do Diário. A grande escola aconteceu naquela que, carinhosamente, chamávamos simplesmente de casinha.
O milagre
Era 1971. O Brasil vivia os melhores momentos do "Milagre Econômico" e as chaminés fumegavam com intensidade. Emprego farto e, assim mesmo, imensas filas rodeando a portaria das principais indústrias. Migrantes não paravam de chegar. Mais e mais loteamentos, as primeiras invasões e muita poluição no ar e nas águas do Tamanduateí e Meninos. De minha parte, desconfiava cada vez mais que o tal "progresso" já revelava os primeiros sinais de que algo muito ruim poderia vir à frente. Em 1973, apesar de avançar rapidamente na carreira, como repórter geral -- também faz-tudo -- e depois na política, onde dividia a coluna assinada com o colega Aleksandar Jovanovic, confrontei-me com a necessidade de promover uma guinada radical.
Alguns diretores do Sindicato dos Jornalistas que haviam trabalhado no Diário entraram em conflito com a empresa e mandaram um recado direto: ninguém dali conquistaria o registro profissional. Tive de optar pelo sonho e abrir mão do emprego. Mas valeu. Dois meses após, com o registro de nº. 10.045 gravado na carteira profissional, cheguei eufórico à redação da Folha de S.Paulo. Foi como alcançar o Olimpo aos 20 anos! Teria a oportunidade de conviver com os grandes nomes do jornalismo de então, entre eles meu chefe de reportagem, João Baptista Lemos. Vindo da Última Hora, de Samuel Weiner, Lemos também houvera dirigido a redação do "Repórter Esso" na TV Tupi, o "Jornal Nacional" da época.
Descompressão
O melhor da Folha daqueles tempos não acontecia propriamente na redação. Ali, imperava o pipocar frenético das máquinas de escrever e a pressa com os horários de fechamento. A grande escola acontecia após as 20h no bandejão, um restaurante-choperia ao lado do prédio do jornal. Era onde se reuniam aqueles monstros sagrados do jornalismo. Que acolhiam, com inesperada generosidade, naquele ambiente que eles denominavam câmara de descompressão, o "foca do ABC". Grandes histórias, grandes lições.
Fui destacado para cobrir a área de transportes. Uma de minhas principais fontes era o secretário de Transportes do Estado, Paulo Salim Maluf, amigo de um dos donos da Folha, o empresário santista Carlos Caldeira.
Diariamente, recebia uma pauta do Lemos e voltava horas depois com pelo menos duas notícias. A segunda era recolhida com Maluf. Ele com suas futuras pretensões políticas e eu sabendo que tinha espaço garantido. Em pouco tempo o "foca do ABC" ficou conhecido na redação.
Mas foi paixão que me trouxe de volta ao Diário. Apesar do sucesso meteórico na Folha, emplacando três manchetes e três chamadas de primeira página no curto período de nove meses, não resisti à tentação de aceitar o convite para retornar, agora como chefe de reportagem. Com muita ousadia, aos 21 anos e uma credencial diferenciada: eu era a única "prata da casa" que experimentara a vibração da redação de um grande jornal.
Mito do desenvolvimento
A volta ao Diário veio acompanhada de um desafio ambicioso: ajudar Fausto Polesi a estruturar nosso então provinciano matutino nos moldes da grande Imprensa. Para elaborar o projeto da nova redação bisbilhotei o Estadão, os Diários Associados e mergulhei, durante três semanas, na redação do Jornal do Brasil, no Rio, onde Alberto Dines houvera criado o melhor modelo. Como compensação, negociei ir cobrir o congresso da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) em Recife. E foi lá, no encontro da comunidade acadêmica, um oásis de liberdade naqueles anos do Regime Militar, que deparei com a explicação para minhas antigas perturbações. Ela veio do economista Celso Furtado, ex-ministro de João Goulart e criador da Sudene com Juscelino.
Naquele 1974, quando o entusiasmo do milagre econômico recebia o balde de água fria da primeira crise do petróleo, Furtado explicou, didaticamente, que o poder financeiro comanda o poder político. Reúne, nas fundações patrocinadas pelo grande capital mundial, as melhores cabeças do planeta e projeta os acontecimentos para as próximas duas décadas. Instala suas fábricas nos países periféricos, onde há fartura de matéria-prima, pouco ou nenhum cuidado com o meio ambiente e abundância de mão-de-obra barata, o chamado exército de reserva. Era o retrato do Grande ABC, com suas chaminés poluentes e as filas nas portas das fábricas. Nascia a pauta da série que obteria o Prêmio Esso Regional de 1976.
Anos dourados
Jogando luz sobre o passado, não tenho dúvida em afirmar que jamais conheci equipe de maior entusiasmo, garra, dedicação e talento do que aquela que fazia o Diário do Grande ABC nos anos 1970. Minha convicção decorre do fato de ter trabalhado nas grandes redações: na Folha, como repórter; no Estadão, como editor-assistente de Política e no Jornal do Brasil, como correspondente no Grande ABC entre 1974 e 1980. Foram anos dourados em que conseguimos dar consistência às lições do professor Fausto Polesi e seu inseparável giz azul com o qual fazia correções nos originais. Conseguimos fazer o Diário ganhar respeito na chamada grande Imprensa e projeção no cenário nacional. Não foi tarefa individual. Tratou-se da harmonia competitiva, por vezes conflituosa, de um time que jogava unido na redação, com o respaldo de Edson Danillo Dotto, Ângelo Puga e Maury de Campos Dotto.
O Diário cresceu e prosperou naqueles anos. Ganhou mais e mais páginas, mais leitores, mais publicidade. Passou a ser a referência da opinião pública regional.
O "Esso" Regional veio como espécie de consagração de um momento intenso e mágico onde, pela primeira vez, o chamado progresso, o eldorado industrial brasileiro foi questionado. Mostramos, na série de reportagens, o outro lado da moeda. A poluição, as favelas, a destruição do meio ambiente e a rotatividade da mão-de-obra que já se fazia acompanhar do desemprego.
Rota do caranguejo
Infelizmente Celso Furtado tinha razão. A série que rendeu o "Esso" há 32 anos permanece atual. Atrás do loteamento que roubou meu paraíso da infância instalou-se uma favela no começo dos anos 1980. Para poder construir a outra pista da Avenida Lauro Gomes, no lado de Santo André, a Prefeitura precisará aplicar o dinheiro da população em onerosas desapropriações. O entorno da Represa Billings também foi ocupado e compromete o abastecimento de água da região e de parte da Grande São Paulo. A poluição diminuiu porque muitas fábricas, pressionadas pela Cetesb, mudaram-se para longe e levaram milhares de empregos.
O mito do desenvolvimento econômico e a metamorfose da industrialização deixaram como herança a violência, a criminalidade, o caos da saúde e do trânsito. A região segue a rota do caranguejo: caminha sem sentido, para os lados e para trás, enquanto, no restante do País, são reprisados os mesmos erros aqui cometidos há mais de três décadas. Tudo pelo sonho do tal "progresso" onde a vida humana deixou de ser prioridade e ter valor.
O muito saber é muito sofrer, ensinam as Sagradas Escrituras. Seria confortável e menos angustiante vislumbrar alguma luz no fim do túnel do desenvolvimento desenfreado.
O que mais assombra é que o tema parece não incomodar a maioria das pessoas. Cada qual toca a vida em seu casulo, indiferente à metamorfose coletiva que, certamente, não vai gerar borboletas.
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)