Ainda bem que o destino me proporcionou a possibilidade de revisar uma frase da edição de abril de 2013, provavelmente numa manhã aziaga. Tratei do desencanto de ver o Grande ABC ser o que já era e continua a ser, ou seja, um território frustrante para quem se incomoda com o desperdício do futuro em forma de presente de inutilidades.
Afinal de contas, o que escrevi naquela edição de CapitalSocial que, vejam só como o mundo editorial é complexo, um leitor ainda outro dia fez questão de me lembrar. Mais que lembrar, o leitor me indagou se mantinha o que escrevera depois de ter passado o que passei, ou seja, sobrevivido àquele tiro no rosto.
O leitor pediu para que eventualmente, se abordasse o assunto, não o identificasse. Como faço do jornalismo confessionário, eis que sustento a promessa de manter o interlocutor no anonimato. E revelo, em seguida, a frase retirada das catacumbas do tempo e que, por conta de tudo que vivi nos anos seguintes, merece mesmo uma reavaliação. Vejam o que escrevi:
QUANDO MORRER, SOBRE MEU TÚMULO ESTARÁ A SEGUINTE FRASE, EM LETRAS MATERIALMENTE SIMPLES E DURADOURAS, DIRIGIDA PRINCIPALMENTE A QUEM DEDIQUEI DÉCADAS DE JORNALISMO INQUIETO E COMBATIVO: “CANSEI DE DAR PÉROLAS AOS PORCOS”.
Nada melhor que o tempo para recompor determinadas definições. Tanto que torno aquela frase inválida, desatualizada, descaracterizadora de meus sentimentos. Não vale, portanto, para o meu epitáfio, porque é disso que se trata. Qualquer dia vou dar conta de outra definição. Garanto que será adocicada. Razões não me faltam.
Não vou partir de um extremo a outro a ponto de abandonar os porcos e ingressar numa embarcação de felicidade total e inquestionável. Nada disso. Só não posso tornar chiqueirinhos dos porcos sociais os principais agentes de lembranças e definições.
Acho que o mais importante nessa altura do campeonato, quando estou próximo de completar uma extraordinária marca de longevidade jornalística, iniciada antes de completar 16 anos em Araçatuba, é ter a exata noção de que não faltam mesmo porcos para as pérolas de responsabilidade social que exponho com abnegação total, mas, por outro lado, todavia e contudo, há cada vez mais leitores que se manifestam reservadamente no aplicativo que uso para uma versão em tempo real desta publicação.
PORTAS ABERTAS
Costumo dizer que mantenho as portas de minha vida profissional abertas a mais de três mil formadores de opinião e tomadores de decisões diretos cadastrados no aplicativo WhatsApp ao longo do tempo, desde o período da revista LivreMercado. Outros milhares de leitores recebem meus textos em grupos de outros aplicativos, e sobre os quais não tenho nenhum controle, e também por e-mail.
Os leitores diretos de CapitalSocial, que constam de minhas listas de distribuição, são leitores diferentes de outros leitores. Não existe um leitor sequer que transite pelo inferno da maledicência, do descaramento, da ofensa regiamente paga, do escárnio dos cafajestes.
Meus leitores diretos são leitores críticos e atentos. Meus leitores indiretos são também dessa envergadura ética, com a ressalva de que há grupelhos adredemente preparados, porque abastecidos de recursos públicos fraudulentos, para me espicaçar.
DESORDEIROS MORAIS
Pois é exatamente por conta dessa minoria paga para xingar e ofender antes mesmo que um texto seja consumido, porque são desordeiros éticos e morais, que torno morta e enterrada a frase com que pretendia ver minha lápida decorada.
Não seria por conta de uma minoria desonesta, literalmente uma minoria de meia dúzia de bandidos sociais, que deixarei de festejar a graça da ressonância de minhas observações diárias. A esses delinquentes não me preocupo em responder. Aos demais, não deixo um sequer sem a devida atenção.
Não seria justo comigo mesmo e tampouco com os leitores responsáveis e de fato ávidos por meus textos que sustentaria aquela frase resgatada por um leitor atento ao tempo. Um leitor de minhas listas de transmissão.
OBRIGAÇÃO PROFISSIONAL
É possível que um e outro leitores estejam avaliando se me faço pertinente neste texto. O assunto tratado supostamente não estaria inserido no padrão temático desta publicação. Pensei nisso. Entretanto, não é a primeira vez nem será a última que trato de questões mais íntimas, por assim dizer.
Acho que os leitores de listas e grupos têm o direito de saberem o que pensa e o que faz um jornalista que não abre mão da transparência no relacionamento diário. Jamais utilizaria minha atividade guiada profundamente por sentimento de entrega social não fosse por razões que de alguma forma comportam meu perfil e o perfil dos leitores.
Entendo que o que escrevo diariamente tem uma conexão profunda com milhares de pessoas porque existe uma demanda por conhecimento além das quatro linhas do jornalismo propriamente dito. Acho que tenho obrigação profissional de levar aos leitores o ambiente regional de forma transversal, persecutória no sentido de chamar a atenção a contextos que fogem completamente do senso crítico, porque jornalismo profissional é isso mesmo e ou seja, o despertar dos leitores comuns, que atuam em outras atividades às quais precisam sustentar o foco, algo que chamaria de cutucões de cidadania.
O que quero que os senhores e senhoras saibam, e isso vale para todos os aplicativos que controlo e grupos diversos sobre os quais não tenho participação alguma, é que a missão de vida profissional é uma tremenda idiotice. Embora haja na região caudais de gente interessada no destino das sete cidades, o fato é que minha exposição crítica contra os poderosos de plantão, os mandachuvas e mandachuvinhas, é uma experiência de permanente tiro no pé diante de um mundo pragmático e em larga escala silente ante as barbaridades que se eternizam.
PRÁTICA OBSOLETA
O que mais lamento mesmo é que o jornalismo profissional se tornou uma prática tão obsoleta na região, restrito a poucos profissionais, que não é exagero algum afirmar que me sinto como um estranho no ninho.
Aliás, isso vem de longe, embora tenha piorado consideravelmente. Basta lembrar que no começo deste século um dos livros que escrevi (“Na Cova dos Leões”), retratando os nove meses à frente da Redação do Diário do Grande ABC, foi inspirado precisamente nos enfrentamentos naquela empresa, contando com o suporte de praticamente todos os profissionais igualmente inquietos com os rumos da publicação.
PORCOS NO CHIQUEIRO
Praticamente não sobrou um daqueles jornalistas sequer. Todos poderiam estar na ativa na região, mas a maioria se foi para outros endereços e aqueles que continuam por aqui se viram como pode porque o jornalismo profissional virou bijuteria em liquidação.
Não faltam porcos no chiqueiro regional. Eles não entendem bulhufas de pérolas de responsabilidade social, mas, mesmo dispersa, mesmo silente, a maioria de inconformistas merece que eu prossiga minha jornada. Os escassos 35% dos eleitores que consagraram os prefeitos da região são muito mais emblemáticos da falência do capital social verde e amarelo do que imaginam os lustradores de botas dos poderosos de plantão.
Depois daqueles desdobramentos de 21 de fevereiro de 2021, acho que a lápide derradeira vai ter de esperar um bocado. Nada, entretanto, que me leve a acreditar que a turma de porcos será extinta. Há sinais de que que vai aumentar.
Acho que devo reproduzir aquele texto de 2013. Vou fazê-lo imediatamente. Asseguro que não o li antes de escrever o que acabei de escrever hoje. Exceto, claro, a frase que remete aos porcos. Uma frase hoje no banco de reservas. Leiam:
Como seria bom se todo mortal
pudesse preparar o próprio epitáfio
DANIEL LIMA - 23/04/2013
Acho que todo mortal deveria ter a opção celestial de ganhar tempo para preparar o próprio epitáfio. Deixar uma sentença da própria lavra no túmulo deveria ser mais que uma dádiva, deveria também ser uma obrigação dos mais próximos na preparação das exéquias.
O Poderoso poderia ter concedido sim essa graça a todos os mortais que desejassem deixar pelo menos uma frase breve antes de bater as botas e os saltos altos sem que houvesse o menor risco de antecipar o desfecho temporal da vida.
O Poderoso certamente se viraria, com todo o respeito, para mandar o recado aos mortais de que estaria chegando a hora de preparar a sentença que quisesse para expor curto e grosso o que achou da passagem pela Terra.
Vão achar que estou maluco, que isso não é coisa que se escreva porque é uma afronta ao Poderoso, mas não penso assim.
Já que liberdade de expressão é uma mentira que se conta exaustivamente, porque é o poder econômico que manda e desmanda, pelo menos haveria uma oportunidade na vida (ou seria na morte?) de cada um de nós a ser sagradamente respeitada.
Ninguém ousaria, nem mesmo os mais poderosos coronéis de províncias em que se divide o Brasil, impedir que um encadeamento de palavras saltasse do coração ou da razão para expor o que bem entendesse sobre o que se passou por aqui.
Sei que os leitores estão curiosos em saber qual seria o epitáfio que escolheria, justamente eu que tenho toda a liberdade de expressão do mundo para imprimir minhas digitais nesta revista digital.
Duvido que os leitores não tenham curiosidade de saber o que se passa em meu peito e em minha mente. Para quem escreve quase dois milhões de caracteres por ano há muitos anos, algo que equivale a cinco livros de 200 páginas cada um, uma frase curta é um desafio, mas se querem saber já a tenho em mente.
TEMPO DE REFORMULAR
Pode ser que mude de ideia um dia desses, mas como acredito que vá viver muito, pelo menos uns 94 anos, terei tempo de sobra a eventual reformulação. Duvido que o faça, porque estou cansado de guerra, mas quem sabe a idade mais provecta me lance a nuances imaginativas, emocionais, temperamentais e sensoriais a dar um cavalo de pau na síntese de minha vida e deixe para a posteridade um conjunto de palavras menos ácido?
Antes de revelar o que deixaria à posteridade dos mortais em meu túmulo, isso se algum parente resolver levar a sério essa sugestão que dá um drible da vaca no Poderoso porque dispensaria o aviso final de que o tempo se estaria esgotando, tenho outra proposta, à qual gostaria que os mortais também pudessem ter direito antes de bater com as 10.
Que tal se o Poderoso resolvesse mandar uma mensagem dizendo que todo mortal, além de contar com a opção de sentenciar a síntese da vida que andou usando na Terra, contasse também com a possibilidade de deixar uma lista de pessoas não gratas que seriam barradas do baile, ou melhor, do velório?
Vão dizer os leitores que isso é possível tanto quanto o epitáfio, bastando que se providenciem tanto uma quanto outra resolução ainda em vida, independentemente do aviso divino. É verdade, é verdade, mas a democratização dessas medidas só seria mesmo possível com o Poderoso como intermediário, porque não é todo mundo a reunir discernimento, tempo, coragem, determinação e seja lá o que for para tomar essas iniciativas.
Preparar o epitáfio e, antes disso, a lista de pessoas que seriam vetadas no velório, deveriam ser prerrogativas do Poderoso como incentivo a todos os mortais para que exercitassem o que chamaria de direitos inalienáveis, acima de qualquer Constituição, porque estariam anexados a todas as crenças, de evangélicos a católicos, de muçulmanos a budistas. O ecumenismo seria consagrador como prova de equidade e justiça.
O QUE FARIA O LEITOR?
Supondo-se como estou supondo que tanto o epitáfio como a lista negra de velórios já estivessem consumados como resoluções divinas para que pelo menos na hora da morte física todo mortal pudesse ter a oportunidade de tomar duas providências certamente redentoras, já imaginou o leitor o que faria tanto num caso como no outro?
Não me venha com papo furado de que somente com uma ordem suprema você seguiria essas duas determinações já que voluntariamente e portanto sem a intervenção do Poderoso, jamais tomaria qualquer uma das providências, por considerá-las exóticas ou rabugentas, quem sabe idiossincráticas ou vingativas, quando não unilaterais.
Sei lá se o leitor já imaginou alguma vez ter essas duas oportunidades especiais para deixar esta vida com quem sabe algum adicional de dignidade ou de represália, de coragem ou de covardia, de paixão ou de desprezo. Seriam provavelmente ambíguos e conflituosos os sentimentos exarados tanto na lista negra quanto na sentença final numa lápide sobre a última morada.
Se o leitor não pensou é bom pensar, porque não custaria nada dar uma reprogramada cognitiva e considerar a hipótese como algo estimulante no processo diário que muitas vezes, por falta de objetivos ou por excesso de competitividade, não nos damos conta de que a vida não é mole em nenhuma circunstância.
Ora, se a vida não é mole em nenhuma circunstância, seja qual for o ambiente social que respiramos, por que não ter como objetivo final, caso o Poderoso resolva intervir com as duas iniciativas, uma certa obsessão positiva para construir com dignidade maior os dois monumentos finais que demarcarão o último suspiro?
SEM TERCEIRIZAÇÃO
Esse negócio tradicional de terceiros prepararem o epitáfio de quem se foi, muitas vezes sem ter o menor conhecimento pessoal de quem se foi, como se quem se foi autorizasse aquelas palavras, esse negócio é uma arbitrariedade. Não tenho por costume frequentar cemitérios, fujo desses ambientes como fujo de delegacia de Polícia, de hospital, dessas coisas que só nos trazem dissabores, mas pelo que sei nas poucas vezes em que já me lancei a jornadas doloridas, poucos mortos contam com epitáfios. Prevalecem frias datas de nascimento e de morte.
Já imaginou o leitor como seria extraordinariamente pedagógico e ilustrativo se em cada túmulo existisse uma peça de bronze, de madeira, de cimento, seja lá o que for, com alguma inscrição produzida, antecipadamente é claro, pelo morto?
Quantas lições de vida não estariam ali condensadas a desafiar a criatividade dos mortos de amanhã que procurariam caprichar nos termos com os quais fechariam o ciclo de vida para que não parecessem cópias dos que partiram antes? Quem sabe nossa Educação tão parca ganharia um empurrão formidável para que deixasse a ladeira da indecência prática e se tornasse ponto de honra de todo mortal, para que não passasse pelo vexame na hora final por conta de uma gramática mal aplicada, já que a decisão do Poderoso incluiria a obrigatoriedade da sentença do próprio punho do morto, quando vivo, é claro?
Sei lá porque estou escrevendo estas linhas, mas como a questão do epitáfio pintou em minha cabeça já há algum tempo, depois, confesso, de imaginar a lista negra que prepararia para impedir que determinados mortais aparecessem em meu velório para vender mentiras a meus filhos e amigos, sabendo que sei que alguns deles são delinquentes patológicos, cá estou produzindo essas bobagens.
A lista negra que barraria determinados mortais a me verem no caixão fingindo sentimentos não começou a ser elaborada porque ainda tenho muito tempo de vida segundo me garantiu uma vidente. Agora, quanto ao epitáfio, até eventual substituição, preparem-se porque vou apresentá-lo sem o menor constrangimento, temor ou possibilidade de ser entendido como provocativo, já que não sou mesmo politicamente correto.
Quando morrer, sobre meu túmulo estará a seguinte frase, em letras materialmente simples e duradouras, dirigidas principalmente a quem dediquei décadas de jornalismo inquieto e combativo:
“CANSEI DE DAR PÉROLAS AOS PORCOS”.
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08/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (31)