A cronologia do trecho sul do Rodoanel é a síntese do desprestígio institucional do Grande ABC. Considerada essencial à recuperação econômica da região, a obra virou jogo de empurra-empurra entre governo estadual e governo federal. Não bastassem intrigas palacianas, deputados estaduais e federais batem em seus próprios dirigentes ou amplificam rusgas entre petistas e tucanos.
A dependência de recursos da complicadíssima Parceria-Público-Privada acrescenta fogo na fogueira da desconfiança de que, quando eventualmente chegar ao Grande ABC, o Rodoanel será menos valioso.
Aliás, tenho minhas dúvidas sobre os efeitos miraculosos creditados aos poderes infra-estruturais do Rodoanel. Já escrevi sobre o assunto mas não custa repetir: a obra que tangenciará Santo André, Mauá, São Bernardo e Diadema é faca de dois legumes, como diria Vicente Matheus.
Da mesma forma que o Rodoanel acrescentará à geografia produtiva do Grande ABC algumas áreas de acesso que possibilitarão o drible da vaca no caos interno da Região Metropolitana de São Paulo, escancarará de vez o convite explícito a novas deserções industriais para regiões próximas da Capital.
Para tanto, contará com a garantia técnico-econômica de que a menor distância em direção às exportações pelo Porto de Santos não está presa necessariamente ao convencionalismo cartográfico.
Vou tentar explicar por que o Rodoanel tem outro lado da moeda que ninguém quer enxergar. Imagine uma fábrica instalada em São Bernardo cujos custos gerais no regime de competitividade globalizada estão no limite. Exportadora, essa empresa conta com a facilidade do Porto de Santos tão próximo para amenizar com transporte o custo superior da mão-de-obra, da estrutura imobiliária, da segurança e mesmo da logística urbana interna de mal-traçadas ruas e avenidas sempre congestionadas que nada têm com a vantagem do desafogo do Rodoanel.
Ora, quando essa empresa tiver a opção de se transferir para a São Paulo Expandida muito mais bem atendida em sistema viário e em custos trabalhistas, locacionais e de qualidade de vida, será que vai continuar na região se na ponta do lápis o Rodoanel lhe proporcionar em direção ao Porto de Santos custos logísticos apenas levemente superiores aos atuais?
O exemplo não é aleatório. Podem acreditar que se trata de algo imperativo no mundo dos negócios. Estamos pagando o preço do pioneirismo industrial que incluiu articulações sindicais. Mesmo ou por causa dos exageros, os sindicatos mais organizados deram aos trabalhadores locais vencimentos que os instalaram num quadro de mobilidade social jamais vivido no País. Outras regiões de industrialização tardia vivem sob referenciais de custos compatíveis com a guerra fiscal.
Por isso, o fator Rodoanel é componente muito mais complexo do que acreditam aqueles que só vislumbram a obra como vigoroso corte de valor viário.
O olhar abusivamente simples anestesia a capacidade de análise da obra. Para os técnicos do governo do Estado que se pronunciam sobre o Rodoanel, vale única e exclusivamente a estática econômica do traçado. Para os ambientalistas, sempre em busca de holofotes, prevalece a inquietação com o adensamento urbanístico ao longo desse cinturão de potencialidades destrutivas aos mananciais. Para os políticos, por mais boa vontade que eventualmente demonstrem, o partidarismo e as próximas eleições falam mais alto.
O impacto do Rodoanel especificamente na economia do Grande ABC é equação que precisa ser avaliada sim. A cobrança que se faz sobre o calendário da obra não pode de forma alguma consensualizar a certeza de que não há, paradoxalmente, pedras no caminho da competitividade empresarial.
Uma prova de que por vias transversas os dirigentes públicos do Grande ABC sabem que o Rodoanel é tanto oportunidade como ameaça ao futuro está no recente anúncio de plano de obras integradas ao sistema viário regional. A deliberação do Consórcio de Prefeitos se soma aos milhões de dólares que São Bernardo está contratando junto ao BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) para reestruturar o viário interno que, provincial, colide com a grandeza da economia mais portentosa da região.
Por essas e por outras se tornou obrigatória às instâncias públicas e privadas do Grande ABC colocar o Rodoanel na pauta de emergências temáticas para o próximo ano. Resta saber se prefeitos, secretários municipais, deputados, vereadores, instituições empresariais e sociais conseguirão sair do atoleiro de imobilidade que caracteriza a inanição regional.
Governo nenhum, de qualquer instância, age por livre e espontânea vontade. Ou a comunidade aperta o cerco, ou o cronograma e a utilidade regional do Rodoanel seguirão como intrigantes pontos de interrogação.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES