Em dezembro de 2002 — portanto há praticamente dois anos — a revista LivreMercado publicou matéria de capa que expunha estatisticamente a decadência da classe média no Grande ABC. Resgato a abertura daquele texto:
“Quem ganha pelo menos R$ 4 mil de salário com carteira assinada no Grande ABC? Se você respondeu sim, considere-se privilegiado. Mas tome cuidado, porque pode ser espécie de mico-leão dourado, isso é, corre risco de extinção. De cada 100 trabalhadores registrados em empresas sediadas na região, apenas 5,57 estão na lista de assalariados cujos contracheques registraram, em valores brutos, pelo menos R$ 4.001 de salário, isto é, acima de 20 salários mínimos. De janeiro de 1995 a dezembro do ano passado, esse universo de privilegiados encolheu assustadoramente no Grande ABC: eram 60.977, ou 11,85% da massa de trabalhadores, e passaram para 29.124. O que dava para encher duas vezes o Pacaembu foi reduzido a dois estádios Bruno Daniel”.
Por que volto ao assunto? Porque jornais e revistas publicaram nos últimos dias alguns novos números sobre o empobrecimento da classe média, mas nenhuma das publicações fez incursão mais profunda. Ficaram na superficialidade do primeiro ano do governo Lula da Silva, que ao receber um País debilitado de Fernando Henrique Cardoso, para não dizer em estado de exaustão, acertou em cheio ao sustentar equilíbrio institucional assumindo herança maldita sem messianismos reformistas mas que, na sequência, demorou excessivamente para soltar as amarras do Banco Central e da taxa Selic.
O esfacelamento da classe média vem de longe. Nas duas últimas décadas, antes de Lula da Silva assumir a presidência, o PIB per capita do País cresceu apenas 0,3%. Uma porcaria, quando a média mundial foi cinco vezes maior. Os números deixados pelos oito anos terrivelmente destrutivos de FHC apenas recrudesceram o quadro. E foi isso que revelou aquela reportagem de
LivreMercado, com base em dados oficiais.
A redução drástica de assalariados de classe média no período fernandohenriquista tornou a região campo de manobra dos piores indicadores de queda de renda do País. O desastre anunciado decorreu principalmente da política econômica que abriu as porteiras do setor automotivo para a internacionalização desenfreada, alimentada por fartos recursos do BNDES às novas montadoras que aportaram no País.
Provamos estatisticamente com dados sólidos que nem mesmo durante o pior período de beligerância sindical a partir do final dos anos 70 com Lula da Silva e intrépidos companheiros, o Grande ABC viveu período tão nefasto. Os anos 90 nos tiraram 100 mil empregos industriais com carteira assinada. A maior parte durante a Era FHC, de sindicalismo submisso.
Foi exatamente nesse tenebroso período de rebaixamento abrupto e mesmo desumano da qualidade de vida no Grande ABC, quando perdemos 39% do PIB, que vicejou na região o mais irresponsável modelo de triunfalismo institucional. Criaram-se o Fórum da Cidadania, a Câmara Regional e a Agência de Desenvolvimento Econômico, sem contar o ressuscitamento do Consórcio de Prefeitos. E para quê? Para fingir que estávamos unidos e trabalhando por uma região melhor. Quando expusemos as vísceras da debacle econômica e social, foi um deus nos acuda. Me levaram várias vezes à fogueira.
Há dificuldades, mas devemos cavoucar novos números que atualizarão aquela matéria histórica sobre o esquartejamento da classe média na região. É provável que a situação tenha se agravado. Mesmo no ano passado quando, em contraponto à queda do PIB nacional de 0,2%, o Grande ABC apresentou crescimento do Valor Adicionado, depois de oito anos de perda contínua no governo FHC.
Essa evolução deverá provavelmente se limitar à estatística de produção. Investimentos em tecnologia, processos, treinamento e reciclagem geram maior produtividade industrial com menos emprego. Ou seja: a riqueza salarial não corre na mesma raia da recuperação da produção.
“Sem exagero, o fato é que a classe média do Grande ABC deixou o paraíso para ingressar no inferno. A redução à metade dos assalariados bem-pagos é apenas uma porta entreaberta do quadro de proletarização do mercado de trabalho formal na região. No outro extremo de carteiras assinadas estão os trabalhadores de até três salários mínimos. Em 1994 eles representavam apenas 18,13% do universo de assalariados formais da região. Sete anos depois de FHC saltaram para 36,01%” — escrevemos para a revista.
Voltaremos ao assunto na próxima edição desta coluna. Os meios de comunicação do Brasil têm imensa dificuldade em lidar com a memória dos fatos. Por isso flutuam na superficialidade imprecisa, quando não enviesada.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES