Economia

Imposto desumano

DANIEL LIMA - 23/10/2004

Há muito bato na mesma tecla e o som que se ouve supostamente desafinado provavelmente não é por impropriedade artística, mas porque o jogo político-administrativo é um deboche surdo às prioridades sociais e econômicas.


Vejam o caso da distribuição do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), assunto sobre o qual há mais de uma década exerço marcação cerrada: o prefeito de Paulínia, minúsculo município de 55,8 mil habitantes da Grande Campinas, recebe de repasse do governo do Estado cerca de 18 vezes mais de recursos por habitante do que a média distribuída aos prefeitos dos sete municípios do Grande ABC de 2,5 milhões de moradores.


Traduzindo: para cada R$ 100 por habitante que recebe o prefeito de Paulínia, um construtor de chafarizes e portais nababescos, o conjunto dos prefeitos do Grande ABC recebe R$ 5,55. Não é erro de digitação, como poderia insinuar algum leitor menos atento.
Como, diante de tal disparate, o Grande ABC conseguirá deixar os cafundós da qualidade de vida em que se meteu no meio da Região Metropolitana de São Paulo?


Antes de destrinchar com algum detalhamento essa numerologia para que se possa entender a profundidade do despautério, convém uma ressalva: o Consórcio de Prefeitos da região, esse tão badalado quanto pouco produtivo organismo sobre os quais somente os intelectuais alheios à realidade do Grande ABC tecem loas, jamais investiu para valer nesse temário.


E não é por falta de interesse individual e coletivo das administrações públicas locais, como se poderia imaginar. É por pura incompetência estratégica mesmo.


Outro parênteses que se torna indispensável para que a justeza da crítica não se concentre apenas nos gerenciadores públicos locais do presente e também do passado, porque esse desvio vem de longe: o governo do Estado, o que está de plantão e os anteriores, simplesmente lava as mãos diante da destrutiva repartição da principal matriz de receitas orçamentárias dos municípios. É desnecessário dizer que a interpretação do Palácio dos Bandeirantes na avaliação desse assunto equivale a pretender que alguém ingresse num paiol em chamas. Mesmo que seja para salvar vidas preciosas.


A distribuição do ICMS que leva em conta principalmente o Valor Adicionado, com peso de 76% na grade de ponderações, beneficia estupidamente há muito tempo pequenos municípios bafejados por produção seletiva de impostos. Paulínia, segundo dados do Instituto de Estudos Metropolitanos, produzia no ano passado R$ 321,60 em Valor Adicionado por habitante. Valor Adicionado é espécie de PIB, porque estabelece a diferença de recursos financeiros agregado, por exemplo, numa lâmina de aço que sai da linha de produção em forma de pára-choque de caminhão.


No caso de Paulínia, um centro químico-petroquímico que abastece múltiplos setores produtivos, o insumo bruto de petróleo vira matéria-prima nobre para diferentes transformações industriais.
Só para que se entenda o tamanho da distorção: o VA de Paulínia alcançou no ano passado R$ 17,9 bilhões. São Caetano, São Bernardo e Santo André juntos ultrapassam com pouca diferença aquele valor.


Pois é o Valor Adicionado que parametriza a devolução do ICMS às prefeituras. A distribuição do ICMS segue escravizada pelo VA. Para cada R$ 100 de ICMS repassado pelo Estado aos municípios, a participação do Valor Adicionado é de 76%. Quem gera seletivamente impostos tem ampla vantagem. Jaguariúna, Louveira, Barueri e São Sebastião, beneficiadas por especificidades tributárias no campo químico-petroquímico ou hidrelétrico, seguem Paulínia de perto. São Caetano, que tem a melhor performance do Grande ABC, com R$ 25,52 por habitante na produção de VA, registra 7,8 vezes menos produção que Paulínia.


Fosse a classe política menos ressabiada com as urnas, fossem as lideranças empresariais menos incompetentes na gestão dos interesses da categoria, fosse a sociedade menos passiva a distorções dessa monta, a redefinição dos valores repassados em forma de ICMS há muito estaria na ordem do dia e já se teria traduzido em ampla reforma.


O financiamento de nova ordem institucional e mesmo constitucional das regiões metropolitanas brasileiras passa forçosamente pela reestruturação da distribuição do ICMS, porque qualquer iniciativa que resvalasse em aumento deliberado da carga tributária desclassificaria a proposta. Já escrevemos sobre esse assunto também, mas voltaremos à carga. Há certas batalhas que só se ganham com insistência. Principalmente quando a água da criminalidade irrefreada e do desemprego epidêmico bate no traseiro dos negligentes e dos covardes.


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