Guardem uma cópia deste artigo e me cobrem quando quiserem: está redondamente enganado quem acha que já passamos por tudo que tínhamos de passar no setor automotivo regional, depois da sangria desatada dos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso e sua abertura econômica sem limites. Fomos imprevidentes lá atrás, quando já se insinuavam os rescaldos dos investimentos exagerados e da descentralização burra do setor e estamos repetindo a história. O mundo automotivo é uma centrífuga estonteante sobre o qual já teríamos enormes dificuldades de contraposições se fôssemos uma região primorosamente unida, imaginem então diante da constatação de que não passamos de sete pedaços de uma pizza mal-ajambrada.
No livro “Meias Verdades”, que lancei sintomaticamente em 1º de abril deste ano, dediquei um dos capítulos ao que chamei de “Crônica anunciada do setor automobilístico”. Para que os leitores possam compreender as novidades que analisarei na sequência, e que deveriam nos tornar a todos extremamente inquietos, repasso alguns trechos do que escrevi em “Meias Verdades”:
O torpedeamento da economia do Grande ABC dependente em demasia da indústria automotiva é uma crônica anunciada que pode ser sintetizada nas três notícias cronologicamente tão próximas quanto tardias. A omissão do governo federal se rivaliza em nocividade com o descaso do governo estadual e com o desleixo dos governos municipais locais como provas irrebatíveis do rebaixamento da economia regional.
Não foi levada a sério nem mesmo a propagação, por fontes especializadas, de que o cenário de competitividade internacional espremeria o Grande ABC contra a parede e que, portanto, recomendava ações de força-tarefa para reduzir o grau do estrondo provocado pela abertura econômica. Diferentemente, portanto, de hecatombes que atingem municípios, regiões e países surpreendidos por travessuras da natureza, como enchentes, vendavais, terremotos e mesmo distúrbios políticos e étnicos, a gênese da debacle do Grande ABC é genuinamente marcada por despropósitos gerenciais.
O capítulo reconstrói o histórico de investimentos do setor automotivo no Brasil a partir do noticiário de jornais e revistas e faz duras críticas ao completo desinteresse ou despreparo de agentes econômicos, políticos e sociais da região em diagnosticar o desabamento que nos atingiu nos últimos anos, quando o festejado exagero de montadoras concorrentes se associou ao desaquecimento da economia para nos atingir como bólidos incandescentes.
E agora, o que vem agora? Agora é força de expressão ou uma subjetividade temporal, porque os próximos tempos não serão nada condescendentes com regiões suburbanas como o Grande ABC. O noticiário de hoje, evidentemente sem contextualização regional, é emblematicamente intranquilizador. Há dois meteoros em nossa direção. Primeiro, a gigante China, que descobriu a economia sobrerrodas, vai contar com excesso de produção de veículos até 2008 que a obrigará a arremeter-se em direção a outros mercados, muitos dos quais igualmente programados como escoadouros das montadoras brasileiras que, para alcançar melhor rentabilidade, precisam dobrar o faturamento em moedas estrangeiras. Segundo, os maiores fabricantes de veículos do mundo terão de se reestruturar e encolher para voltar a crescer.
Sem exagero, diante do cenário repassado pela presidente da Booz, Allen & Hamilton, Letícia Costa, ontem à tarde em seminário em São Paulo, o Grande ABC deveria se sentir como um bêbado que deixa um saloom dos tempos de faroeste e se mete a caminhar por uma rua poeirenta onde facções rivais trocam tiros ensurdecedores. Estamos exatamente assim. Sob os efeitos etílicos de uma institucionalidade em permanente ressaca, desconhecemos completamente a gravidade da situação setorial que continua a tornar o futuro automotivo não um enorme ponto de interrogação, mas uma exclamação de terror.
A executiva da Booz, Allen & Hamilton deixou claro durante o encontro de ontem, completamente ignorado pelas instituições regionais, que a indústria automotiva passa pelo que chamou de “ciclo de destruição de valor”, decorrente da queda dos preços das ações. Como essa tem sido uma rotina de duas décadas, tanto nas montadoras como nas autopeças, dá para imaginar o estágio em que se encontram. As montadoras fazem de tudo para não perder mercado, recorrendo a descontos sistemáticos e sacrificando a rentabilidade.
A consultora é enfática no prognóstico, segundo relato do jornal Valor Econômico: as montadoras estão apostando em paliativos que só servem para retardar um processo que pode levar ao que chama de “uma morte lenta”. Entre as medidas paliativas estão a racionalização de custos com pressão sobre os fornecedores, que acabam também, por consequência, perdendo rentabilidade. “Os grandes grupos de autopeças também vêm destruindo valor e hoje esse setor acumula, no mundo, endividamento médio de 45%”.
Já o terror chinês que certamente vai atingir os planos das montadoras espalhadas inadvertidamente pelo Brasil é igualmente preocupante. Afinal, a perspectiva é de que, em cinco anos, os chineses terão sobra de 40% de produção, percentual semelhante ao que atinge hoje o Brasil. Serão 7,2 milhões de veículos para um mercado interno de 3,2 milhões. Não bastasse essa ameaça ao equilíbrio da oferta de produtos no mercado globalizado, já além da demanda, os chineses avançam suas frentes de combate em direção às autopeças: num prazo de um ano as exportações cresceram cerca de 240% e a perspectiva é de novos ataques. Movida por uma mão-de-obra farta que se especializa em proporção semelhante à reduzida ambição salarial, a China vai dar as cartas e jogar de mão no universo automotivo.
Enquanto isso, aparentemente isolados da realidade do mercado automotivo internacional, os metalúrgicos de São Bernardo, abastecidos pela subseção do Dieese, assestaram baterias na luta agora respaldada por um estudo atavicamente corporativista e desgrudado da macroeconomia que pretende alterar a dinâmica salarial do setor no País. Sim, os metalúrgicos locais querem porque querem que todas as fábricas de veículos de passeio, comerciais leves, ônibus e caminhões instalados no Brasil tenham custos semelhantes à mão-de-obra do Grande ABC, notoriamente maior. Algo como subverter a lógica do capitalismo, presente didaticamente inclusive em áreas de entretenimento, como no Campeonato Brasileiro de Futebol. Sim, essa competição entre os maiores clubes do Brasil estabelece salários de jogadores e comissão técnica, e mesmo ingresso do torcedor, de acordo com as especificidades econômicas locais, regra básica da sobrevivência.
Vamos de mal a pior no tratamento de um enfermo que respira e se alimenta sobrerrodas. Uma conjugação de esforços de instituições regionais, em combinação com sindicatos de trabalhadores metalúrgicos e representantes das montadoras e autopeças, deveria ser criteriosamente preparada para oferecer contrapontos aos efeitos já estabelecidos e os que virão a bordo da atividade mais competitiva do planeta. Há mais de uma década estamos perdendo tempo e, pelo andar da carruagem, vamos continuar comendo a poeira da desativação empresarial e da exclusão funcional e social.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES