A disparidade de forças que divide grandes e pequenas empresas no Grande ABC foi um processo de ocupação semelhante à chegada de migrantes, deslocados às periferias por conta do que os acadêmicos mais rebeldes de antigamente rotulavam de especulação imobiliária. Com as pequenas empresas a situação foi mais dramática ainda, só amenizada pela interdição do mercado à competição internacional. Naquele período, largamente dominado por inflação sem limites, as pequenas empresas foram exaustivamente colocadas em choque entre si, conforme determinava o princípio de competitividade das grandes organizações de reinar com a divisão.
Por isso, a contabilidade da Anapemei (Associação Nacional de Pequenas e Médias Empresas Industriais) se confunde com obituário, já que desapareceram os 150 associados que, reunidos em torno de série de propostas, não conseguiram impedir a avalanche da globalização.
Em abril de 2000, portanto há mais de nove anos, preparei para a revista LivreMercado uma análise baseada num estudo inédito encomendado pela Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC num período em que o prefeito Celso Daniel dirigia a entidade e destilava entusiasmo de regionalidade que, antes que o próprio prefeito se fosse, também refluiu. Ele cansou de atuar como bobo da corte. A Agência de Desenvolvimento Econômico viveu naqueles anos os melhores momentos de sua trajetória. Pelo menos contratava pesquisas e estudos que, independentemente de manipulação por um ou outro acadêmico mais abusado, fornecia combustível aos inquietos de plantão.
Exclusão empresarial
O título que adotei àquele trabalho jornalístico — “Muro de Tecnologia separa pequenas e grandes empresas” — sintetizava a situação de incluídos e excluídos empresariais. Mas fomos muito mais longe. Invadimos as entranhas daquele trabalho, inclusive sem dar tréguas ao próprio então prefeito e diretor titular da Agência. Opusemos a Celso Daniel contrapontos que consideramos justos já que, cumprindo rigorosamente o papel de lhe cabia no figurino, o prefeito de Santo André amenizava o quadro de vulnerabilidade da economia regional diante da globalização.
É fundamental a compreensão daquela situação que extratificava uma realidade resultante de décadas de mercado fechado, agravada na medida em que novos investimentos tornavam-se prementes. Embora a matéria tenha sido publicada em abril de 2000, as pesquisas que fundamentaram os estudos foram realizadas em 1996 e abrangiam a realidade industrial do Grande ABC no período de 1994-1996. Ou seja: aqueles números e interpretações oficiais divulgados em 2000, e os reparos deste jornalista, tiveram como insumo o núcleo de um período de muitas transformações na base industrial do Grande ABC. Vivia-se ainda o entusiasmo do recém lançado Plano Real.
Já naquela reportagem escrevi que a situação detectada entre 1994-1996 certamente se agravara em 2000, quando foi levada ao público. “Os estudos revelados pela Agência de Desenvolvimento analisam de forma superficial mas importante os resultados da Pesquisa de Atividade Econômica Paulista para o Grande ABC, uma parceria entre o Seade (Fundação Sistema Estadual de Análises de Dados), braço estatístico do governo do Estado, e o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC”.
Revelava aquele estudo que em meados da última década do século passado um terço das unidades industriais da região pertencia a empresas que realizaram algum tipo de inovação de produto ou de processo.
Peso desproporcional
A gravidade do quadro estava no complemento: embora representasse apenas 35% do número total de empreendimentos industriais, o peso da participação econômica das empresas inovadoras gerava 80% do Valor Adicionado da indústria no Grande ABC.
Traduzindo: a grande parcela de empresas que investiram em inovação de produto ou de processo concentrava-se num universo limitado de empreendimentos. Micros e pequenas empresas, então, significavam apenas 14% do Valor Adicional total do setor industrial, enquanto as grandes indústrias geravam 60% desse mesmo medidor de transformação de riqueza.
O estudo apresentado em reunião para poucos convidados procurou abrandar uma verdade inquietante: 65% do universo produtivo da região estava, em meados daquela década, à margem do processo de inovação.
“O estudo da Fundação Seade pode não ter dado ênfase às pequenas indústrias como problema grave, mas não se deixou levar pelos números favoráveis do um terço de empreendedores que estão do lado saudável do Muro de Tecnologia” — escrevi naquela reportagem. E reproduzi a explicação do estudo: “A proporção média de unidades inovadoras não se mantém quando comparamos a performance de cada uma das divisões industriais da região. Verificamos que há importantes diferenças no quesito inovação. Não há desempenho inovador homogêneo entre as diversas divisões industriais” — afirmou o relatório.
Como era de se esperar, por força da capacidade de geração de riquezas da indústria automotiva, quatro divisões industriais prevaleceram no estudo da Fundação Seade como muito inovadores ou inovadores, casos de montagem de veículos, máquinas e material elétrico, metalurgia básica e produtos químicos. Os três setores suplementares ao de montagem de veículos estão diretamente relacionados ao setor automobilístico. Inclusive o químico, fortemente representado no setor de tintas automotivas. Essas divisões, segundo o relatório, respondiam por 62% do Valor Adicionado do Grande ABC, 50% do pessoal ocupado e 21% das unidades industriais.
Os estudos continham mais informações importantes. Destacava também que empresas pertencentes ao grupo de montagem de veículos que inovaram em processo entre 1994-1996 e tinham intenção de prosseguir inovando representavam quase 100% do Valor Adicionado do setor. Seria esquisitice outro resultado num período ebulitivo da indústria automobilística, depois de décadas na zona de conforto de produtos respaldados pelo CIP (Conselho Interministerial de Preços) e não necessariamente pelo mercado interno, imune à competitividade internacional.
Mais estudos
O relatório prosseguiu na análise dos dados ao identificar três subsetores que inovaram moderadamente ou pouco, casos de máquinas e equipamentos, produtos de metal, borracha e plástico, e apenas um que praticamente não inovou, no caso alimentos, entre 1994-1996. As quatro divisões responderam por 27% do Valor Adicionado, 32% do pessoal e 46% das unidades industriais. Ou seja: envolvia quase metade do contingente produtivo da região.
Aquele documento que chamaria histórico porque jamais algo semelhante foi contratado por autoridades públicas ou privadas do Grande ABC também identificava alguns grupos em que pequenas empresas — até 99 funcionários — teriam destacada performance nos indicadores de inovação. O relatório afirmava que poderiam esses grupos, com potencial acima da média, dar respostas promissoras a estímulos regionais de ordem financeira, tecnológica, organizacional e institucional. “Se assim fossem, poderiam ser objetos preferenciais de políticas ou experiências de desenvolvimento local” — sugeriu o relatório.
Como o padrão editorial de meus textos jornalísticos jamais se limitou a repassar informações de terceiros em casos cujos enunciados colidissem com o conhecimento regional, alertei naquela reportagem que, ao ser produzido por profissionais que desconheciam os meandros da economia industrial do Grande ABC, a sugestão da Fundação Seade não teria consistência prática desejada. “Afinal, as micros e pequenas empresas que mais inovaram vivem basicamente na órbita das grandes montadoras e autopeças; portanto, com fortes ligações empresariais com quem comanda a economia regional e que por tradição não tem relação substantiva com o Poder Público. Dependem mais do ritmo de produção de veículos do que de políticas domésticas. Estão acima da conjuntura regional” — escrevi há mais de nove anos.
Prefeito reconhece
O próprio prefeito Celso Daniel reconheceu durante intervenção no encontro que apresentou os estudos a dificuldade de estabelecer políticas públicas com grandes empresas, que trafegam institucionalmente por outras esferas de poder, e com pequenas, pulverizadas.
Constam da lista de empresas que atuam como satélites da indústria automobilística os setores de fabricação de tintas, vernizes, esmaltes, lacas e produtos afins; fabricação de peças e acessórios; fabricação de produtos de plástico e fabricação de material eletrônico básico. A única exceção da lista é de fabricação de sabões, detergentes, produtos de limpeza e artigos de perfumaria, cujo peso na matriz produtiva da região já era baixíssimo há uma década e meia, com apenas 2% do Valor Adicionado. Um peso de fato quase pífio — mas muito superior ao 0,84% detectado no Valor Adicionado da indústria de móveis da região naquela pesquisa.
Chamei de “besteirol dos ufanistas” a divulgação marquetológica já à época completamente defasada de “São Bernardo Capital do Móvel e do Automóvel”. A indústria de móveis da região, fortemente concentrada em São Bernardo, contava com apenas 23% de comportamento inovador das pequenas empresas. Dois anos antes da divulgação da pesquisa do Seade, numa Reportagem de Capa da edição de maio de 1998, LivreMercado revelava que grande parte dos moveleiros da região se abastecia de produtos manufaturados em outras regiões do País.
Um ponto polêmico do estudo — e o polêmico fica por conta da intervenção textual deste jornalista — se deu com os dados que cotejaram o que se chamou de esforço inovador das indústrias do Grande ABC em comparação com as do Estado de São Paulo. O estudo estava claramente distorcido, porque atribuía grau superior do Grande ABC no quesito inovação: enquanto 80% do Valor Adicionado de toda a indústria do Grande ABC foram gerados por unidades pertencentes a empresas que fizeram alguma inovação em produto ou processo entre 1994 e 1996, nas outras regiões do Estado, inclusive no Município de São Paulo, a proporção atingiu cerca de 65%.
Também na chamada “intenção de inovar” o estudo destacava que o Grande ABC estava mais fértil no setor industrial, atingindo 81% do Valor Adicionado, enquanto em todo o Estado de São Paulo a proporção era de 67%.
Escrevi que o relatório não informou que o Grande ABC só apresentou percentuais mais expressivos que a média do Estado porque estava sob a liderança econômica das montadoras de veículos. “Pressionadas pela globalização, as automobilísticas resolveram investir bilhões de dólares para recuperar plantas industriais obsoletas que, com o mercado autárquico que prevalecia no País, ofereciam produtos de baixa qualidade” — escrevi.
E completei: “Como a força da indústria automotiva no Grande ABC se irradia para praticamente toda cadeia produtiva local, é evidente que o florescer de investimentos em produtos e processos vicejou na região, superando as demais localidades de industrialização posterior, mais diversificada e menos suscetíveis à abertura dos portos. Enfim, o Grande ABC contava com uma matriz produtiva muito mais envelhecida em relação aos demais parques produtivos do estado. Evidentemente, precisou investir mais na renovação” — ponderei. Não é preciso dizer que o técnico responsável pelos estudos, Martoni Branco, reagiu com uma frase defensiva mas pouco reflexiva: “O importante é que os investimentos foram feitos” — disse ele.
Contramão providencial
Nunca é demais reiterar a contextualização daqueles estudos e o conteúdo jornalístico que trafegou na contramão do tratamento dispensado pelos demais veículos de comunicação da região, simplesmente relatoriais. A Agência de Desenvolvimento Econômico e o Seade fariam um grande benefício para a economia paulista em constante fragilização quando confrontada com outras unidades da Federação, se retomassem aquele trabalho. Provavelmente os resultados seriam muito mais preocupantes.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES