Seria ingenuidade demais acreditar que os acontecimentos registrados na economia do Grande ABC nos anos 1990 não se refletiriam no mercado de trabalho além dos índices de desemprego, da precarização da mão-de-obra e de tantas outras sequelas. Mesmo quem continuou empregado nas pequenas e médias indústrias da região sentiu nos bolsos o que é viver sob pressão. O enxugamento de quadros funcionais em nome da sobrevivência e por conta de investimentos em tecnologia e processos nas indústrias que resistiram ao vendaval também foi utilizado como instrumento que despachou para o espaço as conquistas trabalhistas. O repasse automático de benefícios trabalhistas suplementares no vácuo da indústria automotiva sangrou os pequenos negócios até que se tornassem insustentáveis.
A escalada reivindicatória sindical, principalmente nos anos 1980, desmanchou-se com a chegada da abertura econômica. O portfólio de benefícios trabalhistas, que reunia custeio total de alimentação, planos de saúde, transporte e bolsas-educação, foi desativado.
O jornalista André Marcel de Lima, na edição de julho de 2003 da LivreMercado que eu comandava, destruiu o mito da suposta homogeneidade de vantagens trabalhistas no campo industrial. Apenas as montadoras de veículos e a cadeia de sistemistas que lhe davam total amparo logístico de produção, além da indústria petroquímica do Pólo de Capuava, resistiram às mudanças mais drásticas.
Portanto, a idéia cristalizada de que bastava trabalhar numa indústria, qualquer indústria, para se chegar ao primeiro time de salários e vantagens adicionais explodiu como bolha de sabão. Devagar, devagar, o Grande ABC de pequenas indústrias aproxima-se da média salarial dos trabalhadores industriais da São Paulo Expandida, região do Interior do Estado mais próxima e para onde se deslocou a maior parte do setor industrial que desertou da Região Metropolitana de São Paulo.
Anos complicados
A farta colheita de informações sobre a reversão trabalhista da cadeia pouco midiática de produção do Grande ABC foi a primeira e única reportagem que o jornalismo regional publicou. Aqueles anos 1990 foram de fato alucinantes para os pequenos negócios. Empreendedores e trabalhadores estrebucharam-se.
Nos tempos de bonança era compulsório as pequenas indústrias ganharem a forma de vagões da locomotiva das montadoras. Por mais que os pequenos sofressem pressões e desgastes, o mercado fechado garantia sobrevivência do negócio. Com a abertura dos portos e a guerra fiscal, além da nova ordem econômica ditada pelo Plano Real, competitividade virou dogma.
O descarrilamento foi compulsório. Seria muito estranho se a corrente mais frágil da estrutura industrial não acusasse tanto os golpes baixos quanto os legais das disputas corporativas em forma de salve-se-quem-puder. Os trabalhadores também pagaram o pato. Tanto quem perdeu o emprego como quem sobreviveu no chão de fábrica e nos postos gerenciais.
Quem pretender construir o perfil das lideranças sindicais do Grande ABC dos anos 1990 tendo como referencial os antecessores dos períodos de vacas gordas acabará cometendo sacrilégio, porque confrontará momentos completamente diferentes. Somente movimentos sindicais suicidas são movidos a ferro e fogo. O contexto socioeconômico tem peso preponderante nas definições. Não se joga uma lata de gasolina em paiol em chamas, exceto quando se pretender acabar de vez com o paiol. Da mesma forma que não se acrescenta mais gelo numa geladeira na temperatura ideal. O estridente Lula da Silva cabia naquele figurino do final dos anos 1970 da mesma forma que o discreto Luiz Marinho era a moldagem dos anos 1990.
Rabo de foguete
Por isso, quem passou pelos sindicatos na última década do século passado e eventualmente ainda esteja à frente daquelas instituições, sabe que pegou um rabo de foguete. O tom dos discursos e o volume de reivindicações numa região que perdeu mais de 150 mil empregos industriais nos últimos 20 anos precisam ser equilibradamente modulados. Também no mundo sindical, a máxima capitalista de oferta e demanda deve ser obedecida. Quando o capital reflui, o sindicalismo necessariamente submerge. Quando aflora, sem que o aflorar seja apenas indícios dos últimos suspiros, parte-se para o ataque.
Por isso, quando o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, Cícero Martinha Firmino da Silva, naquela entrevista a André Marcel de Lima, contou que membros do sindicato buscaram apoio de legisladores estaduais para socorrer uma empresa de 800 funcionários ameaçada de corte de energia por atraso de pagamento, o gesto superava largamente as idiossincrasias ideológicas que sempre dividiram capital e trabalho. Tratava-se da prática do instinto de sobrevivência de todos, empresa e trabalhadores. Algo impensável nos tempos em que empresários eram patrões e trabalhadores simples macacões ambulantes.
Não se encontra esse tipo de cultura trabalhista em qualquer lugar. É preciso passar pelas dores do esvaziamento industrial, pelas filas de desempregados, pelas lembranças dos tempos de fastio, para encarar a nova realidade sem autoconstrangimento. O amadurecimento do sindicalismo no Grande ABC foi um processo doloroso, com saldo mais positivo do que negativo. Mas ainda não é uniforme. Há pedacinhos de céus que podem virar imensidões infernais porque o recrudescimento de uma contradição é ameaça que não pode ser desqualificada. Trata-se da combinação de protecionismo nacionalista e expansão imperialista no campo comercial.
Até quando o Primeiro Mundo — principalmente os Estados Unidos — vai manter abertas as fronteiras de importação e as montanhas de déficit na balança comercial? Até quando a China exportadora e os Estados Unidos gastadores vão conviver em harmonia comercial diante da perspectiva de inversão de liderança político-econômica?
É preocupante para o Grande ABC o panorama internacional que se vislumbra nestes tempos de crise internacional sobre a qual o Brasil parece dançar a dança dos intocáveis, movido a mercado interno, a crédito e a redução da carga fiscal. Até que ponto seria possível afirmar que as mudanças industriais no Grande ABC já chegaram ao extremo e que de agora em diante a recomposição será possível? As comitivas de lideranças políticas e empresariais da São Paulo Expandida que garimpam frequentemente na Grande São Paulo as preciosidades empresariais com as quais pretendem vitaminar as economias locais são uma constante ameaça que raramente encontram resistências.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES