Há diversos caminhos para compreender o quadro econômico do Grande ABC, os quais, quando analisados sistemicamente, contribuem para explicar por que a temperatura social da região está tensa. Acabamos de destrinchar mais um estudo sobre a repercussão do governo Fernando Henrique Cardoso, em primeiro plano, do governo do Estado, em proporção menor, e dos governos municipais, em escala inferior, no desempenho econômico regional.
Números estritamente endógenos, internos, não permitiriam entendimento mais didático da situação. Por isso decidimos cruzá-los e confrontá-los com a soma de São José dos Campos, Campinas e Sorocaba, sedes das três regiões metropolitanas que absorveram grande parte dos investimentos industriais na última década. O resultado final só não é surpreendente porque, já no ano passado, com dados então atualizados, alertamos sobre a dimensão do rombo.
A importância dessa pesquisa vai muito além do que alguns imaginam. Não estou aqui cavoucando números por diletantismo. Como já escrevi, sou avesso à matemática e à aritmética, mas por força do ofício de desmascarar mentirosos de plantão e de procurar colocar ordem no galinheiro de interpretações toscas sobre a economia do Grande ABC, me lanço madrugada adentro vasculhando impressos oficiais que minhas assessoras retiram dos computadores durante o expediente.
O Grande ABC de 1995, primeiro ano do governo Fernando Henrique Cardoso, contabilizava em repasse do ICMS exatamente 51,21% mais que São José dos Campos, Sorocaba e Campinas juntas. Esses municípios foram escolhidos porque têm características médias semelhantes às do Grande ABC. Sem contar que reúnem população de dois milhões de habitantes, contra 2,35 milhões de nossa região.
Em valores monetários não corrigidos, São José, Campinas e Sorocaba totalizaram R$ 307,7 milhões de repasse do ICMS em 1995, contra R$ 465,5 milhões do Grande ABC. Já no ano passado, essa trinca chegava a R$ 634,4 milhões, contra R$ 652,3 milhões da região. Empate técnico que, acreditem, provavelmente será desfeito neste ano porque continuamos patinando. Se a comparação for per capita, aqueles três municípios levarão vantagem.
O que quer dizer tudo isso? Simples: a velocidade de crescimento de Campinas, Sorocaba e São José dos Campos, de economias mais diversificadas e dinâmicas, contrasta com o emperramento da máquina automotiva e químico-petroquímica, atividades que, como se sabe, carregam o Grande ABC nas costas.
Optamos por manter as receitas de repasse do ICMS em valores nominais nas duas pontas para que não se desvirtuasse o conceito do confronto. Entretanto, seja qual for o deflator que se utilize, os 40,18% de avanço nominal da receita do Grande ABC serão sempre batidos pelos 106,17% daqueles três municípios.
A escolha do repasse do ICMS para contrapor os números da região aos de Campinas, São José e Sorocaba é especialmente singular. Primeiro, porque é o imposto mais importante, ainda, na grade de arrecadação dos municípios. Segundo porque a composição de fatores que influenciam a distribuição do imposto pelo governo do Estado está intimamente relacionada ao Valor Adicionado que, em suma, é a capacidade de transformação industrial associada a serviços industriais.
Exagerando um pouquinho na dose, mas sem que isso desclassifique o enunciado, o ICMS retrata espécie de PIB municipal, já que 76% do peso relativo do coquetel de impostos, taxas, contribuições e até mesmo demografia que integram o Índice de Participação dos Municípios estão atrelados à produção de riqueza industrial. Se perdemos a vantagem de 51% que tínhamos sobre Campinas, Sorocaba e São José dos Campos em apenas oito anos, não é preciso ser muito esperto para constatar que houve e continuam existindo dois movimentos sincronizados: à medida que caímos num buraco sem fundo de desindustrialização, Campinas, Sorocaba e São José dos Campos entraram na rota de crescimento. Pelo menos de crescimento comparativo ao Grande ABC.
O lamentável é que nem mesmo os evidentes saltos de produtividade obtidos pelo Grande ABC industrial, em meio ao tiroteio de evasão e desativação de unidades associado ao desemprego, têm emergido na contabilidade do ICMS. A explicação também é simples: aquelas regiões do Estado reúnem indústrias tecnologicamente avançadas, com a vantagem de que sofreram menos contrações para se adaptarem ao jogo da globalização. Com isso, não tiveram que fazer lipoaspirações mais prolongadas e incisivas no quadro de trabalhadores. Ou seja: enquanto a indústria regional que sobrou da globalização ensandecida investiu pesadamente em novas tecnologias, processos e gestão, as indústrias de Campinas, Sorocaba e São José, menos obsoletas, adaptaram-se menos dolorosamente à modernização industrial. Sem contar, é claro, que sediamos o setor mais competitivo do mundo, a indústria automotiva de multinacionais nas montadoras e prevalecentemente também nas autopeças.
Para completar: o índice de inflação registrado pelo IGP-M no período de janeiro de 1996 a dezembro de 2002 atingiu 118,69%. Isso significa que o repasse do ICMS para o Grande ABC no período de 1995 a 2002 se cristalizou em perda de 78,51% relativamente ao deflator, enquanto juntas Campinas, Sorocaba e São José dos Campos ficaram apenas 12,52% abaixo do IGP-M. Isoladamente, São José dos Campos, com crescimento de 157,7%, supera largamente a inflação do período. Aliás, dos 10 municípios, é o único que bate no IGP-M. Quem mais apanhou do desgaste monetário foi São Caetano, cuja receita com ICMS cresceu nominalmente apenas 16,78%, contra os 118,69% do IGP-M.
Para que mantivesse o valor real de 1995, deflacionado pelo IGP-M, em vez de R$ 652,3 milhões arrecadados no ano passado, o Grande ABC teria de ter atingido R$ 1,017 bilhão.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES