Economia

Estamos perdendo mobilidade social

DANIEL LIMA - 10/12/2002

Quem ganha pelo menos R$ 4 mil de salário com carteira assinada no Grande ABC? Se você se inclui nessa faixa, considere-se privilegiado. Mas tome cuidado, porque pode ser espécie de mico-leão dourado, isto é, corre o risco de extinção. De cada 100 trabalhadores registrados em empresas sediadas na região, apenas 5,57 estão na lista dos assalariados cujos contracheques registram, em valores brutos, pelo menos R$ 4.001 de salário, isto é, acima de 20 salários mínimos. De janeiro de 1995 a dezembro do ano passado, esse universo de privilegiados encolheu assustadoramente no Grande ABC: eram 60.977, ou 11,85% da massa de trabalhadores, e passaram para 29.124, ou 5,57%. O que dava para encher duas vezes o Pacaembu foi reduzido a dois estádios Bruno Daniel.


A precarização do trabalho formal no Grande ABC e o fim de um ciclo de mobilidade social ascendente acompanham simetricamente a queda da riqueza industrial fortemente abatida na era FHC. O desaparecimento de metade dos salários de classe média é uma das pontas do intrincadíssimo novelo de complicações sociais e econômicas derivadas da abertura mal planejada da economia nacional e que atingiu em cheio o parque automotivo do Grande ABC, gênese da estrutura econômica da região.


Sem exagero, o fato é que a classe média do Grande ABC deixou o paraíso para ingressar no inferno. A redução à metade dos assalariados bem-pagos é apenas uma porta entreaberta do quadro de proletarização do mercado de trabalho formal na região. No outro extremo de carteiras assinadas estão os trabalhadores de até três salários mínimos, ou de até R$ 600 por mês em valores de hoje. Em 1994 eles representavam apenas 18,13% do universo de assalariados formais da região, com 93.305 postos de trabalho. Sete anos depois do governo FHC, saltaram para 188.044 trabalhadores, ou 36,01% do contingente de assalariados formais. Queda de salários rechonchudos e inchaço da faixa de renda reduzida são a prova mais evidente da perda de empregos industriais substituídos por empregos nos setores de comércio e serviços. Também testemunham que uma região multiplicadora de evolução social nos tempos de economia fechada e protegida tornou-se encalacrada.


Os últimos sete anos foram os mais dramáticos para o Grande ABC. Entre janeiro de 1995 e dezembro de 2001 desapareceram da contabilidade das empresas da região 83.209 empregos industriais com carteira assinada, ou 30% dos postos de trabalho — eram 276.612 em 1994, contra 193.403 em 2001. Em contraposição, o terciário ganhou mais de 90 mil postos de trabalho — eram 238 mil em 1994 e somavam 328.705 em dezembro do ano passado. O salário médio e os agregados de proteção social oferecidos pela maioria das indústrias para contrabalançar a degradação de serviços públicos como transporte, saúde e educação nem de longe são sustentados pelo comércio e pelos serviços. Os empregos que se criam no Grande ABC são prevalecentemente de até três salários mínimos. Já os empregos que se perdem e que não são repostos são sistematicamente acima de 20 mínimos.


Por isso mesmo, quando se compara apenas a quantidade dos empregos com carteira assinada no Grande ABC no último ano do governo Itamar Franco e no penúltimo de Fernando Henrique Cardoso, recomenda-se leitura atenta. Em 1994 o Grande ABC contava com 514.551 empregos formais, dos quais 276.612 do setor industrial, ou seja, 53,75%. Sete anos depois, passou a contar com 522.108 empregos formais. O aumento quantitativo discreto de 1,46% é armadilha que esconde a erosão dos empregos industriais, que foram reduzidos a 193.403 postos de trabalho em 2001, ou a apenas 38,11% do total.


Os efeitos no mercado de trabalho de sete anos de governo FHC até 2001 são subprodutos da queda da riqueza industrial em proporção jamais vivenciada pelo Grande ABC. Em 1994, último ano do presidente Itamar Franco, o Grande ABC contava com deflacionados R$ 37,5 bilhões de Valor Adicionado, principal indicador de geração de riqueza na indústria de transformação. Em dezembro do ano passado registrava apenas R$ 25 bilhões, ou seja, uma queda de 34%. O ranking do Índice de Participação dos Municípios no ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), fortemente influenciado pelo Valor Adicionado, também dava as cartas da debacle econômica: o Grande ABC caiu de 10,37% para 8,29% no VA do Estado de São Paulo, ou seja, sofreu rebaixamento de 20,05%.


Com essa sincronia de problemas, seria demais esperar que o mercado de trabalho de qualidade ficasse incólume e que o mergulho da massa salarial não provocasse fissuras na ascensão social. As consequências socioeconômicas são visíveis. Reparem como o mercado imobiliário teve os preços atingidos em cheio. Vejam como há mais competidores de pequeno porte nas áreas de comércio e serviços em busca de clientes. Proliferam mercearias, bares, padarias, açougues, mercadinhos, cabeleireiros, pizzarias, escritórios de contabilidade, motoboys, empresas de segurança — enfim, tudo que não exija muito capital, tudo que caiba nas indenizações trabalhistas ou mesmo em empréstimos pessoais mais modestos.


Exemplos não faltam para diagnóstico que dispense inclusive teses econômicas. É latente a dificuldade de o Grande ABC conviver com a queda econômica. A região se parece com uma classe média-média que de repente se viu obrigada a cortar despesas para fazer frente à queda dos vencimentos. A proletarização salarial da região ainda não atingiu os piores níveis nacionais, mas a diferença que separava o Grande ABC do restante do País já não é tão larga.


Em 1994 a Região Sudeste, formada pelos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais, registrava 36,90% dos assalariados com vencimentos até três salários mínimos. O índice de trabalhadores formais do Grande ABC nessa mesma faixa de rendimentos era a metade — 18,13%. Sete anos depois, enquanto a média de três SM do Sudeste subia para 49,73%, numa variação de 32,50%, o Grande ABC saltava para 36,01%. A diferença de 18,77 pontos percentuais caiu para 13,72 pontos percentuais. A conclusão é simples: a velocidade da precarização salarial do Grande ABC é mais intensa do que a principal macrorregião nacional. A média nacional de participação dos vencimentos até três salários mínimos no conjunto dos trabalhadores formais é de 55,61%, contra 41,87% registrados em 1994.


Como o Grande ABC improvisou de sopetão a roupa econômica do industrial para o comercial a reboque do massacre da abertura econômica, muitos cadáveres tombaram pelo caminho. O despreparo técnico para o gerenciamento do próprio empreendimento, a concorrência nem sempre leal das grandes corporações, o desamparo do Poder Público no planejamento e na ocupação dos espaços comerciais, tudo isso e mais o quadro macroeconômico contribuíram para a elevação do índice de mortalidade das empresas. Cada empresa fechada significa um roteiro de desilusão, de consequências psicossociais que ajudam a compreender o rebaixamento da qualidade de vida na região.


Por isso é anacrônico e claramente avocativo e autobajulativo o conceito de mobilidade social propagado por um sociólogo de fama internacional, atual presidente do Brasil, corroborado por outro, menos conhecido e seguidor do primeiro, o professor uspiano José de Souza Martins. Mobilidade social não pode ser consagrada como idéia de afirmação de um modelo econômico que, todos sabem e sentem, se converteu em falácia.


Dizer que o ex-retirante e ex-metalúrgico Lula da Silva, presidente eleito do Brasil, é generalização da mobilidade social brasileira nestes tempos de escaladas descendentes de salários formais e de inchaço da informalidade, do desemprego, do subemprego e do empreendedorismo autônomo de subsistência é no mínimo um oportunismo semântico e dialético que cala fundo apenas nos incautos. A mobilidade social no Brasil de estagnação econômica e de fragilização social já há duas décadas é tremenda mistificação. Ou por acaso o Brasil não é o 56º colocado no ranking global de carestia e 46º no de competitividade?


Lula da Silva é presidente do Brasil não porque seja fruto de mobilidade social, da mesma forma que Vicentinho Paulo da Silva virou deputado federal e Paulo Pereira da Silva presidente da Força Sindical, entre tantos exemplos. Lula chegou à Brasília porque é prova incontestável do tipo de rebento social que mais aflora neste País — a mobilidade corporativa.


A despeito de todas as qualidades pessoais que o colocam inclusive a salvo de depredadores oportunistas que tentam desqualificá-lo só porque não frequentou bancos universitários reprodutores de conhecimentos compartimentados, esse Lula da Silva que até os sete anos de idade não comera um pedaço de pão sequer porque se alimentava de café preto e de farinha de mandioca, esse Lula é um filhote bem nutrido da mobilidade corporativa de uma Nação construída pelo colonialismo hierarquizador. Exatamente desde que os portugueses desembarcaram no Brasil com seus espelhinhos, seus clérigos, seus dísticos e uma voracidade incomum em saquear as riquezas nacionais.


Tivesse continuado a vidinha de metalúrgico comum, como milhares de companheiros que seguiram sua rebeldia e liderança no final dos anos 70, Lula da Silva teria se perdido nas brumas do passado. Como aqueles milhares de metalúrgicos que o ajudaram a construir um movimento corporativo em contraponto ao seletivismo social das elites, Lula não passaria de uma classe média-baixa porque é isso que se vê aos mangotes desde que o governo Fernando Henrique Cardoso promoveu a mais insidiosa e acelerada abertura econômica à qual uma área nacional poderia resistir — o Grande ABC frontalmente violentado pela deserção industrial a reboque da chegada do capital internacional privilegiado pelo rebaixamento de alíquotas, protegido pela discriminação às autopeças nacionais e despedaçado pela sobrevalorização da moeda, entre tantas epidemias macroeconômicas que atingiram seu organismo e afunilaram sua classe média.


Não fosse Lula da Silva ser o que todos sabem que é — um homem carismático, absorvedor de conhecimentos, hábil no aprofundar de suas picadas nos guetos corporativistas primeiro de operários e depois de intelectuais e políticos de carreira –, a ascensão ao Palácio do Planalto não passaria de miragem. Mas longe está de expressar a subida social preconizada porque as ramificações do poder dependem intrinsecamente de habilidades pessoais muitas vezes, ou na maioria dos casos, em contraponto ao desmanche desenvolvimentista. Principalmente para quem é de oposição político-administrativa.


Considerar o presidente eleito generoso fruto de mobilidade social em um suposto País de justiça social, de cidadania, de desenvolvimento econômico sustentável, um País igualitário nas oportunidades, tudo isso não passa mesmo de um jogo de expressão. Afinal, como pode reivindicar tantos troféus sociais e econômicos um Brasil que está em 74º lugar em matéria de abertura comercial, segundo garante a Fundação Heritage, de Washington, ou em 73º lugar em abertura econômica?


Como papagaios, esses sociólogos repetem à exaustão e ao longo dos tempos velhos conhecimentos adquiridos em academias, esquecendo da dinamicidade dos dias, das transformações econômicas e das remexidas sociais que alteram os rumos dos acontecimentos. Não fosse assim, o Brasil não estaria em 51º lugar no balanço de pagamentos e em 29º no nível de desemprego — com a observação de que as pesquisas não descem aos porões da informalidade e do rebaixamento salarial que disfarçam a face horrenda da desesperança.


Esses e tantos outros sociólogos enfiam no mesmo saco de gatos conceituais a essência da democracia. Acham que o Brasil chegou ao máximo do exercício da cidadania quando, de vez em quando, os mais de 100 milhões de eleitores enfiam os dígitos em urnas eletrônicas e votam tão democrática quanto modernamente. Bobagem. As eleições são apenas um fragmento — importante, mas um fragmento — do imenso universo do conceito contemporâneo de democracia. Como lembrou recentemente o professor Cristovam Buarque, democracia são várias fatias que se dividem harmoniosamente. Democracia alimentar, democracia de transporte, democracia de saúde, democracia de saneamento básico. Democracia eleitoral é uma democracia interrompida tanto quanto mobilidade corporativa é simplesmente uma mobilidade social seccionada pela repartição de poder entre aqueles que catapultam carreiras em raias diferenciadas dos pressupostos do capitalismo humanizado com que todos sonham.


O que há algumas décadas parecia uma constatação pétrea de que a ascensão na escala social seria como torrente de água contra a qual ninguém poderia opor resistência, hoje não passa de uma folha seca que o vento da globalização mal conduzida leva para lugares nunca antes imaginados. Lula da Silva como tantos outros que estão em Brasília, no Executivo, no Legislativo, no Judiciário, como tantos que estão nas Capitais e nos municípios a exercer mandatos públicos, a comandar entidades de classe, a dirigir sindicatos, a exibir nas lapelas símbolos de suas cidadelas conquistadas, todos esses são a mais refinada expressão do corporativismo brasileiro. São infantarias indestrutíveis em suas jornadas sobretudo voltadas à defesa de interesses específicos, muitas vezes disfarçados por uma verborragia de responsabilidade social que se esgota em projetos de puro efeito marquetológico.


São grupos organizados que fazem jus à tradição colonial destas terras. Gente especializada em ascender na escala social por meio do desvio do elevador ou da escada chamada corporação. É verdade que, segundo o próprio Lula da Silva disse há alguns anos, há muitos picaretas entre eles na atividade pública, mas isso não vem ao caso. O que todos têm em comum é uma facilidade imensa em reconhecer os caminhos que podem levá-los ao poder, seja qual for o poder, e lutam por isso com tenacidade e brilho.


Sociólogos consagrados ou não precisam prestar atenção à diferença entre mobilidade social e mobilidade corporativa. Não podem confundir o grosso da sociedade que patina, patina para tentar sobreviver — e muitos não têm feito outra coisa senão escorregar e escorregar — com essa turma densa em notoriedade.
Mobilidade social — mesmo assim seletiva — é o favelado que encontra uma alma bondosa e olhos perspicazes que traduzem aqueles dribles e chutes milimétricos num campo de terra batida de periferia em sinais evidentes de que há um talento a ser lapidado, uma jornada de glória a ser consumada.


Mobilidade social é o estudante universitário que vira doutor de qualquer coisa e não precisa emigrar para qualquer canto do planeta, de preferência para os Estados Unidos tão imperialistas como dizem por aqui os formadores de opinião, em vez de engrossar as filas à espera de empregos nacionais que nunca chegam.


Mobilidade social, agora descendente, é o pai de família desempregado que arruma qualquer bico para evitar que os filhos passem fome e que, exatamente porque há tantos outros pais de famílias na mesma situação, não encontra saída senão contar com o reforço da mulher, que sai à cata de um emprego qualquer de diarista, limpando uma casa de classe média hoje e de classe rica amanhã. Essa mesma mulher que torce para que suas patroas não tenham o chefe da casa ou mesmo a dona-de-casa que também trabalha fora vitimados pelo desemprego em nome de uma abertura econômica destemperada e de um gigantismo tributário voraz que saltou de 28% para 36% do PIB em oito anos.


Quem consegue identificar mobilidade social nos exércitos de jovens desempregados, indefesos diante da bandidagem? Jovens de todas as classes sociais. Jovens que muito cedo descobrem que a ocupação produtiva e pedagógica que lhes falta para exercer um ofício e fazer a roda da economia girar acabará substituída pelo oportunismo maquiavélico de atividades nada nobres que os tornarão presas fáceis de gente escolada pela marginalidade.


É exagerar na brincadeira essa conservadora expressão que tinha lá suas raízes de verdade nos tempos em que o PIB crescia persistentemente e valia a pena perguntar ao filho o que queria ser quando crescesse. Tinha-se nessa época certeza absoluta de que não se ouviria como resposta um palavrão transtornado ou um balançar de cabeças de quem acha que essa resposta está nos céus.


Que País é esse que lança 1,6 milhão de jovens no mercado de trabalho a cada ano e não consegue desenvolver-se para garantir pelo menos o emprego dos pais, classe média ou não?


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