Imprensa

Como induzir o Judiciário
a criminalizar um jornalista

DANIEL LIMA - 07/11/2016

Era uma vez um jornalista que resolveu revelar fatos também sobre o mercado imobiliário da região em que vivia e trabalhava. Ele já escrevera sobre tantas coisas e continuava a escrever sobre coisas tantas que não seria mais trabalhoso do que o normal meter-se numa areia movediça de safadezas impunes de gente que despreza o interesse público e os próprios concorrentes que andam na linha. Já se foram muitos anos desde que se lançou à empreitada. 

O jornalista sabia que não teria vida fácil com o soberano regional do setor. Trata-se do rei que se autoproclama filantropo, poderoso entre os poderosos de plantão, embora detestado pela maioria. Imputam-lhe adjetivos impublicáveis para definir arbitrariamente o perfil esculpido como empresário e dirigente de classe. O reinado de quase meio século se comprovou deletério para a classe e para o espirito de regionalidade que norteia o cotidiano do jornalista. 

Como deixar de escrever sobre um setor tão importante naquela Província à deriva, perguntava-se o jornalista diante de mudanças macroeconômicas que instalaram o setor imobiliário no centro do consumismo de milhares de famílias da região? 

O jornalista escreveu tanto, porque cirurgicamente bem informado, que se viu imerso numa saga de enfrentamento com o milionário comandante de uma entidade de classe que só recentemente deixou de ser mequetrefe, mesmo sem ainda sair inteiramente do calabouço da baixíssima utilidade. Tanto escreveu e incomodou, porque reunia fontes seguras e provas contundentes, que acabou nas garras do Judiciário. O tempo haveria de provar que o Judiciário nem sempre acompanha com atenção o andar da carruagem da economia e do comportamento de uma região, descuidando-se do caso dos malabarismos semânticos e das irregularidades do rei da argamassa. 

Repetindo as artimanhas 

Por duas vezes o jornalista acreditou que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa tão respeitada nos grandes veículos de comunicação seriam suficientes para dar respaldo às verdades inconvenientes que escrevera. Por duas vezes caiu do cavalo em processos que revelariam o grau de inventividade dos queixosos.  

O jornalista fora absolvido em uma das instâncias, mas nas instâncias seguintes deu com os burros nágua. Perdeu a primariedade, mas manteve a honradez profissional e não deu o gostinho afrontador com que o rei das torneiras pretendia desmoralizá-lo caso admitisse em juízo que o queixoso é um santo homem, desses a quem se deve reverenciar sempre. 

Para uma Província do Grande ABC demolida pela roubalheira geral e irrestrita, as decisões judiciais tiveram o gosto amargo de despropósito, mas significaram portentoso atestado de idoneidade profissional que poucos atrevem incorporar no dia a dia da Imprensa regional.   

Segundo o entendimento de gente que não costuma perder tempo e está sempre disposta a negociar, o posicionamento do jornalista não passa de teimosia e burrice. Muitas portas se abrem aos condescendentes.  

O truque do rei do concreto com seus advogados regiamente pagos teria sido cuidadosamente articulado para levar no bico os magistrados. Eles fizeram direitinho a lição recomendada pelo figurino da esperteza jurídica. Contariam para tanto com a sobrecarga de processos tão duramente criticada e em muitos casos geraria resoluções aceleradas sem os devidos cuidados.

Seletividade marota 

Os advogados a serviço da associação de classe selecionaram cuidadosamente os artigos supostamente ofensivos à honra e à imagem do rei dos batentes e esquartejaram o que era uma narrativa com cabeça, tronco e membro. Criou-se uma peça acusatória fantasmagórica, sem pé nem cabeça aos olhos mais atentos e conhecedores das especificidades da prática de jornalismo. 

Há brinquedos infantis que transformam médico em monstro com a simples retirada de algumas peças. A jornada acusatória do rei da construção civil seguiu esse princípio -- com o adicional de que se utilizou de enunciados deletérios em oposição à verdade dos fatos para caracterizar supostos crimes. 

Os operadores da defesa do rei dos terrenos da Província do Grande ABC destacaram um parágrafo aqui, outro ali, retirando-os do contexto circunstancial não só do artigo em si, mas do conjunto da obra estrutural do jornalista. Entenda-se como obra estrutural o coletivo de artigos de viés autoral que respalda a crítica fundamentada. Ou seja: muito do que se afirma num artigo hoje, sem recorrer integralmente ao histórico anterior, não pode desgarrar-se de avaliação que leve em conta esse mesmo histórico anterior. 

Pouco adiantou ao jornalista tomar todos os cuidados para dar consistência aos textos com requisitos de compromissos com a regionalidade. Provavelmente por descuido de entendimento dos magistrados, o rei das reuniões inúteis com súditos de classe e seus advogados obtiveram o intento de penalizar o jornalista. 

Ora, ora, ora, se a estratégia dera certo nas duas primeiras investidas, embora não tão certo assim porque o jornalista não abriu mão do direito à informação, por que não continuar a ofensiva, agora com a deliberada iniciativa de torná-lo um desrespeitoso agressor de entidade de classe?

Industrializador de vítimas

Foi assim que o rei da artimanha jurídica investiu mais uma vez contra o jornalista empedernidamente defensor de um mercado imobiliário saudável, respeitador dos clientes, principalmente das famílias, vítimas preferenciais de estatísticas fraudulentas. 

Esse mesmo jornalista até produziu uma série de artigos a título de contribuição, com planos exequíveis à regeneração ética do setor imobiliário. Jamais foi chamado pelos representantes do setor -- entenda-se o poderoso rei das manipulações estatísticas -- para detalhar as propostas. Mais que isso: a iniciativa pareceu recrudescer a animosidade.  

Uma dessas propostas, aliás, reflete o viés do trabalho jornalístico: a composição de um grupo encarregado de produzir e gerenciar um Código de Ética das atividades de construção civil na região, retirando-a das vielas obscuras de negociações nada republicanas, às quais somente alguns mais privilegiados têm acesso.

Entretanto, como tentar calar mais uma vez o jornalista metido a besta se supostamente já se esgotara o filão da mais que estúpida ilação de que se tratavam, aquelas análises anteriores do mercado imobiliário, de ofensa e difamação ao zeloso pai de família do comandante da entidade do mercado imobiliário, não exclusivamente ao dirigente do mercado imobiliário? 

O jornalista jamais teve qualquer preocupação com o que fazia ou faz o rei do cimento armado fora das quatro linhas do gramado de dirigente de classe ou presidente de um conglomerado de empresas fartamente conhecidas pelo Ministério Público do Consumidor de São Bernardo e pelos fiscais flagrados em delito na redução de valores do Imposto Sobre Serviços da Prefeitura da Capital. 

Usando a entidade

À falta da possibilidade de representação criminal pessoal contra o jornalista, o rei do tapete do mercado imobiliário da região decidiu forçar a adoção de uma nova incursão judicial agora em nome da associação que presidia com pendores democráticos perfeitamente adequados a regimes políticos fechados. 

O rei dos entulhos tratou pessoalmente de colocar o assunto na pauta e de forçar a aprovação da ação criminal na associação que presidia. Os demais participantes da reunião, poucos como sempre, aprovaram por unanimidade. E lá se foi o dirigente da entidade a convocar os mesmos advogados de sempre, de seu conglomerado de empresas, e partir para novo ataque ao jornalista atrevido. Era preciso investir forte para retirar esse empecilho de circulação. 

No mesmo encontro o rei dos dormitórios deu ordens à assessoria de comunicação para que passasse a bombardear o jornalista com informações de todos os tipos possíveis. Era preciso atacar a imagem e a credibilidade do profissional. Quem mandou ele se meter com o rei das salas de estar?

É assim que funcionam os incomodados com a liberdade de imprensa. E também com forças-tarefas que combatem a corrupção, caso do juiz Sérgio Moro, de policiais federais e de procuradores federais. 

É verdade que a Lava Jato ainda não vicejara naquele agosto de 2013, quando o rei dos azulejos ingressou com nova ação contra o jornalista, mas a literatura internacional com adaptações tropicais é farta sobre como deve agir quem se acha em situação desconfortável. O rei dos dormitórios já recusara entrevistas ao jornalista e continuou a fazê-lo. Ele tem horror a questionamentos que não sejam previamente expostos. Só aprova o que lhe interessa. São entrevistas de cartas marcadas às quais se submete quem não tem respeito ao consumidor de informação. 

Manipulação descarada 

Se a tática de incriminar o jornalista dera certo anteriormente, por que não daria agora? Desta vez o rei dos pisos juntou 11 matérias. Fez o trabalho tão bem feitinho que o juiz da causa lhe deu plena retaguarda com sentença que, como as demais, fere frontalmente o direito à informação. O circunstancial e o histórico foram jogados no lixo.

O que se espera agora é que na segunda instância magistrados desmascarem uma queixa-crime delituosa sob o ponto de vista ético e da verdade dos fatos. Os desembargadores não cairiam na pegadinha da seletividade e da descontextualização das supostas provas do crime, as quais estão a léguas de distância de ultrajar os limites constitucionais do direito de expressão e da liberdade de imprensa. 

É fácil desmascarar o mais uma vez suposto ofendido, que se utiliza -- é sempre bom repetir -- do estratagema de representar a queixa-crime em nome da associação que até então dirigia e da qual, um ano e meio depois, foi diplomaticamente despejado após reinado de um quarto de século. O afastamento tornara-se compulsório porque o rei dos metros quadrados caíra do pedestal oficial após meter-se em irregularidades indigestas.

Ganhara do Ministério Público do Consumidor de São Bernardo o título de campeão regional de abusividade contra a clientela. Também foi premiado ao constar da lista de corruptos metidos na Máfia do ISS da Capital do Estado. Aliás, esse escândalo emergiu no final de 2013, cinco meses após o rei da legislação de uso e ocupação do solo determinar aos advogados que metessem bronca oficial contra o jornalista que tem a mania de cumprir a tarefa profissional que abraçou há mais de 50 anos.

Como soterrar manipulações? 

É muito pouco provável que os desembargadores da Quarta Turma do Tribunal de Justiça de São Paulo caiam no jogo de seletividade associada a destaques marotos nas queixas- crime manipuladas pelo rei do contrapiso. Não é preciso mais que um certo cuidado na apreciação do caso para constatar duas aberrações que afrontam a Constituição Federal. 

A primeira é uma série de irregularidades processuais denunciadas pelo advogado do jornalista, Alexandre Frias. São escorregadelas do magistrado de primeira instância insustentáveis ao arbitramento de quem tem o compromisso com o devido processo legal. Há série de imprecisões que ultrapassam o limite do razoável, assegura o advogado do jornalista. 

A segunda inconformidade jurídica é o deboche em forma de ataque que sustenta a repetição de uma frágil concatenação de supostas provas respaldadas nas duas vezes anteriores porque há certas coisas que não se explicam – aceitam-se até que nova instância seja acionada. As duas ações anteriores não resistem ao tempo. Foram julgadas sem levar em conta a deterioração dos pressupostos da queixa-crime.  

Explicando melhor o novo caso, que está no Tribunal de Justiça de São Paulo, nada melhor e mais didático que dar pragmatismo à teoria. O jornalista escreveu 97.895 caracteres nos 11 artigos selecionados pela defesa do rei das fachadas em nome da associação de classe.  O jornalista abordou temas relacionados ao mercado imobiliário nos oito primeiros meses daquele 2013, entre tantos outros assuntos. Onze matérias num universo anual, geral, de mais de 400 textos produzidos com as próprias digitais são quase nada. Mas os advogados sugeriram ao juiz de primeira instância que o jornalista só se ocupava do rei dos banheiros. Pouco adiantaram argumentos e provas em contrário. Valeram mesmo os retalhos de textos ardilosamente manipulados para incriminar o crítico.

Fragmentos manipulados 

Para que se tenha mais palpável a dimensão de 97.895 caracteres escritos pelo jornalista e separados pelos acusadores, basta o leitor multiplicar este texto de 15.796 caracteres por seis vezes. Pronto, está à mão a massa da produção que o jornalista publicou especificamente sobre o mercado imobiliário naquelas 11 matérias. 

Melhor dizendo: não foi apenas esse calhamaço que o jornalista escreveu naquele restrito período de 2013 sobre o mercado imobiliário da região. Houve a edição de muito mais matérias, entre vários temas aos quais se dedica o profissional de comunicação. Mas o rei da bocada imobiliária optou por não juntá-las ao processo criminal. Algumas davam contas das traquinagens do rei dos telhados num caso mais que escandaloso de arremate fraudulento de uma área pública em São Bernardo. Um terreno mais que privilegiado, no qual se constrói empreendimento de peso e que, mesmo com número inquietante de distratos, segue cronologia de obras. 

O terreno pertencia à Prefeitura de São Bernardo, comandada pelo prefeito Luiz Marinho a quem, mais tarde, o empresário apoiou ostensivamente à reeleição. Uma relação tão estreita e frutífera que o prefeito foi levado à sede do conglomerado do rei dos ladrilhos para pregação de votos. Os funcionários mais antigos ficaram surpresos. Em outros tempos o PT era excomungado naquele endereço.  

Nunca é demais lembrar que para safar-se do problema mal apurado pelo Ministério Público Estadual, do caso do terreno arrematado de forme irregular, o rei do reboco contratou o jurista José Roberto Batochio, que também serve ao ex-presidente Lula da Silva na Operação Lava Jato. Quem contrata alta patente do Direito parece estar lidando com situação que não se enquadra em caso corriqueiro.  Especialistas ouvidos tempos depois não deixaram pedra sobre pedra sobre as irregularidades daquele leilão que segue sem a devida investigação do Ministério Público Estadual.

Menos de 5% 

Pois bem, e para finalizar o modus-operandi sobre o qual os desembargadores do STJ não deixarão pedra sobre pedra: do total de 97.895 caracteres de 11 artigos em forma de análise que revelam sem temores o quanto o rei e o império que ele presidia não eram confiáveis aos olhos agudamente inquietos, um total de 3.217 caracteres foi destacado em cores vivas como prova supostamente insofismável dos delitos de injúria e difamação cometidos pelo jornalista. 

O que se sabe nos bastidores do sistema judiciário como eventual explicação à política de ataque do rei e seus homens é que existiria a crença de que nem todos os juízes e desembargadores leem de cabo a rabo os processos sobre os quais têm de decidir a sorte de pessoas e empresas.   

De qualquer modo, a iniciativa do rei das medições de apartamentos foi repetida mais uma vez. Ou seja: apenas 3,49% do conjunto de insumos editoriais do jornalista seriam observados pelos julgadores. E, portanto, se chegaria a um resultado enviesado, como decidira sentença em primeira instância. Estaria assegurada mais uma vez a retirada do contexto seguida de manobra interpretativa do trecho selecionado, criando-se, portanto, a tese de criminalização de quem cumpre a função social de informar. 

Até que ponto o Judiciário comportaria essa fissura processual que deslocaria a substância legítima e bem costurada dos parágrafos ao acostamento ético e moral dos fatos analisados? 

Passou da hora dessa história de horrores ganhar uma nova versão. O rei de subjetividades e de fragmentações não pode proclamar aos súditos que jornalista bom é jornalismo acovardado. A Província do faz-de-contas não pode prevalecer nesses tempos de Lava Jato.  



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