A repercussão da ação sindical nos anos de rebeldia no Grande ABC, mais precisamente na década de 80, é menos crucial para explicar o esvaziamento econômico da região do que imaginam os simplistas de ocasião. Quando se procura graduar o impacto do sindicalismo bravio dos tempos de Lula da Silva e seus seguidores sobre o desempenho da economia do Grande ABC, normalmente há duas vias expressas e igualmente perigosas, porque propícias a aceleramentos em condições de risco de derrapagem. Do lado direito, execra-se o sindicalismo, considerando-o como agente principal da evasão industrial. De outro, esculpe-se perfil de absoluta isenção do sindicalismo na debandada empresarial.
São versões canhestras de oito ou 80. A razão está longe dos extremos também nesse caso.
Neste momento em que Lula da Silva se aproxima do sonho supremo da esquerda brasileira, é preciso colocar ordem no picadeiro de interpretações sobre o comportamento do sindicalismo no Grande ABC e até que ponto os exageros realmente cometidos pelos trabalhadores, em contraposição à intolerância de então dos empresários, influenciaram nosso processo de emagrecimento industrial.
Antes do arrazoado com que pretendemos demolir de vez alguns mitos e confirmar enunciados que já produzimos, embora sem nos ater a maiores profundidades, é preciso colocar uma realidade que tenho enfatizado exaustivamente com provas: os anos de sindicalismo abrasivo no Grande ABC fizeram menos estragos se comparados ao período de abertura econômica, moeda sobrevalorizada, juros estratosféricos e gestão voltada ao financeirismo — tudo patrocinado pelo governo Fernando Henrique Cardoso. O confronto não significa alinhamento aos propagadores da negação dos efeitos sindicais.
À falta de dados mais remotos do Valor Adicionado, indicador de transformação de riqueza que esquadrinha o batimento do coração econômico de municípios, regiões, Estados e da própria Federação, recorremos a um subproduto, o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. O peso do Valor Adicionado no Índice de Participação dos Municípios na distribuição do ICMS é de 76%, contra 13% do vetor população. Tradução: vale muito mais o que se transforma em riqueza do que o peso populacional.
Completa-se o circuito de mensuração distributiva do ICMS com outros vetores, entre os quais 5% de receitas próprias. Em suma: o ICMS transmite a segurança de que o mapeamento analítico do desempenho municipal, regional e estadual de geração de riqueza não é uma aventura. Muito pelo contrário. É, com alguns senões, uma espécie de PIB para efeito de entendimento.
Colocada dessa maneira, vamos aos finalmentes: em sete anos de governo FHC — de 1995 a 2001 — o Grande ABC perdeu participação no ICMS de 22,3%, contra queda de 10,10% da vizinha Capital. Isso quer dizer que o Grande ABC perdeu a média de 3,05% ao ano, contra 1,43% da Capital. Nesse período a ação sindical no Grande ABC entrou em parafuso e praticamente inexistiu como sinônimo de oposição ao capital. Tudo porque a adversidade macroeconômica recomendava recolher as armas de reivindicações. Eram temporadas de abate de empregos. Lideranças sindicais locais bem antes já haviam acalmado os nervos, porque a derrubada do quadro de assalariados começou antes da própria virada da década de 80.
Dessa forma, está caracterizado que o resultado negativo da economia do Grande ABC no período pós-Plano Real é acentuadamente marcado pela gestão do governo federal e também do estadual. Tanto uma esfera quanto outra permaneceram impassivelmente desinteressadas dos efeitos regionais e estaduais da guerra fiscal que transformou a Grande São Paulo em ponto de deserção de empreendedores em busca de vantagens efetivas de competitividade. Logística, por exemplo, desprezada nos tempos de inflação, virou ferramenta de redução de custos.
É visível a diferença entre o período FHC e a década de maiores embates entre capital e trabalho no Grande ABC, que começa em 1980 e termina em 1989. Vejam só: entre 80 e 89 o Grande ABC perdeu 23,6% no Índice de Participação dos Municípios formulado pela Secretaria da Fazenda do Estado. A vizinha Capital, de sindicalismo sempre mais dócil, perdeu praticamente a mesma coisa: 19,3%. Mais importante que os números absolutos são os números relativos: no período de 1980 a 1989, o Grande ABC perdeu média anual de 2,36% no repasse do ICMS, contra média anual de 1,93% da cidade de São Paulo.
A diferença entre a média de perda do Grande ABC quando confrontada com a média de perda da cidade de São Paulo nos últimos sete anos completados em dezembro comprova a penalização imposta à saúde empresarial e social dos sete municípios da região porque é quase o dobro: 2,23% contra 1,43%. Portanto, completamente descolada da década anterior, de 2,36% do Grande ABC e 1,93% da Capital. Mais múltipla e menos dependente da indústria automotiva, a Capital dos paulistas resistiu mais à evasão industrial e à impactante abertura econômica da segunda metade dos anos 90 e neste início de novo século.
Os números assemelhados da década de 80 no confronto que expusemos entre Grande ABC e Capital mostram também que o fator sindical não teve diferencial de influência tão alardeado pelos conservadores. O sindicalismo paulistano, há muito sob controle de forças ditas mais conservadoras, desde que Joaquinzão presidia o Sindicato dos Metalúrgicos, sempre teve relacionamento mais ameno com o empresariado em relação aos cutistas do Grande ABC. Se o peso da ação sindical fosse substantivamente relevante à evasão industrial, a diferença registrada nos anos 80 não seria tão escassa, de 23,6% contra 19,3%.
O que de fato pesou mais fortemente no esvaziamento industrial do Grande ABC e da cidade de São Paulo nos anos 80 e 90, inclusive a partir do Plano Real, foi uma combinação irresponsavelmente desprezada de guerra fiscal, caos urbano, rebaixamento da qualidade de vida, criminalidade ascendente, custo imobiliário e algumas outras enfermidades típicas de regiões metropolitanas impiedosamente atiradas no lixo do planejamento pelos gestores públicos estaduais e federais. E, evidentemente, o despreparo dos gestores públicos municipais, tanto do Grande ABC quanto da Capital, para exercitarem antídotos contra a política estadual e federal de descentralização produtiva. Ao conceito de desconcentração concentrada da produção deveriam os gerenciadores públicos interpor contrapartida de políticas demográficas, entre outras medidas.
Dessa forma, vivemos no pior dos mundos, com menos produção e geração de riqueza e um passivo habitacional em constante processo de periferização geográfica e econômica, chagas que transformam a Região Metropolitana de São Paulo em uma metástase de exclusão social e funcional.
Postos os argumentos e os dados, quero martelar alguns conceitos para que não fiquem dúvidas sobre a abordagem que nos dispomos a produzir:
O sindicalismo dos anos rebeldes do Grande ABC, na década de 80, apresentou resultados semelhantes como indutor de evasão industrial ao proporcionado pelo sindicalismo paulistano, de metodologia menos agressiva. Esses resultados não podem ser minimizados, mas também não devem ser levados ao cume de motivo que mais pesou nas decisões.
Pesaram muito mais na evasão industrial questões relacionadas à infra-estrutura urbana, à qualidade de vida e aos atrativos da guerra fiscal. Não se pode esquecer que a política ambiental do governo estadual e também dos governos municipais, somada às restrições de ocupação espacial, elevou desmesuradamente o metro quadrado para investimentos industriais, enquanto o Interior oferecia terra gratuitamente.
Os anos de chumbo do governo Fernando Henrique Cardoso foram muito mais insidiosos para a economia do Grande ABC, concentrada largamente na indústria automotiva, do que em qualquer outro território paulista. Inclusive a vizinha Capital, mais apetrechada de matrizes econômicas industriais, comerciais e de serviços.
Se ainda houver dúvidas sobre o impacto efetivamente menor do sindicalismo em relação à evasão industrial da Grande São Paulo, há três exemplos a ser considerados:
Entre 1980 e 1989, em plena efervescência sindical no Grande ABC, São José dos Campos perdeu 15,5% de participação no índice do ICMS, Campinas ganhou 11,3% e Sorocaba agregou 28,1%.
Durante o governo FHC, São José dos Campos ganhou 52% de ICMS, Campinas perdeu 12% e Sorocaba agregou 19,4%.
Como se explica tudo isso? Vamos em frente:
A versão deste jornalista de que o sindicalismo é um fator menos decisivo do que se pretende fazer crer está confirmada no desempenho daqueles três municípios, inseridos num contexto de relações capital-trabalho mais recrudescente do que o do Grande ABC. Em Campinas, em Sorocaba e em São José dos Campos os sindicatos, principalmente dos metalúrgicos, estão muito mais à esquerda, mais à linha do PSTU, do que os cutistas da região.
Mesmo com sindicalismo mais arredio, aqueles três municípios nadaram de braçadas na economia porque são menos dependentes da indústria automotiva e também porque oferecem um coquetel de vantagens locacionais que a Região Metropolitana de São Paulo, principalmente o Grande ABC, não consegue garantir. Traduzindo: os custos de produção, não necessariamente relacionados exclusivamente a salários, pesam mais na Grande São Paulo do que em qualquer outra região do Estado. É o custo da metropolização. Campinas, Sorocaba e São José são sedes de regiões metropolitanas de fato que precisam ser analisadas exatamente como regiões metropolitanas. O que Campinas perdeu depois do Plano Real, por exemplo, se deslocou para o seu entorno. Diferentemente das perdas da Região Metropolitana de São Paulo.
As desvantagens da Grande São Paulo na competição com a São Paulo expandida, como podem ser chamadas as regiões metropolitanas de Campinas, Sorocaba e São José dos Campos, estão expressas numa análise temporalmente mais longa. Entre 1980 e 2002, os repasses de recursos do ICMS acusam perda relativa do Grande ABC de 43% no Estado, contra 34% da Capital. Por outro lado, São José dos Campos ganhou 69%, Campinas 14,3% e Sorocaba 31%.
Isso tudo quer dizer o seguinte, entre outras constatações: o governo federal e o governo estadual não tiveram capacidade gerencial de estabelecer medidas estratégicas que evitassem resultados tão díspares, com as implicações sociais facilmente identificadas. Basta sair da Região Metropolitana de São Paulo em direção àquelas três áreas, ou vice-versa. Em termos de qualidade de vida, que é a síntese dos objetivos e das perspectivas de todos que têm um mínimo de juízo, é o mesmo que optar entre o céu e o inferno.
Recuar ainda mais no tempo só consolida essa argumentação. Para tanto, recorro aos meus arquivos e também ao jornal Valor Econômico de ontem, que publicou matéria sobre a queda da indústria paulista no universo nacional. A gerente de análise do Departamento de Indústria do IBGE explicitou mais uma vez a cronologia de uma queda sistemática. Em 1970, o Estado de São Paulo respondia por 56,6% da produção nacional de manufaturas. O encolhimento foi persistente, antes mesmo de o sindicalismo brotar no Grande ABC e esparramar-se por importantes centros econômicos do Estado de São Paulo.
Leiam o que disse a gerente do IBGE:
“A indústria paulista em 1970 era basicamente a Grande São Paulo”. E segue o texto do Valor Econômico: “Ela revela que naquele ano as fábricas da Grande São Paulo, microrregião geográfica da Capital, eram responsáveis pela produção de 42,2% da indústria brasileira. Este percentual encolheu para 26,8% em 1985, na década perdida face ao impacto desconcentrador do II PND, que criou as centrais petroquímicas da Copene (Bahia) e Copesul (RS), mais a Suframa (Zona Franca de Manaus). Em 1996, esta participação encolheu para 19,5%, chegando em 2000 a 13,9%.
O esvaziamento da Grande São Paulo é, fundamentalmente, uma obra de omissão coletiva das autoridades públicas que passaram e estão nos governos federal, estadual e municipal. Autárquicas, essas autoridades não souberam e não sabem o significado de regionalidade e de metropolização.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES