Sugiro aos leitores que permaneçam sentados ao ler este texto que trata do dossiê que estou preparando juntamente com o advogado Alexandre Frias para colocar nos devidos lugares da liberdade de opinião o que foi considerado crime pelo Judiciário de Santo André, em resposta à queixa-crime do empresário Milton Bigucci, então presidente do Clube dos Construtores do Grande ABC (Acigabc), em agosto de 2013. Não se trata de peça de ficção.
O que os leitores vão encontrar mais uma vez é a configuração de um desvio interpretativo que não suportaria jamais o bom senso em qualquer instância suplementar do Judiciário, exceto se o direito à liberdade de expressão com compromisso social for revogado.
Juntei desta vez ao artigo criminalizado pelo magistrado de Santo André outros três textos, publicados nestes dias nos jornais da Capital. A acidez intrínseca do jornalismo que não aceita ser correia de transmissão dos poderosos de plantão ou mesmo de instituições respeitáveis que tropeçam em determinadas situações está explicitada nos textos que fazem companhia ao artigo que assinei em 22 de julho de 2013 sob o título “Nichos, micos e bolha: o que é mais importante no mercado imobiliário?”.
Ação protetiva
Deixando de lado a modéstia que poderia ser interpretada como falsidade, recomendo aos leitores atenção ao texto que produzi. Vejam as características que compõem cada trecho. Trata-se de ação protetiva à economia das famílias da região. O enunciado se comprovou premonitório. Cantei as caçapas dos estragos de um mercado imobiliário cuja demanda foi inflada também por marqueteiros e dirigentes de classe irresponsáveis.
Mas não foi esse ponto analítico que ancorou a queixa-crime preparada por Milton Bigucci e seu séquito de advogados. A fragilidade é ainda mais copiosamente dolorida porque selecionou uma única frase como suposta prova do pecado deste jornalista. Leiam: “A verdade não aparece nas estatísticas de entidades empresariais manipuladoras de informações. Caso do Clube dos Construtores do Grande ABC, presidido pelo impagável Milton Bigucci”.
Leram atentamente? Pois esse foi o crime aludido. O tempo provou que as estatísticas divulgadas por Milton Bigucci à frente do Clube dos Construtores eram uma montanha de mentiras e manipulações. Tanto que seu sucessor na entidade, o engenheiro Marcus Santaguita, suspendeu a divulgação trimestral de números, porque fajutos. Trata-se, como se vê, de um dirigente mais ajuizado.
Os outros trechos
As demais matérias que fazem companhia à minha nesta série do dossiê estão milhares de quilômetros acima em estridência e contundência. Vejam, por exemplo, um trecho do artigo do filósofo Roberto Romano sob o titulo “Suprema Subserviência”, publicado na página de editoriais do jornal O Estado de S. Paulo de 10 de dezembro: “O Supremo Tribunal é conhecido como Corte política. Não raro se excede na faixa de agradar ao Executivo e ao Legislativo. Em sua história os brasileiros encontram sentenças que envergonhariam qualquer toga do planeta”. É preciso ir mais adiante?
Agora, no segundo exemplo pinçado, puxamos um trecho do artigo do jornalista e colunista da Folha de S. Paulo, Elio Gaspari, sob o título “A turma da operação lava jato deve confiar na Justiça”. Leiam: “A lava jato e todas as investigações estariam ameaçadas porque, aberto um inquérito, um cidadão que se julgue prejudicado poderá processar procuradores ou mesmo o juiz por abuso de autoridade. (...) Se os procuradores da lava jato, o juiz Moro, a ministra Cármen Lúcia e seu colega Joaquim Barbosa não confiam na Justiça, por que alguém haverá de fazê-lo?”.
O outro artigo selecionado para este dossiê é de Janio de Freitas, também colunista da Folha de S. Paulo. Ele escreveu em 11 de dezembro, ontem, sob o título “Omissão premiada”: “É mesmo problemática a assimilação de um desenlace por meio de acordo entre o Supremo e políticos, à maneira de conchavos parlamentares recebidos pela opinião pública, tanto deles, com repugnância”.
Após essa amostra-grátis, vamos aos textos completos, sem deixar de questionar: o que se passou com a sentença do juiz de Santo André que, tendo à disposição uma massa de 11 artigos que retrataram a realidade fática da atuação do Clube dos Construtores durante a gestão de Milton Bigucci, decidiu descartar a verdade cristalina de que a sociedade regional tem o direito de saber o que se passa com suas instituições?
O artigo deste jornalista -- Em outubro do ano passado escrevi um artigo sobre micos e nichos imobiliários na Província do Grande ABC. O fenômeno é generalizado em diferentes geografias do País. Há quem o confunda com bolha imobiliária, assunto sobre o qual há diferentes posicionamentos. Tanto há assertiva de que estamos mergulhados num processo que se tornará irreversível quanto existe contestação de que, entre outros motivos, o déficit habitacional e o vácuo de lançamentos em duas décadas seguidas abriram brechas fabulosas à massificação da produção sem que se caia na cilada de descompasso sistêmico. Certo mesmo, independente de aspectos defensivos e de pontos cortantes sobre a existência ou não de bolha imobiliária no País, é que nichos e micos são irrebatíveis. Aqui na Província sou capaz de apostar com base em observações pessoais e atentas informações de fontes do setor imobiliário que há muito mais micos do que nichos. A tradução é que há mais lançamentos de apartamentos e de salas comerciais que têm tudo para dar com os burros nágua do que apartamentos e salas comerciais cujos estoques desovariam num piscar de olhos. E que sejam bons negócios aos investidores. Os micos são tão abusivos que basta a chegada da noite, da novela das nove, das luzes das salas de estar apagadas em torres de apartamentos há muito liberados a condôminos, para se inquietar. A verdade não aparece nas estatísticas de entidades empresariais manipuladoras de informações. Caso do Clube dos Construtores do Grande ABC, presidido pelo impagável Milton Bigucci. Nada que não seja coerente: à frente da MBigucci, ele se tornou campeão absoluto em abusos, segundo denúncia do Ministério Público Estadual do Consumidor, em São Bernardo. O maior mico residencial e comercial de que se tem notícia na região é o Domo, erguido no entorno do Paço Municipal de São Bernardo. Ali a catástrofe é tão evidente que, mesmo os agentes imobiliários preocupados em dourar a pílula para sustentar negócios em alta, não escondem preocupação. Ainda outro dia, então presidente interino do Clube dos Construtores, o empresário Armando Luporini revelou o quanto se distancia em responsabilidade social de Milton Bigucci. Ele declarou ao jornal Repórter Diário que o Domo é um grande mico, embora tivesse preferido utilizar o termo “encalhado” ao se referir ao elevadíssimo estoque de um empreendimento que, segundo ele, não cabe no bolso dos moradores de São Bernardo. Há no Domo abundância de apartamentos e de salas comerciais à venda e também disponíveis a aluguel. Outro dia mesmo promoveram um feirão para tentar desovar parte do encalhe, enquanto outras torres se levantam porque há contratos a cumprir. Tudo foi feito em surdina, embora faixas tenham sido colocadas mesmo que discretamente em pontos estratégicos. Talvez não se deva chamar de discretas faixas a anunciar feirão de imóveis, mas no caso o adjetivo é adequado. Havia um certo constrangimento na exposição do material, sem o estardalhaço da maioria dos casos análogos. Centro fogo informativo no Domo porque é o mais escandaloso mico imobiliário na Província do Grande ABC, sobretudo pela grandiosidade da obra que não se limita à área ocupada durante décadas pela Tecelagem Tognato, mas, também, do outro lado da Avenida Aldino Pinotti, fronteira com a Avenida Senador Vergueiro. Praticamente no quintal do Paço Municipal, cujo prefeito, secretários e funcionalismo podem acompanhar, em tempo real, sem recursos tecnológicos, a movimentação daquelas pedras. Há outros endereços cujo fluxo de vendas não acompanhou o fluxo das obras, mesmo que o fluxo das obras tenha sido reduzido ao longo dos meses para tentar se deixar agarrar pela demanda. Inutilmente, é claro. Os condôminos do Domo – são quase duas dezenas de torres de apartamentos e escritórios – estão morrendo de preocupação com a prometida chegada do monotrilho, o metrô sobre trilhos elevados que remetem a filmografias de uma Nova Iorque deteriorada nas áreas em que sistema semelhante de transporte público aparece na janela de apartamentos e incomoda com uma barulheira dos infernos. Dizem que os nossos monotrilhos são melhores que os deles. Afirma-se até que são silenciosos e que não causariam depreciação dos apartamentos. Tudo respaldado por estudos. Quem acredita nisso? O monotrilho vai passar no coração viário que separa aquelas torres de apartamentos e escritórios, na Avenida Aldino Pinotti, onde, vejam só, os condôminos já têm de suportar os desfiles de carnaval. Uma combinação de monotrilho e passarela do samba será duplamente agressiva a quem caiu no conto de que morar no Domo seria algo típico de Primeiro Mundo. Muitos vieram da Capital, iludidos com a possibilidade de gastarem menos em moradia e estarem a um pulo do emprego paulistano. Grande parte comprou apartamentos na planta durante finais de semana ao som de marketing agressivo de cantores populares. Deixaram de comunicar aos compradores que o sistema viário caótico que liga a região a São Paulo, e vice-versa, é razoavelmente humano apenas nos finais de semana, quando não se trabalha. E deixaram de dizer também que a alternativa do trecho sul do Rodoanel, esgrimida pelo deputado estadual Orlando Morando para justificar o título de “melhor esquina de São Paulo” no dizer do ventríloquo governador Geraldo Alckmin, se comprovou uma balela à grande maioria dos moradores de São Bernardo que trabalha na Capital. Orlando Morando e Milton Bigucci não são amigos por acaso. A chegada prometida do monotrilho, o aerotrem daquele exótico candidato de partido nanico, já está causando furor entre condôminos e movimentos populares que se ofenderam com declarações em redes sociais sobre a possibilidade de “aquela gente diferenciada” acabar com o sossego dos moradores do local. Tal qual Higienópolis, o sofisticado bairro paulistano ao reagir ao anúncio de construção de uma estação do metrô. Foi o suficiente para que algo semelhante ocorresse por aqui. Até uma churrascada se realizou no último sábado envolvendo algumas dezenas de manifestantes irritados com o que chamam de discriminação social. Dizem que se prometia muito mais gente no encontro, mas não é ajuizado desconsiderar alguns aparentemente poucos, porque muitos podem engrossar a mobilização amanhã. Basta citar a meia dúzia que no começo de junho deflagrou a maior manifestação social de que se tem notícia na história recente do País. Estou começando a acreditar que o Domo será um mico resistente ao tempo, porque a salvação dos negócios imobiliários mal-ajambrados é esticar o cronograma de ocupação, medida que, evidentemente, não susta os prejuízos com o imobilizado em forma de impostos, taxas condominiais e inevitáveis reduções de valores contratuais.
O artigo do filósofo Roberto Romano -- O Supremo Tribunal é conhecido como Corte política. Não raro se excede na faina de agradar ao Executivo e ao Legislativo. Em sua história os brasileiros encontram sentenças que envergonhariam qualquer toga do planeta. A Constituição de 1934 proíbe tribunais de exceção no capítulo 2, 25: “não haverá foro privilegiado, nem tribunais de exceção”. Instaurada o Tribunal de Segurança Nacional, o deputado João Mangabeira apresenta recurso ao Supremo. Por voto unânime os juízes declaram o invento tirânico “em perfeito acordo com a Constituição da República”. Um atalho na Carta permite a hermenêutica liberticida: “admitem-se, porém, Juízos especiais em razão da natureza das causas”. E a bênção dos magistrados é concedida sem data venia. O referido tribunal persegue 1.420 pessoas: 533 no Distrito Federal, 222 do Rio Grande do Norte, 165 em São Paulo, 95 em Pernambuco, 85 da Bahia. Entre os “julgados”, Armando Sales, José Antônio Flores da Cunha, João Mangabeira, Otávio Mangabeira, Luís Carlos Prestes, defendido pelo grande Sobral Pinto. No caso de João Mangabeira ocorre façanha incomum na história jurídica internacional: empatada a decisão, o presidente Barros Barreto decide contra o réu. O Supremo Tribunal Militar corrige em parte o escândalo e concede habeas corpus ao parlamentar. Depois vêm as manobras em prol do parlamentarismo, com a demissão de Jânio Quadros. O STF se cala, apesar do notório golpe aplicado por militares. Em 1964, o mesmo silêncio tíbio quando Hermes Lima e Evandro Lins e Silva são expulsos da Excelsa Corte pelo governo de fato. Procura em vão quem busque nos anais daquele colégio uma nota mais dura contra o AI-5, que suspende o habeas corpus em casos de crime político e contra a ordem econômica, a segurança nacional, a economia popular. Tais crimes são tipificados com pressuroso auxílio de quem redige uma Constituição como a Polaca, o notório Francisco Campos. Nada relevante é dito pelo Supremo contra a censura prévia em jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas. E seguimos a trajetória pouco sublime do Supremo. Por exemplo, no apagão do período FHC. Questionada a constitucionalidade da multa (os usuários não eram responsáveis pela imprudência governamental, que não providenciou melhorias na rede), os juízes do STF definem que, sem penalidades pecuniárias, os cidadãos deixam de colaborar. Logo… Na reforma da Previdência sob Luiz Inácio da Silva, Joaquim Barbosa, o herói da futura Ação 470, decreta em seu voto que “não existem direitos adquiridos, caso contrário ainda estaríamos em regime de escravidão”. Nenhuma data venia é apresentada por seus pares contra o sofisma, de enrubescer estudantes ainda no primeiro ano acadêmico. O que acontece na tarde de 7 de dezembro de 2016 ressuscita o velho serviçal dos outros dois Poderes, com resultado ainda pior para os togados. Sob o ultimato de Renan Calheiros e do governo – chantagem solta, pois sem a vitória de Renan surge a ameaça de não se votarem cortes orçamentários – o Supremo se coloca como trampolim para ações contrárias à cidadania que lhe paga e a quem deve servir. Antes de continuar, uma reflexão. Illibatus, a, um, no latim maltratado pelos membros do STF, tem o sentido de algo ou alguém íntegro, inteiro, completo, ao qual nada falta, não enternecido pela perversão ética. Como o candidus, do qual se origina o atual “candidato”, o vocábulo indica a propriedade de não ser conspurcado, de seguir um parâmetro virtuoso. Illibatus designa um ser sem travestimentos, enfeites, dissimulação. Seu antônimo é o termo improbus, aplicado a quem “comete uma falta contra a fides, sendo o equivalente de iniustus. A improbitas é a ruptura da fides, é o defeito de quem não honra promessas e corresponde ao francês malhonnêteté”. (J. Hellegouarc’h: Le Vocabulaire Latin des Relations et des Partis Politiques sous la République). No Brasil, todo cargo público exige do candidato a “ilibada reputação”. Esta lhe concede a efetividade plena do múnus encerrado no ofício. Ninguém pode exercer uma função em fatias, pois tal fato seria improbidade ética e política. Como, então, os juízes do STF guardam Renan Calheiros no cargo de presidente do Senado, mas lhe retiram o direito e o dever de substituir o chefe do Estado? Ocorre aí improbidade de alguém. Ao ser empossado como senador, aquela pessoa promete cumprir fielmente tudo o que seu cargo exige. Como não pode cumprir tal promessa, existe improbitas de sua parte. E tal coisa é autorizada, ou melhor, sacralizada pelo guardião da Carta Magna? Outro problema: Calheiros não pode substituir o chefe do Executivo porque é réu e, portanto, sua reputação não é inteira, é quebrada por algo muito grave. Mas numa República democrática o soberano é o povo. Renan não pode assumir a Presidência, mas pode legislar para os cidadãos, obrigando-os a cumprir normas das quais ele mesmo é acusado oficialmente de se abster? Para os juízes do STF, quem é mesmo o povo? A presidente Cármen Lúcia, num rasgo agora provado como demagógico, proclama ao ser empossada algo assim como “Sua Excelência o Povo”. Triste excelência, obrigada a seguir leis definidas por quem a elas não obedece! O competente e sério jornalista José Nêumanne Pinto define a decisão do fatídico dia 7/12 como “cusparada no povão”. Ele é muito gentil com os integrantes da Suprema Corte. No espetáculo de subserviência o STF faz mais: retoma sua amarga história de instrumentum regni. Esquecem os magistrados: quando a autoridade é perdida, um Poder deve sorver até a última gota da abjeção. A Câmara dos Deputado prepara medidas contra as sentenças do STF. A continuar o sumiço de sua própria auctoritas, aquela Corte logo terá membros seus nas penitenciárias. Por ousar a condenação de larápios do dinheiro público. O realismo político à custa da cidadania sempre termina em tragédia. Ou comédia.
O artigo de Elio Gaspari -- Os doutores da operação "lava jato" dizem que o projeto que pune os abusos de autoridade praticados por policiais, juízes e promotores destina-se a "aterrorizar procuradores, promotores e juízes". Não estão sozinhos. A presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, pergunta : "Criminalizar a jurisdição é fulminar a democracia. Eu pergunto a quem isso interessa? Não é ao povo, certamente. Não é aos democratas, por óbvio. (...) Desconstruir-nos como Poder Judiciário ou como juízes independentes interessa a quem?" Joaquim Barbosa, que ocupou a cadeira da ministra, fez um raciocínio mais acrobático. Segundo ele, as forças que cassaram o mandato de Dilma Rousseff estariam num novo lance: "Se eu posso derrubar um chefe de Estado, por que não posso intimidar e encurralar juízes?" A ideia de que o projeto aprovado na Câmara intimida, encurrala, ou amedronta os juízes, procuradores e policiais repetiu-se dezenas de vezes. Basicamente, o projeto estabelece penas de seis meses a dois anos de prisão para magistrados que ajuízem ações com má-fé, por promoção pessoal ou perseguição política ou para procuradores que instaurem procedimentos "em desfavor de alguém, sem que existam indícios mínimos de prática de algum delito". O nó está aí, uma investigação aberta levianamente pode dar cadeia. Alguns artigos são banais, como o que penaliza os servidores que venham a "proceder de modo incompatível com a honra, a dignidade e o decoro de suas funções." Houve época em que um presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo deixava sua Porsche no estacionamento da corte. Vá lá. Num surto, o projeto quer proibir juízes de dar entrevistas. É verdade que eles não deveriam falar fora dos autos, mas não podem ser amordaçados. A "lava jato" e todas as investigações estariam ameaçadas porque, aberto um inquérito, um cidadão que se julgue prejudicado poderá processar procuradores ou mesmo o juiz por abuso de autoridade. "Um atentado à magistratura", nas palavras do juiz Sergio Moro. Antes de concordar com o fim do mundo, fica uma pergunta: quem poderá condenar o policial, o procurador ou o juiz? Um magistrado, e só um magistrado. Se os procuradores da "lava jato", o juiz Moro, a ministra Cármen Lúcia e seu colega Joaquim Barbosa não confiam na Justiça, por que alguém haverá de fazê-lo? De fato, juízes e procuradores podem se sentir intimidados, até mesmo aterrorizados. A Lei Maria da Penha, por exemplo, intimida e aterroriza milhares de homens que pensam em bater numa mulher. Assim são as coisas e é bom que assim sejam. Com novos mecanismos de correição uma juíza como a doutora Clarice Maria de Andrade, da comarca paraense de Abaetetuba poderia ficar intimidada ou mesmo aterrorizada antes de permitir, em 2007, que na sua jurisdição uma menina de 15 anos fosse mantida presa numa cela com 23 homens durante 26 dias. Três anos depois o Conselho Nacional de Justiça puniu-a, com a pena de aposentadoria compulsória. Em outubro passado o CNJ reviu a decisão, colocando-a em disponibilidade, por dois anos, com vencimentos proporcionais. Depois, zero a zero e bola ao centro. A defesa da lei do abuso tem uma carga maldita. De um lado estão juízes e procuradores que batalham em defesa da moralidade e do outro, personagens de pouca reputação. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Imagine-se que um sujeito entra numa igreja e vê um batizado. Os padrinhos são os senadores Renan Calheiros e Romero Jucá, mais os deputados Rodrigo Maia e Weverton Rocha, signatário da emenda que define crimes de responsabilidade para juízes e procuradores. O bebê é inocente, nada sabe da vida, mas acaba associado aos quatro padrinhos.
O artigo de Janio de Freitas -- O embate entre Supremo e Senado não está encerrado. Vai até ganhar, em breve, novos ingredientes ácidos. De imediato, arma-se uma etapa adicional da divergência que as duas partes, e muitos mais, pensaram encerrada com ganhos espúrios de ambas. O desacato de Renan Calheiros a uma decisão emitida em nome do Supremo ainda tem o que render. Mas, subjacente aos fatos visíveis, a fermentação é ainda mais ativa e tóxica. É mesmo problemática a assimilação de um desenlace por meio de acordo entre o Supremo e políticos, à maneira dos conchavos parlamentares recebidos pela opinião pública, tantos deles, com repugnância. Réu em processo de peculato pode ser presidente da República? Collor, em um mergulho na sensatez, responderia que não. E presidente do Supremo, cume do Poder Judiciário, poderia ser réu de peculato? Mesmo os saqueadores da Petrobras responderiam com o óbvio. E presidente do Congresso e do Senado? Ah, todo aquele que não queira repetir Calheiros, e desacatar decisão do Supremo, dirá que o cargo e réu de peculato são compatíveis. É o que seis ministros do Supremo, contra três, informam ao país. O afastamento de Calheiros seria um fato sem arestas se, nada mais que isso, ele o acatasse e recorresse ao próprio Supremo. Seu desafio à lei e ao Judiciário exacerbou a tensão do país entregue a um governo obtuso e inconfiável. Nas circunstâncias, seria compreensível alguma concessão política para desatar o novo nó. Nunca, porém, concessão do Supremo. Seus ministros têm os encargos de guardiães da Constituição. E contra a Constituição nenhuma concessão é admissível. Esta mesma é a razão de ser do Supremo. Mais extravagante é que a concessão transportava vantagens para Calheiros e para o Judiciário. A presidente do Supremo, Cármen Lúcia, já expôs sua repulsa ao projeto, criado por Calheiros e por ele posto na iminência de votação, contra abuso de autoridade. O grupo da Lava Jato e várias associações de juízes repelem o projeto. A omissão do Supremo, na aplicação das exigências convencionais para o cargo de presidente do Congresso e do Senado, levou ao pronto recolhimento do projeto por Calheiros. O seu método de ação é, desde sempre, o de criar inquietações para permutá-las por conveniências suas. Sabe-se de alguns participantes de conversas com um lado ou com outro, mas não se sabe como as coisas se passaram. Apenas coincidência de generosidade mútua não é crível. Quando Cármen Lúcia subverteu a ordem dos votantes no Supremo, para que o decano Celso de Mello lançasse uma tese, ficou evidente a existência de uma combinação entre ministros. A favor de Calheiros, como o decano logo confirmaria. Há, porém, um outro indício. Mais valioso porque sugere que o então destituído presidente do Congresso sabia o que o Supremo lhe reservava. Com o sigilo possível e em paralelo à sessão do Supremo, o líder do DEM, Ronaldo Caiado, apresentou um requerimento no Senado subscrito por vários senadores. Ato requerido: retirada de pauta do projeto contra abuso de autoridade. Efeito esperável: uma iniciativa do DEM desvincularia a retirada do projeto e a já falada existência de um acordo para vantagem mútua. Mútua, mas não equilibrada. Quanto o Supremo perdeu em respeitabilidade é imensurável, até por incluir o que lhe será debitado em casos gritantes de abuso de poder. Calheiros só ganhou. O Senado em breve terá pela frente as associações de magistrados, que já reclamam — com razão — de perdas que as “reformas” de Temer querem impor, inclusive, aos juízes. E ainda há a ameaça extra: a fúria de Gilmar Mendes, que, ao voltar do “tour” sueco, não verá no Senado o projeto do qual é inspirador e patrono. O método de ação de Renan é, desde sempre, o de criar inquietações para permuta-las por conveniências suas.
Total de 1884 matérias | Página 1
13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)