Renitentemente despreparado para interpretações econômicas que envolvam o Grande ABC (além do evidente desprezo e desconhecimento de tudo o que se refira à intersecção do econômico com o social, porque não vive na região), o pesquisador João Batista Pamplona, da Agência de Desenvolvimento Econômico, disse mais uma grandessíssima bobagem na edição de quinta-feira do Diário do Grande ABC. Encurralado pela própria armadilha estatística em que se meteu, ao negar anedoticamente a evasão industrial do Grande ABC, e diante do desaparecimento de 20 mil empregos industriais entre abril do ano passado e abril deste ano, segundo dados da Fundação Seade/Dieese, vejam só o que Pamplona disse ao jornalista Roney Domingos:
“Para Pamplona, a manutenção da taxa básica de juros em 18,5% inibe o consumo e estimula, por consequência, a redução sistemática de postos de trabalho na indústria de transformação — carro-chefe da economia do Grande ABC. “Não há indústria, por mais eficiente, que tenha suporte para mais do que isso”. De acordo com Pamplona, os níveis de emprego na região acompanham com fidelidade as oscilações do crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) — a soma de riquezas do País. Para o economista, a recuperação do emprego industrial na região tende a ser lenta e vai exigir crescimento econômico expressivo, de pelo menos 4% ao ano. O desempenho parece distante da realidade, porque o Brasil cresceu 1,5% no ano passado e as melhores projeções deste ano apontam para 2,5%. Ele esclareceu que estes novos empregos industriais ligados ao aquecimento da economia serão criados nas fábricas de pequeno e médio porte, porque as grandes corporações, como a Volkswagen, por exemplo, vão manter seus planos de reestruturação e redução de postos de trabalho”.
Para que todos os leitores possam entender o perigo das interpretações do professor-doutor e o que suas declarações expressam explícita e implicitamente, procuraremos ser o mais didático possível.
a) Ao correlacionar o desempenho dos níveis de emprego na região com as oscilações do PIB do País, Pamplona erra feio. Por mais que a economia regional dependa dos fatores externos mencionados pelo pesquisador, como os casos do apagão, da recessão nos Estados Unidos e da crise na Argentina, há pontos endógenos, próprios da região, que nos arremetem a problemas e consequências adicionais. Esses problemas são conhecidos de todos e não é preciso que sejam relacionados. Um dado que desmoraliza a ilusão de que aonde o PIB brasileiro vai, o emprego do Grande ABC vai atrás é o fato de que o estoque de emprego industrial formal (com carteira assinada) foi reduzido de 294.767 para 194.750 postos de trabalho, numa comparação ponta a ponta entre 1990 e 2000, segundo dados oficiais do Ministério do Trabalho. Mais de 100 mil empregos formais evaporaram da região. Ou nada menos que 34% de redução. No mesmo período, por mais que tenha andado de lado e por mais que tenha oscilado, o PIB nacional cresceu à média de 2,5% ao ano. Perceberam a diferença?
Para se ter idéia de que a rigidez de perda de emprego industrial no Grande ABC é constante, contrariamente ao comportamento do PIB brasileiro, que oscila entre ganhos e perdas ao longo de determinados períodos de análise, nos últimos 15 anos (1985 a 2000) pesquisados pelo Ministério do Trabalho, apenas em um quarto (25%, portanto) houve crescimento de um ano em relação ao imediatamente anterior. E, mesmo assim, nesses parcos momentos, a evolução do emprego industrial da região foi aquém do crescimento do PIB brasileiro. Tanto é verdade que, conforme já publicamos, no período acima mencionado o Grande ABC perdeu o equivalente a 18 fábricas de empregos da General Motors de São Caetano.
Por isso mesmo, na entrevista de Pamplona ao Diário do Grande ABC, considere-se que há uma recomposição lógica na frase “aonde o PIB vai o emprego do Grande ABC vai atrás”. Leia-se sem cerimônia que aonde a vaca da evasão industrial e da reestruturação das empresas do Grande ABC vai, o boi do desemprego vai atrás.
Como é possível que um ou outro mal-intencionado desconfie destes números que apresento, porque a mistificação sempre tem espaço entre os indecentes, tomo duas providências: além de colocá-los à disposição de qualquer auditoria, inclusive judicial, recorro a um profissional de etiquetagem muito mais expressiva que a de João Batista Pamplona. Por que essa menção à etiquetagem? Porque Pamplona adora arvorar-se de detentor de títulos universitários, numa evidente tentativa de tornar a grife acadêmica mais importante que o conteúdo prático de suas aberrações estatísticas. Pois bem: o doutor em economia pela Universidade da Califórnia Gesner Oliveira, 45 anos, professor da FGV de São Paulo, consultor da Tendências e ex-presidente do Cade, escreveu exatamente o seguinte em artigo publicado pela Folha de S. Paulo do último sábado, sobre o problema do baixo crescimento da produção e do emprego:
“Embora superior à época da superinflação, a taxa média de crescimento do período posterior ao Plano Real (de 2,8% ao ano) é insuficiente para gerar as oportunidades necessárias para o elevado contingente de trabalhadores que ingressam anualmente no mercado de trabalho (superior a 1,3 milhão). Daí a urgência de propostas consistentes que transformem uma recuperação tímida em crescimento sustentado na economia”.
Note-se que o doutor em economia Gesner Oliveira refere-se ao Brasil como um todo e menciona o crescimento do PIB entre 1994 e 2001. Nesse período, enquanto o Brasil como um todo produzia emprego industrial, o Grande ABC perdeu mais de 80 mil trabalhadores de indústria com carteira assinada. O que, somados ao crescimento vegetativo de empregáveis, ajuda a explicar o quadro de dificuldades atual que apenas extraterrestres não enxergam.
O mesmo Gesner Oliveira, no artigo à Folha, desmonta a generalização do também economista João Batista Pamplona e sua bobagem de correlacionar uniformemente emprego industrial e PIB no Brasil. No mesmo período em que o Grande ABC perdeu 20 mil empregos industriais (entre abril do ano passado e abril deste ano, conforme dados da Fundação Seade/Dieese), foram criadas 310 mil novas vagas no mercado de trabalho brasileiro, segundo dados do IBGE esgrimidos por Gesner Oliveira. Diferentemente do Brasil — que vive combinação de aumento do nível de emprego com aumento da procura por trabalho, o que resulta na elevação da taxa de desemprego e segundo o próprio Gesner Oliveira configura “fenômeno típico das fases de recuperação” — o Grande ABC vive da dramaticidade de aumento do desemprego industrial com maior procura de emprego industrial. Tudo isso associado à retração ainda permanente de geração de riqueza, traduzida na persistente queda do Valor Adicionado da indústria de transformação.
O outro componente maliciosamente ou não atirado sob o tapete por Pamplona, na entrevista ao Diário do Grande ABC, envolve a depreciação da qualidade do emprego no Grande ABC. A informalidade e os chamados autônomos proliferam, conforme dados da Fundação Seade/Dieese. Nada mais lógico, porque a soma de riquezas da indústria de transformação do Grande ABC, sabidamente o carro-chefe da economia regional, simplesmente descarrilou.
O que Pamplona ainda não captou — ou finge não ter captado — é que a indústria de transformação do Grande ABC tem um histórico específico de dependência do capital internacional de um lado e de estatais (privatizadas mais recentemente) de outro. Essa estrutura de ocupação beneficiou-se grandemente de vantagens oferecidas pelo Estado. Vantagens que, a partir do governo Collor de Mello, foram simplesmente destruídas. A partir daí, vivemos um salve-se-quem-puder à parte do desenvolvimento econômico do País como um todo, como revelam todas as pesquisas sérias. Enquanto há regiões e Estados festejando de alguma forma o fortalecimento industrial, ainda estamos tentando nos recompor do esquartejamento a que fomos submetidos. E está muito difícil recompor os pedaços e montar um Frankeinstein qualquer que, pelo menos, seja identificado como algo perfeitamente definido.
Por que tanta imprecisão de interpretação do pesquisador que coleciona títulos universitários? Porque Pamplona luta, repetimos, contra as armadilhas que ele próprio construiu. Ao procurar desviar o foco da evasão industrial do Grande ABC, cerne de sua apoplexia numérica, ele pretende colocar a região no mesmo saco nacional, cujas variáveis são conhecidas e explicadas, entre outros fatores, pela guerra fiscal que descentralizou a produção industrial.
Repetindo o que tenho comentado com amigos, e o que também já mencionei neste Capital Social, a saga contra o ilusionismo do pesquisador da Agência Regional é exclusivamente profissional, com forte conteúdo de cidadania, de responsabilidade social e de responsabilidade regional. A permissividade com que ele se pronuncia em nome da Agência, desfilando as mais estapafúrdias interpretações relativas a uma região que conhece enviesadamente apenas por números (viciados e completamente defasados), atrapalha o movimento de recuperação do Grande ABC. Sim, porque a reconstrução encontrará barreiras enquanto uma instituição da importância da Agência de Desenvolvimento Econômico permitir manifestações de um porta-voz cujas asas já foram cortadas em muitas pontas, mas não completamente a ponto de evitar a sucessão de vexames que apresenta.
Ao desviar o foco de pontos nucleares da debacle da economia regional, expressa em todos os indicadores confiáveis, casos da Secretaria da Fazenda do Estado, do Ministério da Fazenda, do IBGE, do Ipea e de tantos outros, o pesquisador da Agência transmite a idéia de que somos todos um bando de ignorantes, prontos a aceitar suas provocações em forma de formulações recheadas de fraseologia econômica. Por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento.
Pela analogia que fez ao Diário do Grande ABC sobre o comportamento do emprego industrial na região, atribuindo os números aos sinais de semáforo, fica a sugestão para que o transfiram para a fiscalização do sistema de tráfego. Preferencialmente nas regiões mais densamente povoadas por galpões e terrenos industriais desocupados. Quem sabe, assim, ele aprende que, por trás de números explicitamente maltratados, há muitas vidas em jogo e que o Grande ABC colocado na guerra da abertura econômica é uma coisa, o Brasil menos desenvolvido e por isso mesmo usuário de guerrilhas fiscais é outro.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES