Afinal de contas, os salários e a rede de benefícios sociais que os metalúrgicos das montadoras de veículos da região recebem são interessantes para o Grande ABC? Vale a pena contar com uma casta de trabalhadores altamente bem pagos, comparativamente ao universo da indústria do País? É bom negócio ter trabalhadores renhidamente tão corporativos que ao longo dos anos usufruíram do exercício da democracia e arrancaram série de conquistas trabalhistas?
O fato de os custos trabalhistas dos metalúrgicos da região ultrapassarem em dobro a planilha de montadoras localizadas principalmente em Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul não desestimula a instalação industrial, inclusive em outros setores comprovadamente contaminados pelo efeito referencial? Ou esta não é uma das melhores explicações para a indústria moveleira de São Bernardo ter entrado em parafuso a partir da chegada do setor automobilístico, que lhe tirou boa parte da mão-de-obra e provocou convulsão na antiga lei de oferta e procura?
O grande risco que se corre ao pretender responder a essas indagações é cair na vala comum do extremismo muitas vezes permeado de demagogia e oportunismo. O futebol aparentemente apenas lúdico, quase irresponsável, é didático para o entendimento e o aprendizado em muitas situações do cotidiano econômico e pode ser convocado para ajudar a elucidar as questões que envolvem a indústria automobilística no Grande ABC.
Time de futebol
Imaginem um time de futebol onde dois ou três jogadores ganham salários milionários, têm participação extra nos jogos transmitidos pela televisão, monopolizam a publicidade de artigos esportivos e desfilam em carrões último tipo contra os veículos populares dos demais atletas de salários muito mais baixos e sem qualquer adicional a título de benefícios. Imaginaram? Há duas saídas possíveis para isso: mandar os craques embora, como o Palmeiras e outros clubes fizeram nos últimos tempos para adequar os custos à realidade do mercado, ou elevar os salários e as vantagens dos demais jogadores.
A economia do Grande ABC, por não ter podido jamais dispensar seus craques de produção, só teve a alternativa de melhorar os vencimentos e os benefícios indiretos dos demais trabalhadores. Enquanto o mercado nacional estava fechado aos produtos estrangeiros e a inflação ajudava a maquiar as improdutividades, o restante do Brasil pagava a conta produzida aqui. Com a abertura do mercado e a estabilidade monetária na praça, veio a reestruturação. Aí, todos sabem, dançaram milhares de metalúrgicos e outras plantas automotivas se espalharam pelo País.
Como se percebe, os craques em questão — as montadoras — não têm responsabilidade alguma nos desdobramentos, mas estão no centro dos problemas. São raros os empresários de atividades não ligadas às montadoras que se dispuseram a abrir a boca para contestar a monocultura automotiva no Grande ABC e os efeitos perversos que isso representa aos demais empreendedores. São raros, mas ao longo do tempo se manifestaram para desgosto dos sindicalistas, que, como bons representantes dos trabalhadores, sempre direcionaram baterias de reivindicações e conquistas tendo as montadoras como abre-alas.
Queiram ou não os sindicalistas, gostem ou não os trabalhadores, dissimulem ou não os intelectuais, façam média ou não os empreendedores preocupados em agradar os sindicatos, o fato é que a indústria automotiva é mesmo heroína e vilã da economia regional. Heroína porque é de suas linhas de montagens e das empresas satélites que saem perto de 70% do PIB industrial da região. Vilã porque as conquistas salariais e a rede de benefícios sociais — que em qualquer país civilizado seria responsabilidade do Estado — espremeram a margem de rentabilidade de grande parte das demais organizações, que se viram, de uma forma ou de outra, obrigadas a contemplar seus trabalhadores com muitas das vantagens auferidas pelos metalúrgicos. Ou simplesmente debandaram, incentivadas também pela guerra fiscal.
Reféns imperdíveis
Traduzindo em miúdos: o Custo ABC não é abstração criada por terroristas anti-região. Visto pelo ângulo sindical, as montadoras são, além de tudo, reféns imperdíveis porque significam uma âncora permanente de negociação que manterá as relações trabalhistas em patamar acima das demais regiões de industrialização menos intensa e menos nobre.
Já para os empresários, mesmo do comércio e de serviços, ter os metalúrgicos em cada esquina significa um fantasma de custos que a qualquer momento pode assombrar seus negócios, mais do que já assombram. Para os intelectuais, nada melhor porque podem exercitar à vontade seus pendores humanísticos, se socialistas, ou pragmáticos, se liberais.
Como se observa, não há apenas uma verdade sobre a participação das montadoras de veículos e empresas satélites na estrutura social e econômica do Grande ABC. Entretanto, o emagrecimento do setor na região é um processo contínuo e longe de terminar. Pior: aprofunda-se na medida em que são anunciados novos investimentos das montadoras, porque são máquinas, processos e equipamentos que vão substituir o excesso de mão-de-obra dos tempos de autarquismo econômico e que vão garantir a competitividade internacional.
Representatividade menor
Cada vez mais o setor metalúrgico vai ser menos representativo na mão-de-obra ocupada na região. Na verdade, será cada vez mais representativo da mão-de-obra desempregada ou subempregada egressa do setor automotivo. Isso tornará a atividade uma ilha de excelência tecnológica e de ocupação trabalhista cercada de excluídos. Será a contraposição do capitalismo de primeira classe ao de terceira classe, ao qual LivreMercado se referiu na Reportagem de Capa de janeiro último. Cada vez mais o grau de inserção regional na cadeia de produção das montadoras de veículos estreita-se num grupo de fornecedores de elite, cujos endereços não têm limites geográficos diante da praticidade operacional e administrativa do global sourcing — as compras de suprimentos num mundo que se globaliza.
Quem construir teorias redentoras sobre a economia do Grande ABC neste novo milênio tendo em vista a importância extremamente forte que a indústria automotiva desfrutou na segunda metade do século passado precisa de profundo tratamento macroeconômico. O que se recomenda, e urgente, é seduzir com arte, empenho e planejamento novas matrizes produtivas à parte do eixo automotivo. Resta saber se vamos conseguir sensibilizar a platéia de investidores. Por enquanto, não conseguimos sequer superar a barreira do provincianismo.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES