A edição de fevereiro de 1997 da revista LivreMercado mostra um ensaio de regionalidade que já não se observa nestes tempos na Província do Grande ABC. A Reportagem de Capa daquela edição que completa 20 anos foi emblemática da preocupação com o pós-Plano Real, que, no território regional, provocou série de complicações. “Escravos do Real” foi um tiro certeiro na definição da situação regional. Acompanhem alguns dos parágrafos de um texto completo que está no link abaixo:
Eles representam a classe média brasileira. Média-média, média-baixa, média-alta. Eles são empreendedores típicos do Grande ABC, região que vive à sombra e à inclemência das montadoras de veículos. Eles podem ser chamados também de Escravos do Real. É provável que desaprovem a identificação, mas talvez nenhuma outra expressão os defina melhor. Escravos do Real porque, desde que o plano do então ministro e hoje presidente Fernando Henrique Cardoso surgiu no cenário econômico brasileiro, eles começaram a sentir maior necessidade de produzir mais para enfrentar as dificuldades de um País que aprendeu a valorizar a moeda, depois de quatro perdulárias décadas de inflação. Os Escravos do Real, que também sofrem os efeitos da globalização dos negócios, têm em comum carga diária muito maior e mais intensa de trabalho, sem a contrapartida de resultados financeiros compatíveis com tanto esforço e muito aquém do período inflacionário. Mas eles estão felizes. A estabilidade monetária e consequente visibilidade da situação econômica em que se encontram compensam a queda do padrão de qualidade de vida que todos dizem estar sentindo com a redução das horas de descanso e de lazer.
Vem aí a Câmara Regional
Também a edição de fevereiro de 1997 de LivreMercado trazia reportagem que poderia ser traduzida como uma esperança de novos tempos na região. Tratava-se da instalação da Câmara Regional do Grande ABC. Vejam alguns trechos da reportagem:
A longa trajetória para a recuperação econômica e social do Grande ABC ganhou passos firmes no último dia de janeiro, num encontro na Prefeitura de São Caetano. A instalação da Câmara Regional do Grande ABC, projeto comum do governo do Estado, do Consórcio Intermunicipal e do Fórum da Cidadania, além de representações empresariais, sindicais e sociais, foi enfim programada para março agora. Não frustrou a expectativa o encontro de Emerson Kapaz, secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico, com os sete prefeitos da região, com Fausto Cestari, coordenador-geral do Fórum da Cidadania, além de Carlos Alberto Grana, secretário-geral do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, e vários secretários municipais de Desenvolvimento Econômico. A programação do lançamento oficial da Câmara do Grande ABC, com a presença do governador do Estado, revela que desta vez há mesmo vontade política de tratar com seriedade um tema complicadamente incômodo, ou seja, cuidar das sequelas de uma região que viu o tempo passar pela janela da descentralização industrial e não moveu um dedo para tentar alterar a rota de esvaziamento econômico que a atingiu.
Institucionalidade em alta
Perceberam os leitores que há 20 anos vivíamos perspectivas institucionais muito melhores do que as atuais? Enquanto havia naquela ocasião um engajamento expressivo em torno de resoluções que pareciam palpáveis, hoje o que se tem é a simplicidade de se pretender instalar o que veio a se chamar Casa do Grande ABC em Brasília, para, na expressão do presidente do Clube dos Prefeitos, Orlando Morando, prefeito de São Bernardo, “garimpar” recursos federais. Planejamento não é verbete utilizado nestes tempos de vacas magras institucionais.
Não se pode esquecer o contexto em que germinava a Câmara Regional do Grande ABC. O Fórum da Cidadania estava em plena atividade. Esse conglomerado de organizações de diversas representações na Província do Grande ABC insinuava-se como o gatilho que dispararia série de medidas transformadoras na região. Leiam alguns parágrafos da reportagem igualmente publicada em fevereiro de 20 anos atrás, referindo-se àquela instituição:
O Fórum da Cidadania do Grande ABC, formatado há quase três anos durante a campanha Vote no Grande ABC, iniciativa que elegeu número recorde de deputados estaduais e federais, está vivendo momentos de fundista premiado que tem tudo para se transformar em maratonista de ponta.
Traduzindo: o Fórum contabiliza enorme sucesso, apesar de limitações operacionais decorrentes da falta de recursos financeiros, mas pode alcançar muito mais. Por isso, a iniciativa de seus principais colaboradores de avaliar os resultados e programar o futuro transforma-se na principal bandeira do início de temporada dessa entidade que reúne boa parte da comunidade regional. (...) Mesmo exibindo o pecado original do voluntarismo exacerbado, quando a tendência internacional de organizações não-governamentais é a profissionalização, mesmo com as costumeiras ausências de parte de seus filiados às reuniões plenárias, mesmo com a dispersão temática, mesmo com a falta de dinheiro, mesmo com a sobreposição do fazer em relação ao animar, o Fórum da Cidadania caminha para o terceiro aniversário com ativos que lhe conferem o certificado de sucesso.
Empobrecimento regional
Tudo que se realizava e se prometia naquela Província do Grande ABC (ainda não chamada assim por este jornalista, o que seria injusto porque não se viviam os tempos de marasmo dos anos 2000 na região) já estava mais que fermentado pelas complicações sociais. Como mostrou uma reportagem daquela mesma edição sobre o empobrecimento regional. Alguns trechos providenciais:
Os novos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, anunciados em janeiro, confirmam a tendência de periferização e empobrecimento do Grande ABC, fenômeno que também atinge a Região Metropolitana de São Paulo. O novo censo populacional do IBGE registrou discreto crescimento demográfico de 8,09% da região, levemente superior à média nacional de 7% registrada no período de cinco anos. Visto simplesmente de forma conjunta, o Grande ABC não teria com que se preocupar. Mas a história é outra. Apenas Santo André, com 1,27% de crescimento populacional no período, Diadema, com 2,58%, e São Caetano, que teve a inédita taxa de decréscimo de 6,36%, ficaram abaixo da média de evolução nacional. Os demais Municípios da região apresentam taxas volumosas: São Bernardo ficou com 16,25%, Mauá com 16,23%, Ribeirão Pires com 17,16% e Rio Grande da Serra com 16,19%, isto é, mais de o dobro da média brasileira no período.
Esvaziamento paulista
Outra reportagem que dava robustez editorial àquela publicação em fevereiro de 1997 revelava o que foi traduzido como “caminho preferencial das indústrias que deixaram a Região Metropolitana de São Paulo”. Mostramos o deslocamento contínuo da produção em direção ao Estado de Minas Gerais.
Leiam alguns parágrafos:
Caminho preferencial das indústrias que deixaram a Região Metropolitana de São Paulo (Grande ABC incluído) nas últimas duas décadas, Minas Gerais é o Estado da Federação que mais cresceu no setor no período de 1985 a 1990. A constatação está em forma de números, que exigem interpretação, de trabalho divulgado pela Confederação Nacional da Indústria. Minas Gerais atropelou os demais Estados com um avanço intra-estadual de 10% no Produto Interno Bruto Industrial, contra queda de 23% do Estado de São Paulo, 22,7% do Rio de Janeiro, primeiro e segundo colocados do ranking econômico nacional, e de 16,6% do Rio Grande do Sul, no quinto posto. (...) Diferentemente do Estado de São Paulo, que perdeu participação relativa na indústria mas ganhou no cômputo geral do PIB, o Grande ABC sofreu sangrias econômicas no período, já reveladas e dimensionadas por LivreMercado e não especificadas pela CNI. Tudo porque o peso relativo do setor industrial para o Grande ABC, quase 80% das receitas tributárias, é de perfil completamente diferente do Estado de São Paulo como um todo, onde há menos desequilíbrio com as áreas de serviços e comércio. A dependência histórica da área industrial coloca o Grande ABC, que tem conhecido certa explosão em serviços e comércio, em situação pouco confortável, porque a compensação não se dá na mesma escala e porque o peso da produção industrial é gigantesco.
Executivo ataca Lula da Silva
E a Entrevista Especial da edição de fevereiro de 20 anos atrás, então, foi um chute na canela do sindicalismo. O então conselheiro editorial de LivreMercado, Reifer Nascimento, não poupou o então sindicalista Lula da Silva, entre outros. Leiam a abertura do trabalho jornalístico:
Especialista em administração e controle de empresas, com grande atuação em formação e desenvolvimento de Recursos Humanos, o executivo Reifer Nascimento, ex-professor da Fundação Santo André e ex-presidente da Faisa, Fundação de Assistência à Infância de Santo André, não vê nada no futuro do sindicalismo brasileiro senão um horizonte absolutamente escuro. Num confronto direto com o tom conciliador da maioria dos profissionais da área que atuam há muitos anos no Grande ABC e que tiveram oportunidade de vivenciar o florescimento e o arrefecimento do então novo sindicalismo de Luiz Inácio Lula da Silva, no final dos anos 70, Reifer Nascimento é duro crítico das consequências daquele movimento. Atribui ao sindicalismo parte do peso do esvaziamento econômico do Grande ABC. Em alguns casos, diz que o peso foi preponderante. E, também ao contrário do lugar-comum de elogios a Lula, Reifer Nascimento faz uma incursão histórica, relacionando o surgimento do líder sindical ao interesse de parte fraccionada do governo militar.
Guerra das duchas
Se Reifer Nascimento botou fogo na canjica editorial daquela edição, o que dizer então do embate envolvendo donos de postos e combustível e proprietários de lava-rápidos? Alguns trechos:
Proprietários de lava-rápidos e de postos de combustíveis do Grande ABC estão patrocinando escaramuças que aparentemente beneficiam proprietários de veículos. O brinde da maioria dos postos, em forma de ducha gratuita para quem abastece o veículo com determinado volume, é uma forma de seduzir a clientela que está afetando diretamente as receitas dos lava-rápidos.
Força-tarefa em São Bernardo
No campo político-administrativo, tudo eram flores em São Bernardo, com a escalação do empresário Valter Moura para comandar a Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo. Leiam alguns dos trechos da reportagem:
Capital econômica do Grande ABC desde que as montadoras de veículos, quatro décadas atrás, começaram a ocupar seu território, São Bernardo só descobriu agora a importância de organizar estrutura administrativa pública voltada às atividades do setor. Escolhido pelo prefeito Maurício Soares para comandar a recém-criada Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo, o empresário, advogado e economista Valter Moura acaba de compor autêntica força-tarefa para iniciar reviravolta de um quadro em franco processo de esvaziamento econômico. Presidente da Associação Comercial e Industrial de São Bernardo durante muitos anos, privatista de um administrador público municipal com raízes petistas, Valter Moura sabe o que o espera: um quadro de complicações operacionais decorrentes das dificuldades econômico-financeiras de uma Prefeitura atolada em dívidas, além do desafio de introduzir respostas que cobrava sistematicamente como líder de classe. (...) O entusiasmo com o momento político-institucional da região, em que a metropolização de fato parece mais nítida no horizonte, leva o novo secretário até a acreditar na possibilidade de criar-se uma espécie de banco regional de fomento, dirigido por empresários e administradores públicos com mandato a salvo de injunções políticas. Uma espécie de BNDES regional, alimentado por recursos disponíveis dos órgãos públicos e da comunidade. Uma instituição que encorpasse o sentimento regional. Um sonho? Moura diz que não.
O papel da Imprensa
Naquela edição de fevereiro de 1997 preparei dois artigos para a coluna “Campo Aberto”. Da primeira, sob o título “O que a Imprensa pode fazer para ajudar de fato a melhorar o País”, capturo alguns parágrafos:
A imprensa tem muita responsabilidade nos destinos do País. Se o Brasil é o que é, um Terceiro Mundo com a mais grave das endemias, a disparidade de distribuição de rendas, parcela da conta deve ser debitada aos donos de órgãos de comunicação, sobretudo os mais influentes, e a boa parte de seus profissionais. Ao longo de décadas forjaram-se mitos que não valem pitadas de fumo. Escolheram-se heróis que não resistem à exumação moral e ética. Lustraram-se caudilhos demagogos e oportunistas. Endeusaram-se supostos líderes que não passaram de embustes. Tudo porque a Imprensa sofre da doença crônica do raquitismo analítico e do imediatismo informativo.
Críticas antigas
Como podem perceber os leitores, não existe o registro de um milímetro sequer de distorção da visão deste jornalista em relação ao que produzia no passado. Ou seja: não passa de papo furado de mentirosos e sofismadores de plantão a ideia de que tenha sido condescendente com os pecados capitais da região. Há uma linha de coerência a ligar os dois pontos – o passado e o presente. Não fosse mencionado o registro cronológico, tudo indicaria que aquele texto acabara de sair do forno do inconformismo deste profissional.
O outro artigo que assinei naquela edição de 20 anos atrás sob o título “Simplicidade do futebol não pode ser violentada por regras absurdas”, dizia respeito à invencionice da Federação Paulista de Futebol, que, felizmente, não durou muito. Alguns parágrafos:
Em linha de colisão com as consagradas regras internacionais, os cartolas decidiram inventar o futebol-não-me-toque durante o Torneio Rio-São Paulo. A bobagem, aplaudida por atacantes beneficiários e por críticos modistas, consistiu na limitação do número de faltas por equipe e por jogador. O time que fizesse mais de 15 infrações durante os 90 minutos passaria a ser punido com cobranças da entrada da área. Para quem não é versado em futebol, isso significa espécie de pênalti reduzido à metade ou menos da probabilística de gol, o que é um perigo. Também, o jogador que fizesse cinco faltas teria de cumprir cinco minutos de banimento do espetáculo. (...) A ideia de que essa invencionice favorece a elevação da média de gols é tão correta quanto equivocada se atrelada à qualificação do espetáculo. Raros jogos ficaram na história porque tiveram enxurrada de gols, mesmo com as regras convencionais da International Board, as quais implicam em estabelecer dificuldades para o talento ofensivo superar a disposição destrutiva, decorrendo daí a mágica de o futebol guardar sempre a possibilidade de surpresas.
Mais destaques
Aquela edição de LivreMercado também apresentava o primeiro cemitério vertical da Região Metropolitana de São Paulo, erguido na região. Trata-se do Phoenix Memorial, no número 5000 da Avenida Lauro Gomes. Também ganhava destaque a chegada do McDonalds, uma loja de 400 metros inaugurada no Shopping São Caetano. O Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa) apresentava balanço do fortalecimento dos pequenos empreendedores em tratarem negócios de forma distinta dos tempos de inflação alta e de mercado fechado. “Agora, em vez de atenção ao mercado financeiro, que em muitos casos contrabalançava os percalços operacionais, os pequenos negócios primam pela melhoria da administração dos recursos em caixa e pelo marketing e, num patamar um pouco inferior, com modernização através da informática”, dizia a reportagem.
Completando, LivreMercado anunciava que publicava naquela edição os potenciais últimos cases à disputa do 4º Prêmio Desempenho Empresarial, evento que se tornou tradição na região e que, anos depois, contemplou muito além de empresários. No total, foram realizadas 15 edições sequenciais do Prêmio Desempenho, com a entrega de 1.718 troféus. Sempre com auditoria independente na aferição dos resultados decididos por integrantes do Conselho Editorial de LivreMercado. Um evento intocável em credibilidade e respeito.
Leiam, portanto:
Cemitério vertical em vez de shopping na região
McDonalds é só parte do programa de novas atrações
Balanço confirma novas tendências
Fundista ou maratonista, qual é o futuro do Fórum da Cidadania?
Finalmente vamos contar com a Câmara Regional
Não há futuro para o sindicalismo brasileiro
Simplicidade do futebol não pode ser violentada por regras absurdas
O que a Imprensa poderia fazer para ajudar o País
Indústria de Minas Gerais atropela Estado de São Paulo
IBGE confirma inchaço de nossas periferias
Minas atropela com crescimento do PIB muito maior que São Paulo
Secretário promete revolucionar pasta econômica em São Bernardo
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13/11/2024 Diário: Plano Real que durou nove meses (33)