O que empreendedores privados, administradores públicos e a comunidade do Interior do Estado podem aprender com o histórico de desenvolvimento econômico do Grande ABC, conjunto de sete municípios na Região Metropolitana de São Paulo que se consagrou como a área geográfica industrial mais influente do País?
Talvez a melhor resposta seja tão cruel quanto providencial: não caiam no ufanismo doméstico de quem precisa de permanente auto-elogio para inflar o ego. Nem se deixem enganar pelo lambe-lambe dos chamados forasteiros, especialistas em propagar o lado róseo das regiões que pretendem seduzir exatamente porque precisam parecer simpáticos para seus projetos pessoais ou profissionais.
O Grande ABC viveu ao longo de meio século fascinante etapa de crescimento econômico, mas longe esteve e ainda está de qualquer amarração política, institucional e social que possa ser catalogada como solidamente regeneradora, embora tenha registrado sinais de evidentes avanços nos últimos cinco anos.
Foi embalado pela compulsoriedade do desenvolvimento econômico que o Grande ABC se cristalizou como centro de atratividade empresarial e de mobilidade social. Empreendimentos industriais não lhe faltaram ao longo de décadas sobretudo a partir da chegada das montadoras de veículos. Caudais de marginalizados econômicos também acorreram às suas fronteiras em busca de um oásis de ascensão social. Entretanto, o Grande ABC acabou torpedeado pelas transformações macroeconômicas nacionais e internacionais e se viu tingido de vermelho em vitais indicadores de prosperidade. Responsável por perto de 10% do Produto Industrial paulista, o Grande ABC está longe de desmantelamento econômico. Dono de pelo menos 15% do Produto Industrial há 20 anos, o Grande ABC está próximo do limite de esvaziamento econômico suportável.
Exatamente porque se apercebeu do processo de contração econômica, a sociedade do Grande ABC resolveu reagir. É verdade que até hoje há grotescos gladiadores locais dispostos a tudo para negar o inegável rompimento da linha de crescimento dos sete municípios, quanto mais para admitir que há profundas fissuras que recomendam intervenções urgentes. Na verdade, são alguns paspalhos teóricos que não se dão ao mínimo trabalho de ir a campo e constatar com os próprios olhos os claros sinais de empobrecimento regional, em contraponto com a fluidez de investimentos produtivos em direção a outras áreas do Estado que se instrumentalizaram especificamente para atrair negócios.
Entre outras evidências de que o Grande ABC já viveu dias melhores está o assustador desfile multicolorido de tabuletas de aluga-se ou vende-se em residências e estabelecimentos comerciais e de serviços. Ou de um cordão assustador de fábricas de todos os portes que faliram ou resolveram respirar outros ares deixando para trás galpões à espera de substitutos cada vez mais raros. Sem contar a nordestinação de pequenos negócios — garagens de residências cujos veículos perderam espaço para pequenos estabelecimentos de subsistência, casos de mercearias, quitandas, açougues, quinquilharias, botecos, pizzarias, coisas assim.
Os micronegócios informais já estão tão institucionalizados que o prefeito Celso Daniel, de Santo André, mandou para a Câmara Municipal proposta de adequação da legislação a esses empreendimentos. Nada mais natural porque, entre outros motivos, não vale mais a pena tentar impor a camisa-de-força do legalismo formal a negócios que só sobrevivem física e estruturalmente com a pantalona da informalidade. Falaram mais alto para a administração do PT de Santo André as dificuldades operacionais de fiscalização e a compreensão das debilidades sociais decorrentes de mudanças socioeconômicas ditadas principalmente pelo desemprego compulsório da mão-de-obra de origem industrial. A expectativa é de que outros administradores municipais sigam o exemplo. O fenômeno da proletarização empresarial não é exclusividade de Santo André, mas regra geral no Grande ABC.
Quando se afirma que a sociedade resolveu reagir, é preciso entender o sentido específico do termo. Sociedade no caso são algumas lideranças públicas, empresariais e sociais que decidiram sair do casulo do comodismo. Dessa forma, romperam o amedrontamento latente de ser interpretadas como agentes de lesa-região ao proclamarem as dificuldades já explicitadas nos mais diferentes indicadores econômicos e sociais. Também se viram camadas de formadores de opinião que encontraram a oportunidade de expressar preocupação com o rumo dos acontecimentos, estimuladas por outras lideranças que finalmente colocaram o dedo na ferida do esvaziamento industrial e de suas consequências. Por isso foram criados o Consórcio dos Prefeitos, a Câmara Regional e o Fórum da Cidadania. Primeira e mais antiga instância, o Consórcio Intermunicipal reúne exclusivamente os prefeitos dos sete municípios. De uma etapa inicial voltada apenas para bacias hídricas, seguida de endêmico desinteresse, reagiu com os atuais prefeitos e incorporou novas e amplas pautas de estudos, planejamento e ações. A segunda instância, a Câmara Regional, é tripartite: reúne representações do governo do Estado, do Poder Público regional e também de organizações econômicas e sociais. A terceira, o Fórum da Cidadania, é exclusivamente integrada pela sociedade, com mais de 100 organizações filiadas. Seu surgimento é responsável pela reativação do Consórcio e pela criação da Câmara Regional. O Poder Público não tem espaço no Fórum da Cidadania, mas as hostilidades já fazem parte do passado.
Enfim, cantado em prosa e verso como fino referencial de cidadania e politização, imagem construída de forma enviesada por causa do movimento sindical liderado por Lula e cujos rescaldos confundiram corporativismo e partidarismo com sentimento de regionalidade e coletivismo, o Grande ABC descobriu-se há pouco mais de cinco anos submerso em grau de esfacelamento institucional semelhante ao de qualquer outra região do País igualmente à espera de soluções do Estado em suas três esferas — municipal, estadual e federal. Trata-se de deformação típica de país colonizado que não consegue se desgarrar do passado histórico de dependência do Estado provedor cada vez mais debilitado.
A vantagem do Interior paulista em relação ao Grande ABC está na possibilidade de aprender com erros alheios. Poderá ser fatal para cada uma das macrorregiões do Estado incorrer nas mesmas falhas estratégicas do Grande ABC. Na realidade, desprezar os solavancos do Grande ABC será imperdoável numa quadra da história em que a informação é o bem mais importante das relações entre pessoas e entre empresas. Repetir os equívocos dos sete municípios que formam territorialmente um megamunicípio de 2,3 milhões de habitantes, tanta é a profundidade da conurbação de seus limites geográficos, caracterizaria avançado estágio de alheamento das lideranças responsáveis pela condução dos negócios privados, da gestão pública e do fortalecimento da comunidade. As cabeças pensantes do segundo mercado consumidor mais poderoso do País certamente não permitirão que se repitam velhos erros de uma área que responde por quase 50% da riqueza do Estado mais dinâmico da Federação — a Região Metropolitana de São Paulo.
Por isso, quem não quiser correr atrás do prejuízo deve espelhar ações no Grande ABC do presente e estudar detidamente o Grande ABC do passado. O melhor conselho para não incorrer nas falhas do Grande ABC do passado é exorcizar o que paradoxalmente é também interpretado como a própria razão do desenvolvimentismo da região — a estruturação econômica respaldada por uma atividade de ponta, no caso o setor automobilístico e as empresas satélites.
A hegemonia industrial das montadoras de veículos é um deslize do qual não se deram conta administradores públicos que se revezaram nos postos-chave das prefeituras da região nas últimas cinco décadas. A matriz automobilística de produção tornou o Grande ABC refém da ascensão e da queda cíclicas da atividade, vista pelo governo federal muito mais como inesgotável filão de tributos do que como veia de desenvolvimento sustentado. Uma das vacas-sagradas de receitas tributárias que tornam o Brasil campeão de impostos na América Latina, a indústria automotiva recebe do governo federal o sobrepeso de encargos que nem Estados Unidos, Europa e Ásia ousaram infligir. Veículos viraram fonte de auxílio ao financiamento da dívida pública. Poucas atividades produtivas são tão fortemente taxadas no Brasil: metade de um veículo corresponde a impostos. O consolo é que a situação já foi mais grave, embora continue onerando demais a competitividade do setor que recorre, entre outras estratégias, ao estrangulamento dos custos de produção, apertando fornecedores e trabalhadores.
A farta visibilidade político-institucional das montadoras fez emergir um sindicalismo vigoroso, exigente e combativo. Ao mesmo tempo em que instalou relações mais modernas no chão de fábrica, onde trabalhadores deixaram de ser avaliados como custo operacional, o chamado Novo Sindicalismo provocou natural contrafluxo de investimentos devido à capacidade de espalhar conquistas para todos os setores industriais. Traduzindo: salários e benefícios sociais dos metalúrgicos foram automaticamente parametrizados por outras categorias. Não é preciso estender-se sobre os efeitos colaterais dessa conjunção. A realidade individual das empresas e também dos demais setores econômicos não poderia jamais ser coletivizada no tratamento sindical. Uma fabriqueta qualquer de autopeças cuja planilha de custos com trabalhadores era quatro ou cinco vezes proporcionalmente superior a de uma montadora ainda continua sendo submetida a acordos trabalhistas padronizados.
Uma das explicações para o mergulho de perdas do setor moveleiro de São Bernardo, que chegou a ser o mais importante do País, está na proximidade física com as montadoras de veículos. A evasão de artesãos para as linhas de produção das montadoras e o arranque salarial pela vizinhança com o chamado primo rico da industrialização, como sempre foi conhecida a atividade automobilística, ajudam a explicar a atrofia dos moveleiros.
Quando a Região Metropolitana de São Paulo começou a invadir a linha da improdutividade sistêmica em consequência da exaustão viária, entre outros passivos estruturais detectados pelos investidores por meio de consultorias especializadas, e também quando a guerra fiscal passou a integrar o kit de sedução do Interior que incluía a certeza de que qualidade de vida não seria uma metáfora, alcançou-se o ponto de largada da descentralização produtiva.
Se antes da chegada da globalização o Grande ABC já acumulava perdas econômicas por causa da gradual transferência de unidades industriais para outras regiões do Estado e também para Minas Gerais, o que se viu depois que o ex-presidente Fernando Collor resolveu abrir as porteiras do País foi uma disparada de negócios rumo a outros endereços. Nos últimos 25 anos Santo André perdeu dois terços da arrecadação do ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), que representava igualmente dois terços do orçamento anual. Outros municípios do Grande ABC foram atingidos, mesmo que em menor escala, pela redistribuição do ICMS. As cidades que aparentemente perderam menos, casos de São Bernardo e de Diadema, na verdade perderam muito porque no período analisado passaram a abrigar milhares de novos moradores, principalmente por causa do fluxo migratório. A redistribuição de ICMS por morador apresenta saldo cada vez menor em todo o Grande ABC.
Qualquer indicador tratado sem manipulação aponta perdas econômicas do Grande ABC. Não só de ICMS, mas também de consumo industrial de energia elétrica (menos 9,5% nos últimos 10 anos, sem considerar o crescimento do PIB no período) e de potencial de consumo (menos 21,5% nos últimos 10 anos). Há mandraquismos estatísticos que contra-argumentam em defesa de suposta estabilidade econômica do Grande ABC. Desfraldam números comparativos entre indústrias instaladas no início e no final da década. Alguns chegam a identificar universo mais robusto em 1999. Tudo não passa de prestidigitação explícita. Primeiro, houve queda em números absolutos. E mesmo que houvesse crescimento, tudo não teria passado dos efeitos da desverticalização de produção. Empresas que enxugaram estruturas e quadros funcionais passaram a recorrer a ex-empregados que montaram pequenos negócios. A Cofap já chegou a contar com mais de 13 mil trabalhadores na região, contra pouco mais de quatro mil atualmente. A Rhodia Química passou de cinco mil para menos de 300 agora. A base metalúrgica já somou 220 mil trabalhadores, reduzida à metade hoje, entre dezenas de outros exemplos que poderiam ser citados.
A dependência do setor automotivo é uma sobrecarga de preocupações para a sociedade do Grande ABC. Principalmente porque as montadoras de veículos e suas satélites resolveram procurar outros endereços em que a logística de produção e de distribuição e a estratégia de relacionamento com os funcionários não comprometem o distanciamento da Grande São Paulo, maior centro de consumo do País. Sem contar que a internacionalização dos negócios e o fim da espiral inflacionária, que durante mais de três décadas construiu mar de ineficiências no País, determinaram novos procedimentos de gestão.
Investimentos tecnológicos em processos e produtos passaram a ser decisivos e proporcionalmente decepadores de mão-de-obra intensiva. A equação mais-investimentos-menos-emprego não foi de imediato percebida pela grandiloquência regional. Os incorrigíveis narcisistas preferiram enaltecer o fluxo de capital, que, contrariamente ao que ocorreu em grande parte do Interior paulista, não gera emprego. Enfim, subestimaram o outro lado da moeda — o desemprego — e desqualificaram a evidência de que o parque produtivo estava sucateado por anos e anos de reserva de mercado, sofrível sequela de um regime de capitalismo de Estado.
É evidente que chegaria o dia em que alguém teria de pagar pelo almoço da competitividade internacional e pelo jantar da estabilidade monetária. O problema é que por má fé ou desconhecimento macroeconômico preferiu-se tratar a conta a ser paga como bonificação. Uma idiotice sem tamanho que, só mais tarde, com o anúncio do quadro estatístico de desemprego, desnecessário diante do cotidiano flagrantemente embrutecido pelo desgarramento desmedido dos índices de criminalidade e também pelo obituário empresarial cada vez mais ativo, qualquer observador minimamente atento e sério constataria.
Fortemente mono-industrial em estrutura empregatícia, com consequente repercussão na massa salarial disponível para consumo, o Grande ABC fez da atividade automotiva corda bamba de malabarista ensandecido. Por isso, qualquer outra região do Estado que não queira sofrer de congestão social deve evitar o prevalecimento de uma determinada atividade. É algo parecido como uma empresa que tem um ou dois clientes ou fornecedores apenas. O risco é imenso.
Outra lição que o Grande ABC enseja é a necessidade de planejamento macrorregional. O que se viu na história de industrialização e de forte migração foram ações individuais. Os sete municípios comportaram-se como remadores malucos de um mesmo barco. Cada um idealizava um horizonte e para lá arremetiam suas forças. As instituições extra-Município formatadas nos últimos anos — Consórcio de Prefeitos, Câmara Regional e Fórum da Cidadania — são uma tentativa de corrigir a rota. A dificuldade encontrada é que a velocidade do barco não acompanha as ondas das transformações macroeconômicas.
A participação de empreendedores privados nas instâncias do Grande ABC ainda é rarefeita. Está distante do ideal. Prevalecem os representantes públicos e de entidades não-governamentais. A melhor explicação é que o empreendedor do Grande ABC vive às voltas com tantas dificuldades no dia-a-dia dos negócios que não consegue achar espaço para engrossar as fileiras institucionais. Um péssimo negócio. Há cadáveres legislativos que precisam ser exumados porque se originam de período de fastio econômico, quando a região se dava ao luxo de maltratar investidores com restrições muitas vezes permeadas por ideologias hoje completamente fora de moda. Um exemplo: mais de 50% do território de 840 quilômetros quadrados do Grande ABC está submetido à Lei de Proteção dos Mananciais. A situação implicou em proibição ou extremas exigências ambientais à implantação ou ampliação de unidades industriais.
Entretanto, a ocupação desordenada por hordas de excluídos chegou a contar com patrocínio de políticos ávidos por votos. O resultado é a dificuldade de identificar no cinturão de aberrações se o mais constrangedor é a pobreza dos moradores ou o desrespeito ao meio ambiente. Consumou-se através dos anos uma acintosa apropriação ocupacional da área. Vista do alto, a Represa Billings, responsável pelo abastecimento do Grande ABC e parte da Capital, é espécie de tanque aquático cercado de barracos que produzem o mais puro dos esgotos. Todo o desenrolar desses acontecimentos, que levaram anos a fio para se consumar, não teve qualquer acompanhamento de inquietação da comunidade. Os oportunistas de plantão — e estes não faltam em qualquer região — pintaram o sete ao sabor da voracidade financeira ou eleitoral.
Monopólio industrial, indiferença dos administradores públicos, desinteresse da comunidade social pelas implicações sistêmicas provocadas pelas ações econômicas e alheamento dos empreendedores às nuances públicas e sociais formaram, resumidamente, o caldeirão de deficiências de um Grande ABC que, em contrapartida a todo esse conjunto de déficits organizacionais, mobiliza-se de forma pioneira para combater seus demônios. Os municípios do Interior paulista que tiverem um mínimo de juízo saberão agir a tempo de evitar que o filme do passado do Grande ABC se transforme em campeão de bilheteria.
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12/11/2024 SETE CIDADES E SETE SOLUÇÕES